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Coluna | A favela sem paz e a cidade em desintegração

ODS 16 • Publicada em 23 de agosto de 2022 - 09:45 • Atualizada em 23 de agosto de 2022 - 09:48

Quando o Programa de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi implantado no Rio de Janeiro em 2008, parecia uma boa estratégia de ocupação de favelas, para combater seu domínio pelos traficantes e a violência armada, inspirada no policiamento comunitário, projeto de governo Brizola que não conseguiu avançar. As UPPs tinham base teórica e treinamento prático: os policiais precisavam, no começo do programa, passar por curso de capacitação e qualificação com objetivo de estabelecer uma nova relação com a favela.

Antes de desandar, as UPPs conseguiram a façanha de reduzir os tiroteios e o número de mortes nas favelas com a presença de suas bases. Conforme o planejamento, eram comunidades menores, que serviam como projetos-piloto, enquanto mais policiais passavam por treinamento para trabalhar nas favelas. Nas UPPs, o foco era evitar a violência armada, o tiroteio, o confronto; a repressão ao tráfico não fazia parte do cotidiano dessas unidades.

A coisa desandou porque o governo estadual resolveu acelerar a implantação – em manobra eleitoreira, a partir daquela fracassada ocupação do Complexo do Alemão – e despejou nas favelas policiais despreparados, em todos os aspectos, para as UPPs. E desandou porque, como em experiências anteriores para reduzir o poder do tráfico, a polícia foi a única ação do estado nessas comunidades: não foi seguida por políticas públicas de saneamento, de transporte, de saúde, de educação.

Se as UPPs que, efetivamente, tinham foco e estratégia não deram certo, era mais do que previsível o fracasso do tal programa Cidade Integrada, lançado de maneira improvisada pelo governo do Rio para dar respostas à Chacina do Jacarezinho – a desastrada operação policial que resultou em 28 mortes na favela da Zona Norte – e às cobranças do STF após a chamada APDF das Favelas, ação na justiça provocada pelo aumento das mortes pela polícia do Rio no começo da pandemia.

O Cidade Integrada começaria em duas favelas – Jacarezinho, reduto do Comando Vermelho, e Muzema, reduto de milicianos na Zona Oeste. A lógica era a de sempre: primeiro, a polícia ocupa; depois, entram as ações sociais. Seis meses após o lançamento do programa e 13 meses após o massacre no Jacarezinho, saiu agora em agosto uma pesquisa, com base em entrevistas dos moradores, que retrata o previsível fracasso. O levantamento – produzido pelo Observatório do Cidade Integrada, projeto de organizações da sociedade civil exatamente para ficar de olho no programa e seus resultados – mostra uma comunidade sem paz e dominada pelo medo, nesta cidade cada vez mais desintegrada.

Dos 387 moradores entrevistados, 69% responderam que se sentem mais inseguros com a ocupação da PM do que antes; 50% disseram que tiveram suas casas invadidas pela polícia sem mandado judicial; 30% afirmaram ter tido objetos roubados ou danificados; 45% viram vizinhos serem agredidos por policiais do Cidade Integrada – e 10% dos entrevistados foram, eles mesmo, vítimas da violência policial. Vale ver a pesquisa completa para entender o tamanho da rejeição dos moradores do Jacarezinho à ocupação policial.

Policial na Favela do Jacarezinho um ano após a chacina: pesquisa mostra que Programa Cidade Integrada levou mais insegurança aos moradores (Foto: André Borges / AFP - 06/05/2022)
Policial na Favela do Jacarezinho um ano após a chacina: pesquisa mostra que Programa Cidade Integrada levou mais insegurança aos moradores (Foto: André Borges / AFP – 06/05/2022)

Além da truculência dos policiais do Cidade Integrada, outra razão é, previsivelmente, a mesma de programas passados: vieram os agentes de insegurança pública e outros serviços do estado não apareceram. Dos 11 programas previstas para instalação na comunidade, só dois estão lá: a Horta Comunitária, programa da Secretaria de Agricultura que já existia no Jacarezinho antes do Cidade Integrada, e o Na Régua – projeto de obras e reformas (até R$ 15 mil) em casas de famílias com renda até R$ 3 mil.

A Polícia do Rio de Janeiro – provam outras pesquisas – é violenta e mal preparada. Vivemos no estado brasileiro em que os policiais mais matam (em números absolutos, proporcionalmente é a quinto) e em que os policiais morrem mais. Da operação mais letal da história do Rio de Janeiro, aquela do Jacarezinho, para cá, houve mais dois massacres: 23 mortos no Complexo do Alemão, em maio de 2022, outros 17 mortos no mesmo complexo de favelas em julho. Mas o fracasso da Cidade Integrada não é da polícia – policiais despreparados apenas pioram a iniciativa de outros desqualificados.

Há muitas coisas tristes na pesquisa com os moradores do Jacarezinho. Meu coração rueiro balançou com uma resposta: 76% dos entrevistados disseram que o Cidade Integrada prejudicou o lazer na comunidade. E qual a atividade prejudicada? Para 53%, as festas na rua; para 50%, crianças brincando na rua; para 46%, frequentar bares; para 38%, conversar com os amigos na rua. Moradores explicam que a rotina de correrias e tiros esvazia a rua. E a rua é o espaço de sociabilidade da favela. A cada tiroteio, o Rio de Janeiro morre um pouco.

E encerramos com um samba – Meu nome é favela, de Rafael Delgado – gravado por Arlindo Cruz porque samba rima com democracia e vida rima com rua: ‘Eu gosto de fritar, de jogar uma pelada/ Domingo de sol/ E fazer churrasquinho com a linha esticada/ Num poste passando cerol/ Cantar partido alto no morro/ No asfalto, sem discriminação porque/ Meu nome é favela’

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