Para a família de Adelar Vitor de Lima, o futuro está em suspenso. Desde que a enchente levou tudo que tinham em casa, ele e a família passam os dias no abrigo do Parque Imigrante, em Lajeado (RS). A cidade do Vale do Taquari, no interior do Rio Grande do Sul, foi uma das mais afetadas pelo pior desastre climático da história do estado. Nos abrigos, as pessoas recebem comida, acesso a higiene, assistência e um lugar para dormir, mas há algo que falta e que não é simples de ser mensurado. “Não temos liberdade, não temos a dignidade que precisamos”, desabafa Adelar, ao lado da esposa Valeria Cristiane Antunes e da filha Pamela.
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Desde abril, o pedreiro vive de bicos e doações. Morador de Lajeado há 42 anos, Adelar alugava uma casa na rua Dois Irmãos, no bairro Conservas, área da periferia de Lajeado e uma das mais atingidas pelo desastre. “A casa e todas as coisas foram embora”, conta. A situação é semelhante a das outras 67 famílias que somam um total de 157 pessoas morando no Parque do Imigrante. Elas continuam no abrigo não por escolha própria, mas por serem vítimas reincidentes: das enchentes, do racismo ambiental e das desigualdades sociais e econômicas.
Segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Social do RS, atualizados no domingo (14/07), 104 abrigos seguiam ativos com 4.426 pessoas em 41 cidades do estado. A maioria dos locais onde estão os desabrigados fica na região metropolitana (35,31%), seguida pelo Vale do Taquari (32,35%). Em Lajeado, até quinta-feira (03/04), 170 pessoas de 70 famílias estavam em dois abrigos, a maioria no Parque do Imigrante e as demais no Ginásio Conservas, na periferia da cidade. No pior momento do desastre, em 2 de maio, o município chegou a ter 1.336 pessoas desabrigadas em 10 diferentes locais.
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Veja o que já enviamosQuando a reportagem do #Colabora esteve em Lajeado e visitou os dois abrigos, o inverno gaúcho dava uma mostra evidente de um desafio que as famílias desabrigadas encaram: o frio intenso. Adultos e crianças buscavam o almoço, distribuído por funcionárias da Secretaria de Desenvolvimento Social do município. Era meio-dia e o sol não havia aparecido, no seu lugar, um vento gelado soprava do sul.
“Estou aqui no parque desde o dia 30 (de abril), não por não querer sair, porque aqui é muito frio e difícil, mas porque não se acha casa”, explica Maria Venturina Lisboa, 68 anos, enquanto segurava alguns utensilios de louça, em busca de uma das torneiras do lado de fora dos pavilhões onde ficam instaladas as famílias. Aposentada, ela alugava uma casa na Rua Silva Jardim, próxima ao Rio Taquari, há apenas dois meses, quando foi obrigada a sair, salvando apenas alguns dos móveis, roupas e itens essenciais.
No abrigo, Maria Venturina divide o espaço com mais cinco pessoas da família, entre filhos, netos e bisnetos, incluindo uma bebê de apenas 6 meses. Natural de Encantado, outra cidade do Vale do Taquari, ela conta que cresceu convivendo com as cheias do rio. Porém, desde que veio para Lajeado em 2019, passou por situações extremas. No ano passado, enfrentou duas enchentes e, na de outubro, perdeu tudo. “Eu chorei a noite toda”, revela.
Agora, apesar de Maria ter conseguido acesso ao aluguel social pago pela prefeitura, o preço pedido pelas imobiliárias da cidade torna a busca por um novo lar em um verdadeiro desafio. Depois do desastre, a procura por casas fez o preço dos aluguéis na cidade subir. Como a maioria é negociada por imobiliárias, estas pedem de dois a três meses de adiantamento, o chamado calcão, algo que não é coberto pelo aluguel social e que a maioria das famílias não têm condições de pagar.
Idosos sofrem nos abrigos
“Estou desanimado. Não vejo a hora de sair daqui”, afirma Rube Cardoso, 65 anos. O idoso está no abrigo do Parque Imigrante com o filho, a nora e dois netos. Entre uma resposta e outra, Rube conta parte de sua história de vida, marcada pelo trabalho braçal durante muitos anos. Assim como as demais pessoas que ficam no local, ele ressalta que recebe alimentação e assistência, porém, a falta de um lugar para descansar é o que o deixa agoniado. “Sou velho, preciso ter o meu cantinho”, aponta.
