Destruição de obras de arte por terroristas: atentado aos Direitos Humanos

Painel ‘As Mulatas’ de Di Cavalcanti, no Palácio do Planalto, com perfurações: para especialista em arte, destruição de obras é atentado aos Direitos Humanos e revela racismo, misoginia e intolerância (Foto: Fabio Pozzebom / Agência Brasil)

Para especialista, escolha das obras e a forma como foram danificadas por bolsonaristas revelam misoginia, racismo e intolerância política

Por Adriana Amâncio | ODS 16 • Publicada em 10 de janeiro de 2023 - 11:46 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:49

Painel ‘As Mulatas’ de Di Cavalcanti, no Palácio do Planalto, com perfurações: para especialista em arte, destruição de obras é atentado aos Direitos Humanos e revela racismo, misoginia e intolerância (Foto: Fabio Pozzebom / Agência Brasil)

Quando as imagens do comboio de terroristas invadindo e depredando objetos de arte do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e da sede do STF, na Praça dos Três Poderes, ganharam o mundo, parecia que se tratava de uma violência desordenada. Entretanto, a escolha das obras e a forma como foram danificadas revelam discursos de misoginia, racismo, intolerância política. Para Daniela Name, curadora e crítica de arte carioca, mais do que dano financeiro, a destruição das obras de arte indicam um atentado à humanidade, à subjetividade, à possibilidade do povo brasileiro pensar fora da reta. Um atentado aos Direitos Humanos, que independem de diferenças de cor, classe social e gênero.

A justiça e a arte confrontam como ninguém o ideário bolsonarista, que se baseia em um nacionalismo que permite destruir o diferente, destruir quem o contradiz

Daniela Name
Crítica de arte e curadora

Daniela Name observa que, embora os golpistas tenham entrado como um furacão nas sedes dos Três Poderes, ao analisar os danos às obras, é possível perceber um discurso político. O painel ‘As mulatas’, obra de Di Cavalcanti, de 1962, recebeu seis facadas ordenadas, ou seja, houve tempo de realizar a sequência de facadas. “Parece que alguém foi caminhando e esfaqueando. É uma tela de mulheres mestiças, ou seja, pardas”, frisa.

Para a especialista, a forma como essa ação foi realizada “é muito coerente com alguém que já disse que a filha foi uma fraquejada, que, durante a campanha, disse que o quilombola merecia ser pesado em arrobas; alguém que desprezou a intelectualidade do povo nordestino”. O discurso de Jair Bolsonaro está na inspiração dos ataques. “Por isso, esse quadro de Di Cavalcanti, foi danificado com tanto esmero”, analisa Daniela.

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A curadora também avalia que o desaparecimento da obra ‘A bailarina’, de Victor Brecheret, traz consigo uma mensagem subliminar de misoginia e intolerância. A escultura de porte médio apresenta o corpo de uma bailarina nua, fazendo movimentos típicos do balé clássico. “Novamente o corpo feminino sendo atacado. Um corpo feminino nu, que desaparece”, reflete Daniela Name.

No Senado, a obra de Athos Bulcão, um painel gigante todo na cor vermelha, formado por relevos, também foi danificado. “Alguém passou com um pedaço de vidro, ou uma faca, ou uma chave de fenda e arranhou esse vermelho. Justamente o vermelho”, observa. O prejuízo financeiro é incalculável. No entanto, Daniela revela que algumas obras, a exemplo das de Di Cavalcanti e de Athos podem ser recuperadas. “Mas vai dar muito trabalho e é a verba pública sendo gasta com algo que não seria necessário”, destaca.

Os danos às obras de arte também revelam a contradição do discurso dos golpistas, que defende a “Ordem e o Progresso”, mas atacam os órgãos legisladores. A obra “A Justiça” de Alfredo Ceschiatti, de 1961, localizada em frente ao prédio do Superior Tribunal Federal (STF), também foi atacada. Amarraram uma bandeira do Brasil, como se tivesse enforcando essa figura e escreveram “perdeu, mané”. Uma réplica da Constituição Federal de 1988, que estava em uma das vitrines de blindex, foi rasgada.

“Então, mais uma vez, a gente volta a uma contradição de discurso. São pessoas que sempre afirmaram a ordem, dizia que os petralhas eram baderneiros, que Lula ia transformar o Brasil em uma Venezuela. No entanto, a posse de Lula, há uma semana antes, apesar do calor, da multidão, ocorreu de forma pacífica. E aí eles vão direto na Lei, a escultura da Justiça do Ceschiatti e os exemplares da Constituição”, pondera.

Uma obra destruída e que jamais será recuperada é o relógio do século XVIII, produzido pelo André-Charles Boulle e oferecido por Luiz XIV, à época, rei da França, para Dom João VI, então rei do Brasil. “A gente já pode dar essa obra como perdida, não tem como restaurar, pois destruíram o relógio e deixaram apenas a carcaça. Além do valor financeiro, tem o prejuízo para a relação entre os dois países, o Brasil e a França, porque se trata de um presente de um chefe de Estado para outro chefe de Estado”, avalia.

Ainda segundo Daniela, “a justiça e a arte confrontam como ninguém o ideário bolsonarista”. Esse ideário, prossegue ela, “que se baseia em um nacionalismo que permite destruir o diferente, destruir quem o contradiz, por isso eles destruíram a praça dos Três Poderes, que abriga as instituições que legislam a democracia” , explica.

O levantamento dos objetos de arte depredados das sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário ainda estão sendo realizado. O Palácio do Planalto divulgou uma lista preliminar de danos. Na Câmara, relatório preliminar estima prejuízo acima de R$ 3 milhões. Os responsáveis pelos ataques podem ser processados por danos ao patrimônio e obrigados a pagar indenização pelas obras de arte e outros objetos destruídos.

Escultura de Franz Kracjberg danificada no Palácio do Planalto após atos terroristas: justiça e arte confrontam ideário bolsonarista (Foto: Fábio Pozzebom / Agência Brasil)
Escultura de Franz Kracjberg danificada no Palácio do Planalto após atos terroristas: justiça e arte confrontam ideário bolsonarista (Foto: Fábio Pozzebom / Agência Brasil)

Destruir imagens interessa ao totalitarismo

Ao longo da história, os regimes totalitários usaram a iconoclastia, ou seja, a rejeição ao uso e a veneração de imagens para sustentar suas doutrinas. “Os regimes totalitários têm horror às imagens porque elas impedem que você tenha uma visão reta do mundo. É uma perseguição à capacidade de ter ideias”, analisa Daniela. A curadora compara a Noite dos Cristais ao ataque aos Três Poderes, em Brasília.

Em tempo, vale lembrar que a Noite dos Cristais, também chamada de pogrom, foi um ataque organizado contra o povo judeu. Grupos extremistas inspirados por Hitler, que fez parecer que não estava envolvido com o caso, entraram em sinagogas, lojas e casas perseguiram e levaram judeus aos campos de concentração. “Foram grupos totalitários que entraram nas sinagogas e perseguiram os judeus, a polícia alemã, na verdade os escoltou. Não foi o que ocorreu ontem em Brasília?”, questiona.

Por fim, Daniela defende que a destruição das obras de arte e dos espaços e símbolos legisladores se dá porque em um país desigual, no qual a classe média percebe que o sistema liberal não dá conta dos seus desejos, “a lei e a arte são lugares de humanidade, que tratam a todos como iguais, na lógica de ser humano, por isso deve -se destruí-los”, conclui.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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