Terreiros afetados por chuvas no Sul buscam se reerguer em meio ao racismo religioso

Lideranças apontam contexto de invisibilidade e preconceito como desafios para retomar atividades após desastre

Por Micael Olegário | ODS 10ODS 13 • Publicada em 30 de julho de 2024 - 09:50 • Atualizada em 7 de agosto de 2024 - 17:54

Mãe Isabel D’Oya trabalhando na recuperação do Terreiro Ilê Axé Oyawoyê após a enchente: falta de atenção com as religiões de matriz africana no estado com maior número de terreiros do país (Foto: Divulgação / Ilê Axé Oyawoyê)

Para além das chuvas e da lama, o racismo é outro desafio que as comunidades de religiões afro-brasileiras precisam enfrentar para reconstruir seus territórios sagrados no Rio Grande do Sul. De acordo com levantamento do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, pelo menos 750 terreiros foram diretamente afetados pelas chuvas e enchentes de maio no estado. Além do prejuízo material, a prática de religiões como umbanda e candomblé – que têm a natureza como parte do sagrado – sofre com os reflexos do desastre climático, social e político.

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“A tragédia do Rio Grande do Sul já tem cor e essa cor é negra”, afirma Baba Diba de Iyemonja, 60 anos, presidente do Conselho do Povo de Terreiro. De acordo com ele, além da necessidade de apoio emergencial, são necessárias políticas públicas que garantam os direitos religiosos das comunidades. “Não somos só estomago, precisamos morar e cultuar nosso sagrado, cuidar das nossas pessoas”, acrescenta o babalorixá da Comunidade Terreira Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô, na região metropolitana de Porto Alegre.

Nosso povo de terreiro teve dificuldade de acesso a alimentos e agasalhos, porque as estruturas de arrecadação de doações são na maioria evangélicas e muitas foram direcionadas para igrejas. Teve uma autoridade nossa que precisou orar com um pastor para garantir alimento para sua comunidade

Baba Diba de Iyemonja
Babalorixá da Comunidade Terreira Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô e presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul

Após ficar fora de casa por 28 dias, Babá Julinho d’Òsalá Òbokún, do Terreiro Ilê Àsé Òbokún, de Canoas (RS), detalha os desafios de voltar a realizar as atividades junto à comunidade local e recuperar o que restou das enchentes. “O tempo não está dando trégua, é um dia de sol e 30 dias de chuva. Então isso deixa a gente com bastante medo e receio, porque a terra está doente”, explica. 

No local, funcionava uma cozinha solidária para moradores de rua, ribeirinhos e famílias vulneráveis da comunidade. Babá Julinho afirma que aos poucos esse serviço está sendo retomado. No entanto, a biblioteca do terreiro ficou totalmente inundada e tudo foi perdido. As aulas de capoeira para crianças, de dança cigada para mulheres e de língua yorubá também seguem interrompidas por conta da necessidade de recuperação, limpeza e reforma.

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A situação é semelhante no Terreiro Ilê Axé Oyawoyê, que fica em São Leopoldo, no Vale do Rio dos Sinos. Uma das líderes da comunidade, a única de candomble do município, Mãe Isabel D’Oya conta os impactos da inundação na casa, móveis e, principalmente, nas plantas e no sagrado cultuado no local. “Tudo fundamentado na minha fé foi destruído pela ação humana sobre a natureza”, lamenta ela.

O terreiro fica em uma zona periférica da cidade e tem o trabalho sociocultural como um de seus elementos fundamentais. Com a subida da água e a lama que a acompanhou, a biblioteca, as indumentárias e utensílios usados na produção de marmitas para doação foram danificados e perdidos. “São várias reconstruções: a casa onde reside a iarolixá, do terreiro e o trabalho sociocultural, e tudo ao mesmo tempo”, descreve o Ogan Thiago D’Ossain, Alabe da casa.

