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O Caso Moise e a necessária mudança na cobertura sobre escravidão contemporânea

ODS 16 • Publicada em 27 de janeiro de 2023 - 09:20 • Atualizada em 28 de janeiro de 2023 - 13:01

Foi preciso que o jovem congolês Moise Kabagambe fosse assassinado no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, há um ano, para que a imprensa prestasse atenção – com mais afinco – à cobertura do que acontece, mas nem sempre visibilizamos. Ou melhor: das coisas que não visibilizamos da maneira devida.

Foi feito um recorte na apuração para dar vazão à história trágica de um refugiado – que vivia com a mãe e os irmãos desde 2014 em nosso país – até a mobilização de pessoas em busca de justiça. Com um único objetivo: fazer com que a vítima, levada à morte após cobrar o pagamento atrasado, não fosse mais uma. E não só. Para que mais esse caso de escravidão não passasse despercebido.

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Dados do Ministério do Trabalho dão conta que mais de 2.500 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo apenas em 2022. Entre 2006 e 2020, ao menos 860 imigrantes foram resgatados de trabalho escravo no Brasil. No Rio de Janeiro, foram atendidos pelo ProjAI – Projeto Ação Integrada, do Ministério Público do Trabalho) – 26 trabalhadores imigrantes, provenientes de China, Venezuela, Paraguai e República Democrática do Congo, entre 2020 e 2022.

O Caso Moïse trouxe a questão da escravidão contemporânea para o centro urbano, em um lugar de lazer, onde normalmente acredita-se não ter esse tipo de violação de direitos humanos

Carol Bonfim
Coordenador do ProjAI (Projeto de Ação Integrada) do MPT

Um dia antes do assassinato de Moise completar um ano, foi lançado um manual dedicado aos profissionais de imprensa, com intuito de ampliar a discussão sobre o trabalho jornalístico acima do tema. A iniciativa reúne o Projeto Ação Integrada, do MPT/RJ, a Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo e o Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Rio de Janeiro.

Para a coluna, conversei como Caroline Bonfim, idealizadora do projeto com Yasmim França, que é categórica: ‘’A imprensa tem o papel fundamental de mostrar as diferentes faces da escravidão contemporânea’’.

Edu Carvalho: Como avalia a abordagem e repercussão de casos de escravidão contemporânea na mídia atualmente?

Carol Bonfim: A mídia é parte fundamental no combate à escravidão contemporânea. É inegável que após uma reportagem ser publicada, o número de denúncias aumenta e a população fica mais atenta ao trabalho escravo contemporâneo ao seu redor. Mas, por vezes, muitas reportagens acabam pecando na superexposição das vítimas. Divulgação no nome completo, nome de familiares, cidade de origem do trabalhador, nome dos ex-patrões, informações detalhadas sobre as indenizações recebidas (expondo o patrimônio dessas pessoas); esses são alguns exemplos de dados pessoais das vítimas expostos pela imprensa. Essa exposição muitas vezes impacta na segurança e na saúde física e mental das vítimas.

Edu Carvalho: De que maneira a imprensa pode contribuir de maneira mais incisiva, sendo um braço de apoio para esclarecimento e fortalecimento de direitos – e que os mesmos possam ser resguardados? (tendo em vista que só em 2022, 2.575 trabalhadores foram resgatados, mas nem 1/3 deles foram visibilizados).

Carol Bonfim: Noticiar a escravidão contemporânea e as fiscalizações é uma grande contribuição ao combate, mas alguns cuidados podem ajudar ainda mais na representação social dessa violação, e aumentar o número de denúncias. Como, por exemplo, evitar imagens de símbolos que tradicionalmente são usados para representar a escravidão (como correntes), pois acabam afastando a real condição da escravidão moderna, limitando a compreensão de que escravidão está restrita ao cerceamento da liberdade de locomoção e é muito maior do que isso; ou imagens que limitem a escravidão ao ambiente rural, trazendo para a realidade das grandes cidades, onde a escravidão moderna está em praias, residências, restaurantes, construção civil, etc; ter interesse sobre outras partes da vida dos trabalhadores resgatados (livros, atividades que goste de fazer), aproximando assim o público do personagem e compondo a ideia de que aquela pessoa é maior do que a violação que ela sofreu e ela poderia ser qualquer pessoa ao nosso redor; confirmar com o trabalhador resgatado quais informações realmente podem entrar na pauta (idade, nome, onde mora agora, com quem).

É importante comunicar, mas é importante também proteger e garantir que os direitos desse trabalhador não sejam mais violados, nem o direito a definir o que vai ser feito de suas informações pessoais. Esse trabalho de proteção não é só das equipes de atendimento e assistência, mas também dos jornalistas, especialistas e de toda a sociedade.

Protesto no quiosque onde o refugiado congolês Moise foi assassinado: mudança na cobertura da mídia sobre a escravidão contemporânea (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
Protesto no quiosque onde o refugiado congolês Moise foi assassinado: mudança na cobertura da mídia sobre a escravidão contemporânea (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Edu Carvalho: Acredita que o Caso Moise foi um corte na mudança de tom em relação a outros episódios com situações análogas?

Carol Bonfim: Acredito que o Caso Moïse trouxe a questão da escravidão contemporânea para o centro urbano, em um lugar de lazer, onde normalmente acredita-se não ter esse tipo de violação de direitos humanos. Nas praias, em grandes festivais de música, restaurantes, lojas de varejo, são locais onde as pessoas não associam a violações de direitos humanos, muito menos à escravidão contemporânea. Além disso, o fato dele ser um imigrante trouxe também questionamentos sobre as condições de trabalho dos imigrantes no Brasil. Muitos estão vulneráveis ao trabalho escravo contemporâneo e isso acaba sendo invisibilizado pelo estereótipo de escravidão contemporânea que se retrata. A imprensa tem o papel fundamental de mostrar as diferentes faces da escravidão contemporânea.

Edu Carvalho: É preciso que se aprofunde a cobertura sobre os índices de escravidão infantil, e por sua vez, uma maior sensibilidade em relação a ela?

Carol Bonfim: Sim, sem dúvida. O trabalho escravo infantil é uma realidade no Brasil e, muitos adultos resgatados da escravidão contemporânea hoje estão em situação de exploração desde a infância e deveriam ter sido protegidos quando crianças. A maioria das pessoas que o Projeto Ação Integrada RJ atende começou a trabalhar antes dos 16 anos e são grandes as chances de que filhos de trabalhadores explorados sejam vítimas de trabalho infantil. É importante que essa temática tenha mais espaço e que se amplie a noção das diferentes formas que pode ocorrer, para que as pessoas estejam mais atentas aos riscos. O trabalho infantil pode estar em uma proposta de crescer na carreira de atleta, por exemplo, ou na de modelo e é importante que as famílias e a sociedade percebam os sinais de que a proposta tentadora pode ser, sim, trabalho escravo infantil.

Cabe lembrar que, neste sábado (28/01), acontece um evento gratuito no Quiosque do Moïse, no Parque Madureira, com um café da manhã congolês preparado pela própria família do refugiado assassinado na Barra. A partir de 11h, uma mesa de debate sobre o tema do trabalho análogo à escravidão será realizada com a presença de representantes de instituições atuantes na causa do trabalho escravo e da migração. A programação ainda terá a Batalha do Slam das Minas RJ, coletivo artístico de poesia que dá visibilidade a mulheres heteras, lésbicas, bis ou trans, pessoas queer, agender, não binárias e homens trans.

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