Desastre contínuo: comunidades do Sul vivem encruzilhada um ano após enchentes

Desastre contínuo: comunidades do Sul vivem encruzilhada um ano após enchentes

Por Micael Olegário ODS 13

Inundações devastaram cidades e afetaram mais de 2,3 milhões de pessoas. Incerteza sobre o futuro segue presente no cotidiano dos gaúchos

Publicada em 29 de abril de 2025 - 00:13 • Atualizada em 29 de abril de 2025 - 09:35

O Rio Grande do Sul ainda convive com o pior e mais longo desastre socioambiental da história do Estado. Doze meses após o início das chuvas e enchentes que afetaram 2,3 milhões de pessoas em 478 dos 497 municípios gaúchos, muitas perguntas permanecem. Pelo menos 184 pessoas morreram (ainda há 25 desaparecidas), milhares ficaram desalojadas e desabrigadas. Cidades e bairros inteiros foram tomados pela água e, depois, pela lama. E o desastre não terminou quando as chuvas pararam.

As incertezas sobre o futuro são sentidas no cotidiano da família de Suzi Bolzan Zanon, 51 anos. Para ela, as chuvas deixaram marcas materiais, financeiras e emocionais. A família teve a casa inundada no bairro Campestre do Menino Deus, em Santa Maria (RS) e agora busca vender o imóvel para se mudar do local, com medo de novas enchentes. “Ainda está algo muito presente bem presente. Não sei se algum dia vai deixar de estar presente”, comenta Suzi.

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Na maioria das cidades, áreas que foram alagadas voltaram a ser ocupadas; porém a estimativa é que 100 mil residências tenham sido gravemente atingidas. De acordo com os dados oficiais, mais de 8 mil famílias receberam ajuda para o pagamento de aluguel ou foram beneficiadas com residências temporárias enquanto as casas definitivas são erguida em bairros diferentes. Um ano depois, centenas de famílias permanecem nesta encruzilhada – sem saber quando poderão ter um novo lar ou aguardando outras soluções.

Casas temporárias ocupadas por vítimas das enchentes em Cruzeiro do Sul. no Vale do Taquari: um ano depois da tragédia climática, milhares de pessoas ainda vivem incerteza sobre novos lugares para morar (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil – 27/05/4/2025)

Essa é a situação da família de Adelar Vitor de Lima. A casa onde o pedreiro morava no bairro Conservas, na periferia de Lajeado, foi destruída pela enchente do Rio Taquari. “Ficamos até o final, saímos quase por último (do abrigo)”, conta Adelar, sobre o período em que deixou o abrigo do Parque do Imigrante, perto do final de julho do ano passado (três meses após o desastre). 

Continuamos sem nenhum apoio do poder público e a única política efetiva foi a das cestas básicas

Baba Diba de Iemonja
Presidente do Conselho do Povo de Terreiro do RS

Desde então, o pedreiro passou a receber o aluguel social pago pela prefeitura de Lajeado. Recentemente, Adelar conseguiu acesso ao valor de R$ 200 mil, disponibilizado pelo governo federal para famílias atingidas pelo desastre comprarem novas casas. Agora, ele aguarda o processo de vistoria de um imóvel no bairro Montanha, para obter a liberação do valor pela Caixa Econômica Federal.

No momento mais grave do desastre, o Rio Grande do Sul chegou a ter 81 mil pessoas desabrigadas. Com o passar dos meses, o número foi sendo reduzido, mas não completamente. Até 23 de abril, 383 pessoas seguiam vivendo em oito abrigos espalhados em nove municípios. A maioria dos desabrigados está na região metropolitana de Porto Alegre, onde foram construídos os Centros Humanitários de Acolhimentos (CHAs) Vida e Esperança. O governo estadual divulgou que os dois centros devem ser encerrados em maio e as famílias transferidas para moradias temporárias, casas com 27 metros quadrados.

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Obras de reconstrução da ponte sobre o rio Caí, no km 174 da BR-116/RS, entre os municípios de Nova Petrópolis e Caxias do Sul – (Foto: Divulgação/DNIT – 06/11/2024)

Reconstrução

Diante da dimensão do que ocorreu, o Rio Grande do Sul recebeu uma onda de solidariedade. A mobilização também levou à criação da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, pelo governo federal. A pasta durou até setembro do ano passado, quando deixou de ter o status de Secretaria. Conforme dados do Tesouro Nacional divulgados em janeiro, R$29,016 bilhões de um total de R$40,66 bilhões já tinham sido destinados para a reconstrução do Estado.

