As distopias climáticas imaginadas por cientistas previam, no futuro, eventos extremos frequentes e intensos, com consequências devastadoras para cidades e regiões. Desde o final de abril, a população do Rio Grande do Sul vivencia essas previsões de perto – no presente. O maior desastre da história do estado deixou pelo menos 149 mortos e afetou mais de dois milhões de pessoas em 447 municípios – quase 90% das cidades gaúchas. Estudo feito por pesquisadores do ClimaMeter aponta que as mudanças climáticas tiveram papel fundamental na intensidade das chuvas e do desastre que atinge o estado.
Pesquisadoras ouvidas pela reportagem do #Colabora também destacam a contribuição da degradação ambiental causada pela ação humana nas enchentes no sul. Em algumas cidades, choveu o dobro e até o triplo da média do mês inteiro no intervalo de dois e três dias. Segundo especialistas, isso aconteceu por uma combinação de quatro fatores: a chegada de um sistema de baixa pressão; um bloqueio atmosférico atípico, que se formou por conta da onda de calor no centro do país e manteve esse sistema que causou as chuvas “estacionado” sobre o Rio Grande do Sul; o El Niño, fenômeno caracterizado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico; e a elevação anormal da temperatura das águas do Atlântico Sul, associado ao aquecimento global.
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No relatório elaborado pelo ClimaMeter (projeto de investigação de eventos climáticos extremos financiado pela União Europeia e pelo Centro Nacional de Investigação Científica da França), foram feitas análises comparativas a partir da atuação de sistemas de baixa pressão semelhantes ao que atingiu o RS em dois períodos de tempo: o primeiro de 1979 a 2001 e o segundo de 2002 a 2023, quando os efeitos das mudanças climáticas passaram a ser sentidos de forma mais intensa no planeta.
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Veja o que já enviamosEntre as conclusões do estudo, está o aumento em pelo menos 15% das chuvas que caíram sobre a região, particularmente em Porto Alegre, Caxias do Sul e São Leopoldo, em comparação com o que foi visto no passado, o que foi atribuído pelos pesquisadores como efeito das mudanças climáticas, com impactos maiores no atual desastre que o fenômeno El Niño. “Essas inundações impactam de forma desproporcional comunidades vulneráveis que são injustamente sobrecarregadas pelas consequências, apesar de terem pouca responsabilidade pelas mudanças climáticas”, afirma Davide Faranda, pesquisador do Instituto Pierre-Simon Laplace de Ciências do Clima (França) e um dos autores do estudo.
De acordo com Luiza Vargas Heinz, pesquisadora da área de hidroclimatologia e também autora do relatório, toda a região sudeste da América do Sul está na rota para eventos extremos do clima. “Tanto tendências observadas quanto projeções climáticas futuras mostram que as mudanças climáticas tendem a aumentar o número de eventos de extrema precipitação”, acrescenta Luiza, que faz doutorado no Centro Internacional de Física Teórica (ICTP) de Trieste, na Itália.
Extremos climáticos mais frequentes e fenômenos naturais em sequência
A ocorrência de fenômenos naturais como o El Niño, aquecimento do Oceano Pacífico, e La Niña, resfriamento destas águas, ocorre normalmente no intervalo de 2 a 7 anos, no entanto, essa frequência tem sido modificada. Entre 2021 e o início 2023, o Rio Grande do Sul passou por secas e estiagens severas, intensificadas pelo La Niña. Ainda em 2023 teve início o El Niño, atualmente em sua fase final e, segundo previsão do Centro Nacional de Monitoramento e Desastres Naturais (Cemaden), para o final de 2024 já existe previsão do retorno do La Niña. “Agora, estamos tendo fenômenos La Niña e logo depois temos o El Nino: não estamos passando por um período de transição”, aponta Simone Ferraz, professora de meteorologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Segundo a especialista, sistemas de alta e baixa pressão circulam pela atmosfera o tempo todo, porém, quando combinados com outros eventos como o bloqueio de umidade e calor, podem gerar chuvas volumosas e constantes. Neste contexto, o aumento da temperatura média global afeta diretamente o comportamento dos sistemas atmosféricos. Vale lembrar que 2023 bateu recorde como o ano mais quente da história em ao menos 100 mil anos. “Todo ano é o ano mais quente da história, então esse ritmo de aquecimento, e nesta rapidez, faz você ter ingredientes disponíveis para eventos mais extremos, ocorrendo com uma periodicidade maior. Se antes tínhamos uma chuva muito extrema a cada 10 anos, podemos começar a ter essa chuva muito extrema a cada 5 anos e talvez até com uma quantidade de chuva maior do que a gente esperava”, descreve Simone Ferraz.
