Testemunhas e moradores denunciam execuções e torturas no Rio: 121 mortos

Para o governador Claudio Castro: a operação policial, oficialmente, com 121 cadáveres contabilizados, foi um "sucesso"

Por Agência Brasil | ODS 16
Publicada em 29 de outubro de 2025 - 20:30  -  Atualizada em 29 de outubro de 2025 - 20:31
Tempo de leitura: 12 min

Funcionários do IML retiram cadáveres de praça na Zona Norte do Rio: 121 mortos e denúncias de execuções e torturas (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)

A operação policial realizada nesta terça-feira (28) contra o tráfico de drogas nos complexos da Penha e do Alemão, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, foi marcada por execuções e torturas e classificadas como carnificina por moradores, parentes dos mortos e pela Associação de Moradores do Parque Proletário da Penha.

A reportagem da Agência Brasil esteve no local e entrevistou testemunhas que tentaram socorrer as vítimas nas primeiras horas ou ajudaram na remoção dos corpos. Segundo a contagem oficial do governo do estado, são ao menos 121 vítimas. É a operação mais letal da história da capital fluminense.

Para impedir a fuga dos suspeitos, a estratégia das polícias foi invadir as comunidades e montar “um muro” com agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope), bloqueando a fuga pelo alto da mata que circunda as duas comunidades. No local, segundo os relatos, se deu o confronto mais violento, com sinais de tortura e execução de dezenas de corpos resgatados e dispostos na manhã de hoje em frente à associação comunitária, na Praça São Lucas, na localidade conhecida por Vila Cruzeiro.

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“A gente ouviu os gritos e pedidos de socorro e subiu para ajudar. Eu moro perto. Entrei na mata 3h da manhã.”, contou um morador. O homem, de 25 anos, que preferiu não se identificar, contou que, naquele momento, a polícia ainda estava no local e tentou impedir a ajuda. “Eles não paravam de dar tiro, tacar bomba de gás [lacrimogêneo] e, em muitos momentos, a gente teve que se proteger. Eles dando tiro, a gente se escondendo no meio dos corpos para prosseguir”, relatou.

A testemunha esteve, mais cedo, no Instituto Médico-Legal (IML) para tentar liberar o corpo de um primo, morto na operação. Na tentativa de socorro, o homem revelou que o cenário na mata era desolador. “A gente encontrou muitos mortos sem camisa, fuzilados, com mãos e dedos decepados e também decapitados. Eu vi bem uma cabeça que estava entre os galhos de uma árvore e o corpo jogado no chão”, disse.

Ele mostrou à reportagem o vídeo da vítima encontrada nessas condições, identificada como Ravel. Fotógrafos que estiveram na área mais cedo também encontraram vítimas mortas com a cabeça cortada por faca. Segundo a testemunha, os moradores que participaram do resgate acessaram ainda celulares encontrados no local ou receberam áudios das vítimas contando que tinham se rendido, antes da execução, contrariando a versão do governo do estado de que os mortos foram vitimados em confronto. “Vocês viram os vídeos dos meninos saindo do bunker, ontem, se entregando? Eles não são um terço dos que se entregaram. Teve gente que pediu perdão, se ajoelhou, jogou os fuzis, mas foi morta”.

O presidente da associação comunitária de Parque Proletário, Erivelton Vidal Correa, em entrevista na sede da entidade, na Penha, confirmou o depoimento da testemunha ouvida pela Agência Brasil e disse que desde às 19h da noite de terça, as famílias tentavam subir a mata para ajudar as vítimas. Ele avaliou que, se o socorro tivesse chegado antes, possivelmente, o número de mortos poderia ter sido menor.

A entidade chegou a levar seis baleados para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, ontem, mas eles chegaram mortos à unidade. “Retiramos um total de 80 corpos da área conhecida como Mata da Pedreira, com o nosso sistema, nossa mão de obra. Pedimos aos moradores que trouxessem lençóis, toalha, canga, o que tivessem, para ajudar com as remoções”, contou Correa.

Erivelton Vidal Correa, presidente da Associação Comunitária do Parque Proletário da Penha: “Muitos corpos deformados, com perfurações no rosto, perfurações de faca, cortes de digitais, dois corpos decapitados” (Foto: Tânia Rego / Agência Brasil)

Tortura e execuções

O presidente da associação também confirmou os sinais de tortura e execuções: “Muitos corpos deformados, com perfurações no rosto, perfurações de faca, cortes de digitais, dois corpos decapitados, a maioria dos corpos não tinha face, essa era a condição”. Entre eles, o de dois irmãos manauaras. “Eles foram mortos abraçados com um tiro na cara cada um e tiveram as digitais cortadas”.

Segundo Correa, durante todo o período de 11 anos que esteve na associação da Penha, nunca tinha se deparado com cenário tão violento. “Foi uma arbitrariedade muito grande. A gente sabe que o Estado tem que trabalhar, mas trabalhar direito, o que aconteceu aqui foi um genocídio, uma carnificina”, disse.