Comunidade do Ilê Axé Oyawoyê entre jardins e ervas perdidos na enchente: terreiros tentam se reerguer em meio ao racismo religioso (Foto: Terreiro Ilê Axé Oyawoyê / Divulgação)
Comunidade do Ilê Axé Oyawoyê entre jardins e ervas perdidos na enchente: terreiros tentam se reerguer em meio ao racismo religioso (Foto: Terreiro Ilê Axé Oyawoyê / Divulgação)

Nas enchentes, o racismo se materializa

De acordo com dados divulgados na edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Rio Grande do Sul lidera o número de casos de racismo por habitantes. Em 2023, foram 2.857 notificações, um aumento de 13,2% em relação ao ano anterior. Em comparação com o tamanho população do estado, o dado equivale a 26,3 casos a cada 100 mil habitantes, muito superior à média nacional de 5,7. Tudo isso, no estado que possui o maior número de terreiros do Brasil, cerca de 60 mil. 

Baba Diba de Iyemonja destaca que os povos de terreiro nunca foram prioridade e, com o desastre socioambiental, o racismo religioso ganhou maiores proporções. “Nosso povo de terreiro teve dificuldade de acesso a alimentos e agasalhos, porque as estruturas de arrecadação de doações são na maioria evangélicas e muitas foram direcionadas para igrejas. Teve uma autoridade nossa que precisou orar com um pastor para garantir alimento para sua comunidade”, relata.

Nós precisamos, sim, mudar o pensamento. Não olhar pensando que Deus destruiu aquela casa. Nós não estamos falando de energia, nós estamos falando de algo que é concreto, que são as forças da natureza. E não existe dique que segure uma força da natureza. Nós precisamos ter uma mentalidade, um pensamento, voltado para a ecologia, para o ecologicamente correto

Mãe Isabel D'Oya
Líder no Terreiro Ilê Axé Oyawoyê, em São Leopoldo

O presidente do Conselho do Povo de Terreiro também comenta sobre o diálogo com o Ministério da Igualdade Racial (MIR) na busca por políticas para atender essas comunidades. “Nós sabemos que as demandas de vocês vão muito além das cestas de alimentos, e estamos aqui para ouvir as demandas do povo de terreiro e comunidades de matriz africana do estado”, afirmou a ministra Anielle Franco, durante visita ao Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô, em junho.

A busca por direitos e políticas públicas também levou à realização de uma audiência pública na segunda-feira, 15 de julho, na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS. Segundo Baba Diba, essas articulações são necessárias para romper com a invisbilidades das comunidades de matriz africana no estado.

Terreiro Ilê Axé Oyawoyê invadido pela lama: religiões de matriz africana sob ataque após enchentes ( Foto: Ilê Axé Oyawoyê / Divulgação)

Falta de consciência ambiental e racismo religioso

Entre a série de desinformações que surgiram com as enchentes no Rio Grande do Sul, grupos de extrema-direita se aproveitaram da situação para atacar as religiões de matriz africana. Um dos casos que mais repercutiu foi o da influenciadora religiosa Michele Dias Abreu que atribuiu as mortes e danos no estado à suposta “ira de Deus” contra os terreiros. O discurso de ódio levou o Ministério Público a denunciar a influenciadora mineira.

Sobre esse tipo de discriminação, Mãe Isabel D’Oya é categórica e explicativa: o desastre “não tem a ver com religião, mas com falta de consciência ambiental”. Ela critica o descaso do poder público com diversas questões ambientais, desde o saneamento básico até a forma como a sociedade enxerga os rios. “Nós estamos pagando as inconsequências que nós enquanto seres humanos cometemos, quando nós não preservamos, não cuidamos da natureza”, acrescenta Mãe Isabel. 

O sagrado a gente não perde, mas aquilo que alimenta o terreiro, que faz com que o terreiro ande, foi bastante prejudicado. O espaço, a terra, a fertilidade, os animais

Babá Julinho d'Òsalá Òbokún
Líder no Terreiro Ilê Àsé Òbokún, em Canoas

De acordo com a líder comunitária do Ilê Axé Oyawoyê, um dos elementos que potencializa o preconceito contra os terreiros está no fato destes atenderem grupos marginalizados. “O racismo religioso existe, porque as pessoas que casas como a nossa acolhem são invisíveis, às pessoas que a sociedade não quer enxergar”, destaca.

No caso do terreiro de São Leopoldo, são realizadas diversas ações para acolher profissionais do sexo e dependentes químicos, motivo pelo qual, Mãe Isabel D’Oya descreve seu território como uma espécie de quilombo urbano, de resistência contra a invisibilidade e o apagamento das tradições dos descendentes de africanos no RS.