A casa de Rube também foi perdida com a enchente. Mesmo que seu filho e nora tenham conseguido o Auxílio Reconstução de R$5,100, pago pelo governo federal para as famílias atingidas pelo desastre climático no estado, o dinheiro é rapidamente gasto entre várias necessidades e coisas a se recuperar.
Com uma cuia de chimarrão na mão, Adriana Alves, 51 anos, conta que aguarda o benefício emergencial para tentar comprar uma cama, perdida na enchente. Com problemas de saúde, ela tem passado dificuldades para dormir no chão e, quando levanta de manhã, sente muita falta de ar. Com o auxílio da equipe do abrigo, ela conseguiu ir consultar no início de julho.
Desde maio sem ter uma casa, Adriana também morava no bairro Conservas. Ela conta que, quando a água começou a subir, orientou o marido e o filho mais velho, com quem está no abrigo, a organizar os móveis e chamar a defesa civil. “O que eles conseguiram tirar, com a água até em cima da escada, foi a geladeira, o fogão, a máquina de lavar, algumas louças e roupas, o resto: saúde e barco para frente”. Natural de Lajeado, ela nunca tinha sido afetada por uma cheia. mas agora teme ter de passar por isso de novo. “Tenho pânico, não posso ver essas coisas (água subindo)”, relata Adriana.
Pressão para deixar locais
Ao sair do Parque do Imigrante em direção ao bairro Conserva, é visível uma dicotomia: na área mais central da cidade, a maioria das ruas já foram limpas, mas a aproximação com a periferia revela marcas de lama por toda parte. Em meio às casas destruídas, caminhões e máquinas atuam na limpeza de algumas das ruas que ficam nas margens do rio. Ainda há muito trabalho para ser feito.
Logo na chegada do Ginásio Conservas, onde fica o outro abrigo ativo no município, dois homens conversam. Após saberem da reportagem, eles sentem receio de ter seus nomes divulgados, mas aceitam falar. Reclamam da pressão feita pela prefeitura para que saiam do abrigo, do desamparo de estar há tanto tempo sem casa e dos preços abusivos dos aluguéis cobrados pelas imobiliárias da cidade.
Outro ponto citado é com relação às moradias prometidas pela prefeitura. “Tem gente esperando moradia desde setembro do ano passado. Agora, com mais esse desastre, ninguém tem uma resposta”. Além disso, os dois contam que a prefeitura de Lajeado tem oferecido materiais para que as pessoas façam a reforma de suas casas, no entanto, a mão de obra teria que ser custeada pela própria pessoa, em áreas que ficaram debaixo d’água.
“Como vamos reformar uma casa em um lugar que pode ser alagado de novo?”, questiona um dos moradores. Ambos ressaltam a dificuldade enfrentada para voltar a trabalhar e as consequências psicológicas e sociais do desastre, o que tem feito com que muitos não consigam comer. Eles pontuam a preocupação com o futuro e a falta de soluções concretas por parte do poder público local.
Questionada sobre a situação das pessoas nos abrigos e sobre as denúncias dos moradores, a prefeitura de Lajeado informou que fornece assistência, alimentação e moradia para as pessoas nos abrigos, além de realizar o cadastro nos programas de auxílios do governo federal e estadual. “As famílias são convidadas para buscar imóveis de seu interesse por meio do aluguel social para que possam sair do abrigo e ter sua privacidade e seus direitos pessoais garantidos, deixando a necessidade do convívio coletivo no abrigo”, diz a nota.
A prefeitura afirmou que paga, com recursos próprios, até R$1.000 em aluguel social para que as famílias busquem uma casa. “A negociação com a imobiliária deve ser feita pela família, porque é um imóvel do seu interesse. Já há 600 aluguéis sociais em andamento no município”. Em relação à reconstrução de moradias, a nota diz que: “materiais são doados a quem pode reconstruir ou consertar sua casa em locais nos quais é permitida a construção no município pela lei do Plano Diretor, que é a partir da cota 27 metros”. Segundo dados do Serviço Geológico do Brasil, o nível do Taquari chegou a 31,2 metros em maio, o maior da história. A nota também cita que o município trabalha para viabilizar a infraestrutura para projetos habitacionais de construção de 400 moradias em terrenos não inundáveis da cidade.
