As chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul deixaram um rastro de destruição nas cidades do Vale do Taquari, região central do estado: a semana começou com 46 mortes confirmadas e, pelo menos, outras 46 pessoas estavam desaparecidas. A frente fria, que ganhou força no início da última semana, fez as águas do Rio Taquari subirem 13 metros acima do normal e atingirem a segunda maior marca da sua história: 29m45cm. Segundo especialistas, além do volume das chuvas e do ciclone extratropical, o desastre climático teve dois grandes agravantes: o desmatamento das matas ciliares e o crescimento urbano próximo às margens do rio.
A enchente, de acordo com a Defesa Civil, deixou ainda 4,6 mil pessoas desabrigadas e mais de 20 mil desalojadas, de um total de pelo menos 340 mil afetadas pelo maior desastre climático no estado. Em todo o Rio Grande do Sul, 79 municípios já decretaram estado de calamidade pública; muitos – em especial, os do Vale do Taquari _ têm um histórico de enchentes. “Os municípios de Estrela e Lajeado, assim como a maioria dos municípios situados no baixo curso da bacia hidrográfica do rio Taquari-Antas, sofrem frequentemente com a ocorrência de inundações”, explica Caroline Borges, doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Em sua tese, Caroline Borges pesquisa justamente a ocorrência de inundações e desastres socioambientais em Estrela e Lajeado, municípios gaúchos separados pelo Rio Taquari. De acordo com a geógrafa, além do fenômeno El Niño, que esquenta as águas do oceano e aumenta a intensidade das chuvas e ciclones extratropicais no Sul do Brasil e da crise climática que multiplica os eventos extremos, o desmatamento e o avanço da urbanização tiveram papel central no desastre do Vale do Taquari. “Um dos grandes problemas das inundações está relacionado com as ocupações de áreas de margens e com o desmatamento das florestas e matas ciliares, que tem protegem os corpos d’água”, explica a pesquisadora, que também é professora de Geografia na escola municipal Jorge Pedro Schmidt, em Estrela.
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Veja o que já enviamosMestre em Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade do Vale do Taquari (Univates) e professor do colégio Gustavo Adolfo, em Lajeado, Willian Hope chama atenção para a ocorrência cada vez mais frequente de eventos extremos. “Cheias, por exemplo, podem ser influenciadas por uma variedade de fatores, incluindo mudanças nos padrões de precipitação (muita chuva em pouco tempo), atividades humanas como urbanização e desmatamento, além de variações naturais no clima”, explica.
Os dois pesquisadores destacam que as características geológicas e hidrológicas do Vale do Taquari, por si só, já contribuem para a ocorrência de inundações na região. “A região possui uma topografia caracterizada por planícies e colinas suaves. Essa configuração facilita a acumulação de água durante períodos de chuvas intensas”, aponta Willian Hope. Isso acontece também porque a bacia onde fica o rio Taquari é abastecida por diversos afluentes da parte norte e da serra do Rio Grande do Sul. Já na porção mais próxima da foz, localizada na bacia do Jacuí, o rio Taquari apresenta formações geológicas como colinas, terraços fluviais e planícies de inundação. Nessa área, chamada de baixo curso, estão alguns dos municípios mais afetados pelas enchentes, como Lajeado e Estrela, onde o rio atingiu a marca de 29m45cm.
De acordo com Caroline Borges, quando chuvas intensas e volumosas ocorrem, os arroios e canais que alimentam o rio Taquari atingem seu limite. Para completar, a bacia é considerada urbana, ou seja, apresenta um grande número de cidades próximas ao curso do rio, “o que agrava a ocorrência dos desastres naturais por causa da concentração da população em determinadas áreas, principalmente as que são consideradas de risco”, acrescenta a doutoranda. A falta de um planejamento adequado para ocupar as áreas das margens dos rios, com uso de técnicas construtivas inadequadas, e o crescimento acelerado das cidades são outros dois pontos mencionados pela pesquisadora.
Não por acaso, as matas ciliares possuem um nome que faz referência aos cílios que protegem os olhos humanos. Essa vegetação acompanha os cursos de água, evitando o processo de assoreamento, quando por conta da erosão e da falta de cobertura vegetal, detritos, esgotos e lixo são carregados para os rios. “Quando se constroem estradas, casas, prédios e outras edificações, o solo está sendo impermeabilizado com cimento e asfalto, impedindo que a água da chuva seja absorvida e fazendo com que ela escoe diretamente para os rios, aumentando seu nível rapidamente”, explica a doutoranda da UFRGS.
Tendência de mais eventos extremos
Willian Hope lembra que o rio Taquari segue um curso natural e que cheias são eventos normais, o que muda é a forma como se dá a ocupação humana da região, que também faz parte de um processo histórico de formação de cidades ao longo de rios e córregos. “Torna-se cada vez mais importante a implementação de políticas públicas de urbanização e parcelamento adequado do solo. Além, é claro, da conscientização das pessoas com relação à preservação ambiental como um todo”, destaca o professor.
O professor destaca que é inegável o impacto da crise climática no estado. “O Rio Grande do Sul perdeu quase 40% da safra de soja pela falta de chuva no início do ano e, agora, pelo excesso de água, perde dezenas de vidas humanas, casas e centenas de animais”. Nesse meio tempo, o Rio Grande do Sul já havia sido atingido por outro ciclone extratropical que matou 13 pessoas e deixou milhares desabrigados, em junho deste ano.
A realidade de desastres em sequência mostra que eventos naturais como inundações, tempestades e o El Niño, têm sido intensificados pelas ações humanas, que levam às mudanças climáticas, como explica Caroline Borges. “O aumento da temperatura global pode levar a uma aceleração do ciclo hidrológico, aumentando a intensidade e a frequência de eventos extremos”. No caso do desastre do Vale do Taquari, entram na lista dessas ações o desmatamento de matas ciliares e a expansão desordenada de áreas urbanas.
Ainda na última sexta-feira, o governo gaúcho liberou R$1 bilhão em créditos para os municípios atingidos, além de mobilizar, em conjunto com o governo Federal, diversos serviços e recursos para atender às vítimas das enchentes. No entanto, apenas isso não basta para prevenir outros prováveis desastres. “Podemos afirmar com certeza que precisamos de políticas públicas que deem conta de assistir as famílias de forma adequada e, em nível global, procurar formas de minimizar o aumento das temperaturas”, pontua Willian Hope.