No âmbito estadual, o governo gaúcho criou o Plano Rio Grande (Programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do Rio Grande do Sul) para atenuar os impactos socioeconômicos causados pelas enchentes em diferentes eixos de atuação. Até o início de abril, o Executivo gaúcho já tinha investido mais de R$6,7 bilhões em projetos para a reconstrução. Porém, as ações realizadas até o momento seguem o mesmo modelo de exploração ambiental e desintegração com a natureza.

Pelo programa “A Casa é Sua”, o governo estadual prevê a construção de 422 casas definitivas em 11 cidades, com investimento de R$58,7 milhões. “Em Santa Tereza e Encantado, que serão beneficiados com 24 e 35 casas, respectivamente, as obras já iniciaram; e em Estrela (20) e Lajeado (10) já foram assinadas Ordens de Início dos Serviços”, aponta nota enviada à reportagem pelo Executivo do RS.

A reconstrução, porém, não chegou para todos os setores da sociedade do mesmo modo. Presidente do Conselho do Povo de Terreiro do RS, Baba Diba de Iyemonja, conta que apenas 40% dos cerca de 750 terreiros afetados diretamente conseguiram retomar suas atividades e continuam em uma encruzilhada. “Continuamos sem nenhum apoio do poder público e a única política efetiva foi a das cestas básicas”, sobre as doações anunciadas em junho de 2024 pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR).

Baba Diba explica que as moradias populares, por exemplo, não fazem sentido para atender às necessidades dos terreiros, que se configuram como comunidades e não unidades familiares. “Estamos dialogando com algumas instituições para conseguir acessar alguma verba de reconstrução”, acrescenta, sobre a busca por alternativas.

Apuração feita pela Matinal Jornalismo mostrou que o Executivo gaúcho ainda não apresentou projetos para utilizar cerca de R$ 6,5 bilhões disponibilizados pelo governo federal, destinados para melhorias na infraestrutura de proteção contra cheias em cidades da região metropolitana de Porto Alegre. Os recursos são referentes ao Fundo de Apoio à Infraestrutura para Recuperação e Adaptação a Eventos Climáticos Extremos (FIRECE).

Contexto do desastre

Estudos mostram que o desastre foi intensificado pela ação humana, responsável pelas mudanças climáticas e pela consequente elevação das temperaturas do Atlântico Sul, um dos fatores que contribuiu para os altos volumes de chuva registrados entre abril e maio de 2024 no RS. As chuvas cada vez mais extremas têm sido registradas desde 1950 no sul, conforme mostra levantamento de pesquisadores do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). 

Além da questão meteorológica, o desmatamento de vegetações nativas e a desigualdade social também intensificam a catástrofe. A destruição de matas ciliares já tinha sido apontada como uma das potencializadoras das enchentes que atingiram o Vale do Taquari em setembro de 2023. Para completar, as ações de parlamentares e gestores gaúchos adicionam outro componente ao desastre, com uma série de “boiadas” e políticas anti-ambientais.

Assim como em outros eventos climáticos extremos, as inundações também foram sentidas de forma mais intensa por grupos da população historicamente marginalizados, como mulheres e crianças, pessoas pretas e povos de terreiro, imigrantes e refugiados, pequenos agricultores, assentados de reforma agrária e pessoas com deficiência.

Imagem da enchente no Bairro Sarandi, em Vila Brasília, na zona Norte de Porto Alegre (Foto: Mirian Fichtner)

Futuro

As previsões climáticas indicam que a vida dos gaúchos deve seguir na rota dos desastres, assim como toda a região sudeste da América do Sul. Em Santa Maria, Suzi Zanon teme novas enchentes e pretende mudar de casa assim que possível, para não reviver a madrugada em que a água invadiu seu lar. “Parecia uma zona de guerra. Foi a coisa mais horrível de ver”, relembra.

Em 2025, com a chegada do fenômeno La Niña, o Rio Grande do Sul enfrenta outro desafio: a estiagem. Um ano após as chuvas intensas, dados da Defesa Civil do RS apontam que 310 municípios já decretaram situação de emergência por conta da falta de água e de precipitações regulares. Cidades principalmente do Oeste e Noroeste têm sofrido com secas frequentes desde 2020, com impactos mais severos para pequenos produtores e trabalhadores do campo.

Diante desse contexto, imaginar o futuro se torna um exercício quase inevitavelmente distópico, não fosse pela ancestralidade. Se o desastre possui raízes no modelo econômico de desenvolvimento insustentável adotado no sul (e em outras partes do Brasil e do mundo) – iniciado com o colonialismo e sustentado pela colonialidade – a resposta precisa vir de outras cosmologias. À margem dos grandes centros modernos, os povos tradicionais do Pampa oferecem compreensões e alternativas para a integração e o envolvimento com a natureza.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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