“Eu não estou aqui para falar das escolhas de vida de cada um. Não estou aqui para falar nem mal, nem bem, da polícia ou do tráfico. Agora, todos os corpos que nós pegamos ali, antes, eles estavam vivos nas mãos deles [da polícia]. Eles podiam prender, mas não, mataram e largaram no mato”.

Essa é a mesma opinião de Paula*, uma moradora que acompanhou a chegada dos corpos à sede da associação. “Foi um esculacho desnecessário. Se eles [polícia] vieram para fazer busca e apreensão, tinham que ter feito, e não matar a facada, tirar a cabeça, além dos policiais, os que estavam aqui também têm família, mãe, pai, esposa, filhos. E foram encontrados neste estado”, disse.

Entre as vítimas, além de suspeitos de tráfico de drogas, Vidal Correa denuncia que há moradores. “São pessoas daquela região, que a gente chama de ‘lá de trás’ e que criavam cavalos. Eles vão no mato buscar comida para os animais. Então, infelizmente, estavam no momento errado, na hora errada e sofreram perdendo a vida”, denunciou. “Esperamos que isso seja esclarecido”, completou. Hoje mesmo o IML começou o reconhecimento e liberou os primeiros corpos para enterro.

Perguntado sobre a razão de a polícia ter optado por deixar as vítimas mortas no local e até impedido o socorro, Vidal acredita que a opção foi para não gerar provas. “Se levassem para o hospital ou chamado a delegacia, ia comprovar o genocídio. Era mais conveniente largar para trás”, completou.

A Agência Brasil também ouviu o dono de uma agência funerária que atua na comunidade há 22 anos. Fernando Argivaes coordenou um grupo de seis pessoas que ajudou no resgate e deu o mesmo relato: “O estado dos corpos é precário. Foi uma verdadeira chacina, uma carnificina”, disse. Eles encontraram pessoas mortas na mata, entre as pedras e chegaram a usar uma escada de eletricista. “Os corpos ficaram lá no meio do mato, na pedreira, gente que foi executada no local, pela maneira que foi, não foi auto de resistência (em confronto). Estavam escondidos e foram executados quando encontrados.

Foi Fernando que chegou ao corpo dos dois irmãos de Manaus mortos abraçados e fez a remoção. Ele informou que haverá o traslado dos mortos, assim que houver a liberação pelo IML. A maior parte dos corpos deve ser liberada somente amanhã (30), a partir da identificação pela Polícia Civil.

Mães de mortos também questionaram a operação e denunciaram execuções de rendidos. “Está ouvindo os tiros?”, pergunta Elizângela Silva à reportagem, enquanto exibe um vídeo de celular gravado de dentro da mata. “Eles estavam vivos quando a gente tentou subir a mata e a polícia jogou tiro contra nós”. Ela é vizinha da mãe de uma das vítimas. “O menino pediu ajuda de manhã: ‘mãe, me ajuda, pelo amor de Deus’, mas chegou de noite, eles pegaram e mataram todos que estavam lá”. Outras mães também denunciaram arbitrariedade contra jovens que já tinham se rendido.

Protesto contra a operação policial mais letal da história, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do Rio: denúncias de execuções e torturas (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

Para governador, operação com 121 mortos foi um sucesso

O governador do Rio, Cláudio Castro, disse nesta quarta-feira (29) que a Operação Contenção foi um sucesso e que as únicas vítimas dos confrontos foram os policiais mortos. “Temos muita tranquilidade de defender o que foi feito ontem. Queria me solidarizar com as famílias dos quatro guerreiros que deram a vida para libertar a população. Eles foram as verdadeiras quatro vítimas. De vítima ontem, só tivemos os policiais”, disse Castro em entrevista no Palácio Guanabara, sede do Executivo estadual.

O governador destacou que o estado do Rio é o epicentro do problema da segurança pública que “assola o Brasil”. “Mostramos ontem um duro golpe na criminalidade e que temos condições de vencer batalhas. Mas temos a humildade de reconhecer que essa guerra não será vencida sozinhos. Agora é momento de união e não de politicagem”, afirmou Castro.

Especialistas em segurança criticaram a matança promovida pela operação policial. Para a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jacqueline Muniz, a operação foi amadora e uma “lambança político-operacional”. Movimentos populares e de favelas já haviam condenado as ações policiais, afirmando que “segurança não se faz com sangue”.

Nesta quarta-feira, já houve protestos contra o matança policial nos complexos da Penha e do Alemão, tanto na região das comunidades na Zona Norte do Rio quanto em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo estadual. O advogado Albino Pereira, que representa algumas das famílias, disse que há sinais claros de tortura, execução e outras violações de direitos. “Você não precisa nem ser perito para ver que tem marca de queimadura [na pele]. Os disparos foram feitos com a arma encostada. Chegou um corpo aqui sem cabeça. A cabeça chegou dentro de um saco, foi decapitado. Então isso aqui foi um extermínio”, apontou.

Agência Brasil

A Agência Brasil é uma agência de notícias pública, fundada em 1990 e gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), estatal do governo brasileiro

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