Professora de meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Débora Simões explica que o entendimento sobre o comportamento do clima deve ser alterado pela degradação ambiental. “Se verificarmos mudanças mais duradouras na temperatura e demais parâmetros oceânicos, eles certamente serão reverberados sobre os continentes. No Rio Grande do Sul, vai alterando seu padrão de ventos, de temperatura e de fornecimento de umidade e, por fim, de chuvas”, aponta a professora, que pesquisa desde 2005 sobre mudanças climáticas e interação atmosfera e biosfera.
Ambas as pesquisadoras ponderam que são necessários estudos mais aprofundados para entender a dimensão da influência das mudanças climáticas sobre as chuvas e enchentes que atingiram o estado, com a utilização de metodologias que incluam, por exemplo, modelos atmosféricos numéricos. Ainda assim, Debora Simões lembra que as previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já faziam menção a eventos extremos mais intensos e frequentes nesta faixa do globo.
“No Rio Grande do Sul, por sua localização geográfica e pelos tipos de sistemas atmosféricos que aqui atuam, estamos inseridos em um cenário futuro de chuvas mais intensas e frequentes, que resultam em maior risco de episódios semelhantes ao que vivenciamos neste maio de 2024, bem como de secas mais severas como a que nos afetou drasticamente até 2023”, complementa a pesquisadora da UFPel.
Prevenção e planejamento antes dos desastres
Questionada sobre as ações para evitar novas tragédias, Luiza Heinz cita a urgência da transição energética e de interromper o desmatamento na Amazônia, uma vez que a destruição na floresta tropical também afeta o sul do país. A pesquisadora ressalta o que outros especialistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apontaram com relação à enchente do Guaíba, que inundou a capital e a região metropolitana de Porto Alegre. “O Muro da Mauá, por exemplo, necessitava de mais manutenção do que lhe foi dado. Investimentos na tecnologia do DMAE poderiam também ter reduzido a amplitude da falta de água potável na região de Porto Alegre”, acrescenta.
Na visão de Débora Simões, é necessário repensar a gestão das águas e investir em áreas verdes para formar bacias de contenção contra cheias e deslizamentos de terras. “As soluções são muitas, porém exigem planejamento, execução e manutenção e um envolvimento muito severo de gestores. Cada município apresenta peculiaridades específicas o que leva a soluções também específicas”, enfatiza a professora. “Você não consegue evitar que chova, mas você consegue evitar que as pessoas morram como se você tiver um plano de ação”, destaca Simone Ferraz.
A docente da UFSM indica a realização de mapeamento para prever o comportamento e as áreas afetadas no caso de enchentes. Segundo ela, isso evita a desorganização em situações de emergência. “As pessoas têm que ter um pouco mais dessa consciência: que o tempo não é só aquela previsão que a gente vê no celular: tem toda uma parte de pesquisa muito intensa por trás. Uma pesquisa cara. A pesquisa meteorológica não é barata, então, precisamos de mais apoio público e financiamento para pesquisas nas geociências, nas áreas ambientais, para que cada vez a gente consiga ter melhores previsões”, conclui a pesquisadora.