Ao ser questionado sobre o que é necessário fazer de agora em diante, Thiago D’Ossain pontua que a reconstrução precisa ser pautada por uma mudança de atitude. Além disso, ele comenta sobre a dificuldade enfrentada para pautar políticas públicas dentro do próprio contexto das comunidades de terreiro do estado. De acordo com Thiago, que também faz parte do Conselho do Povo de Terreiro, os locais de candomblé muitas vezes possuem pouco espaço para reivindicar seus direitos e necessidades.

“Nós precisamos, sim, mudar o pensamento. Não olhar pensando que Deus destruiu aquela casa. Nós não estamos falando de energia, nós estamos falando de algo que é concreto, que são as forças da natureza. E não existe dique que segure uma força da natureza. Nós precisamos ter uma mentalidade, um pensamento, voltado para a ecologia, para o ecologicamente correto”, afirma Mãe Isabel D’Oya.

Julinho d’Òsalá, do do Terreiro Ilê Àsé Òbokún, de Canoas: “O sagrado a gente não perde, mas aquilo que alimenta o terreiro foi bastante prejudicado” (Foto: Reprodução)

O impacto no sagrado

Nas religiões afro-brasileiras, as plantas, ervas e a própria terra possuem um papel central para as práticas espirituais. No Ilê Àsé Òbokún, criado em 1982 pela mãe de Julinho d’Òsalá, a principal preocupação está em cuidar da terra para refazer a orixalidade. “O sagrado a gente não perde, mas aquilo que alimenta o terreiro, que faz com que o terreiro ande, foi bastante prejudicado. O espaço, a terra, a fertilidade, os animais”, descreve Babá Julinho.

O líder comunitário aponta que desde que a tragédia ocorreu, nenhum representante do poder público local foi até o terreiro e o seu entorno para ouvir as pessoas. “Precisamos de um cuidado, não só financeiro, mas psicológico. Eu ainda tenho muitas coisas que faço e me incentivam, mas e outras pessoas que não têm?”, menciona Babá Julinho, ao comentar sobre a grave crise econômica e social que a comunidade enfrenta.

Para Mãe Isabel D’Oya, do Ilê Axé Oyawoyê, relembrar da enchente é doloroso, porque quase não sobreviveu. Sem aviso sobre o risco que corriam, ela e outros membros da família, incluindo uma outra filha, na época grávida, resolveram ficar em casa, com a esperança de que a água não fosse subir mais. “Quando vimos a força da água e começamos a receber telefonemas pedindo para que nós saíssemos da casa, percebemos que a situação era pior do que se imaginava”, relata.

Depois de retornar para o terreiro, Mãe Isabel e Ogan Thiago tiveram outros impactos, ao perceber todas as roupas de orixás repletas de lodo. O pior, no entanto, foi perceber o impacto no sagrado. “O nosso jardim de plantas e ervas foi exterminado”, ressalta ela. Agora, o desafio está em obter apoio financeiro para repor as perdas materiais e apoio técnico para tratar o solo, para depois voltar a cultivar a terra.

Em nota enviada à reportagem do #Colabora, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) afirmou que colaba com a distribuição de cestas básicas para comunidades de terreiro gaúchas. O texto menciona a criação, pelo Secretário de Políticas Quilombolas do governo federal, Ronaldo dos Santos, do Plano Emergencial de Gestão Territorial e Reconstrução. “O objetivo principal da iniciativa é reconstruir as comunidades de terreiro afetadas, conforme os planos de atendimento definidos pela Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola. O plano também beneficiará grupos populacionais como ciganos e quilombolas, que recebem apoio da Secretaria. A ação tem uma previsão orçamentária inicial de R$ 1 milhão”, diz a nota.

Também consultada, a Secretaria da Reconstrução Gaúcha, órgão criado pelo governo estadual, afirmou que está investindo em ações para minimizar os impactos do desastre e auxiliar as comunidades afetadas. Ainda de acordo com a pasta, o estado está realizando um mapeamento técnico e georreferenciado das populações de matriz africana e povos de terreiro impactados. “Além disso, na revisão do Plano Plurianual do Estado do Rio Grande do Sul (PPA), foi inserida uma atualização que, se aprovada, vai servir como base para o Estado fomentar e criar parcerias com os municípios, no sentido de reconstruir casas de reza de matriz africana. Tanto do ponto de vista material como o imaterial”, continua a nota.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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