Retomada em meio a incertezas e crise econômica
“A gente é praticamente esquecido. Tem que olhar para o povo aqui de baixo, o centro foi logo limpo, mas os bairros aqui são esquecidos”. A frase é de Evandro Marin, 39 anos, dono da Agropecuária Atacado da Ração, que funciona há 12 anos na Avenida Beira Rio, nas margens do Rio Taquari. “Enchente assim acho que ninguém viu. Até fiquei surpreso que o prédio ficou no lugar”, conta o empresário. Evandro retomou o trabalho no início de junho, com o objetivo de reconstruir sua casa, que ficava na parte de cima da loja e ficou praticamente destruída.
Na conversa com o dono da agropecuária, outra dimensão do desastre climático se escancara: a crise econômica que já é sentida pelo Rio Grande do Sul. Pesquisa feita pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) aponta que, até agosto, a atividade econômica do estado deve ter uma queda de 4,2% do que era esperado para 2024, o que deve anular o crescimento do PIB gaúcho para este ano.
A situação também afeta a arrecadação dos municípios, o que tem motivado a mobilização da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs). “Os municípios estão à beira de um colapso financeiro. Perdemos nos meses de maio e junho 25% da arrecadação do ICMS do governo do Estado. Foram R$2 bilhões a menos nos caixas das prefeituras”, afirmou Marcelo Arruda, presidente da Famurs, durante a Marcha a Brasília pela Reconstrução dos Municípios do RS.
Segundo Evandro, as vendas caíram muito desde que reabriu a loja, reflexo do fato da maioria das pessoas não ter voltado para casa. Questionado sobre a decisão de continuar no mesmo local onde já tinha sido afetado pela enchente de setembro, o empresário afirma que não tem muitas alternativas e precisa trabalhar para recuperar o que perdeu. “Também tenho medo. Dessa vez foram perdas estruturais, da outra tinha perdido todo o estoque. Ninguém quer ficar aqui, está todo mundo saturado dessas enchentes”, desabafa Evandro, que cita a dificuldade imposta pela própria prefeitura para retomar suas atividades e a falta de auxílio para o setor. “Praticamente fui impedido de voltar, estou aqui porque preciso”.
Associação reivindica dignidade e políticas públicas
“As pessoas que realmente perderam suas casas não têm para onde voltar”, destaca Ester Almeida. Uma das voluntárias da Associação Marinês – ONG que atua com diferentes projetos sociais em Lajeado – ela reclama da falta de dignidade e de atenção humana para as pessoas afetadas pelas enchentes. Moradora do bairro Santo Antônio, Ester não foi diretamente atingida, mas atuou na linha de frente de suporte durante a enchente.
Quando o desastre começou, os voluntários da associação organizaram um local para arrecadar doações e produzir marmitas para as pessoas desabrigadas e desalojadas no município. “Teve um momento que faltou água em Lajeado todo, então fomos levar água para as pessoas”, complementa Ester, que critica o setor público e o tratamento destinado para as pessoas da periferia. “Não é só dar uma cesta básica, precisa cuidar dessas pessoas, da saúde física e mental”.
Segundo ela, desde setembro a comunidade tem reivindicado respostas com relação ao aluguel social e o atendimento de outros direitos da população. Um dos problemas observados por ela é a falta de políticas de caráter prolongado para a recuperação da renda das pessoas após o encerramento do aluguel social, previsto para durar de três a dez meses.
“As pessoas não querem ficar onde estão. É desumano o que estão passando. Não tem nenhuma dignidade”, comenta Ester sobre a situação das pessoas em abrigos. Além destas, a voluntária da Associação Marinês recorda que ainda existem muitas famílias desalojadas – morando na casa de parentes e conhecidos, mas igualmente com dificuldades para voltar a ter um lar, com suas vidas em suspenso. Uma realidade cada vez mais constante para os gaúchos e brasileiros deslocados pelas mudanças climáticas, causadas pela degradação ambiental e potencializada por desigualdades econômicas, raciais, políticas e sociais.