Imagine o local onde você está debaixo d’água. Toda a mobília e os utensílios molhados, as paredes marcadas pela lama. Essa foi a experiência vivenciada por milhares de pessoas no Rio Grande do Sul após as chuvas e enchentes de abril e maio de 2024. A provocação das imagens do desastre socioambiental também motivaram a criação do projeto “Água até aqui”. Através de uma mobilização coletiva, a iniciativa fez da arte visual um instrumento de conscientização e memória.
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Idealizado por um coletivo de profissionais da comunicação, a ação produziu um adesivo com a frase: “Água até aqui” para ser colocado em diferentes pontos da cidade de São Paulo. A intenção era chamar atenção para os impactos da crise climática e sensibilizar outras pessoas sobre o drama enfrentado pelos gaúchos.
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Veja o que já enviamos“O mérito foi provocar a consciência a partir da experiência e chamar atenção da causa, buscar a arrecadação (de doações) e consciência em um nível mais amplo”, explica Daniel Pinheiro, produtor visual e um dos criadores do projeto, ao lado dos empresários Gabriel Gomes e Rodrigo Vieira da Cunha, e de Marcos Oliveira, designer responsável por criar a arte visual.
Acabou sendo uma ideia que serviu também a quem estava no local, registrando e deixando marcado para memória do que aconteceu
Porém, a iniciativa não ficou restrita apenas à conscientização. Ao ter acesso ao adesivo, muitas pessoas afetadas pelas enchentes o utilizaram para sinalizar os locais em cidades gaúchas onde a água realmente chegou e deixou marcas. Esse é o caso do Coletivo Mato do Júlio de Cachoeirinha, município localizado na região metropolitana de Porto Alegre.
“Traz essa conscientização, mesmo para quem não sentiu na pele, mesmo para quem saiu de casa no primeiro dia de chuva. Serve para conscientizar que todo mundo tem de lutar para que nossos direitos ambientais sejam preservados”, destaca Isadora Córdula, publicitária e integrante do coletivo.
Criado em 2019, o coletivo ambientalista surgiu com o objetivo de proteger a última floresta de Cachoeirinha, chamada de Mato do Júlio. A área de 256 hectares possui uma biodiversidade riquíssima, com cerca de 113 espécies de fauna e flora. Além disso, pesquisa feita pelo geógrafo Alan Costa da Silva aponta que a vegetação funciona como uma “esponja natural” que ajuda a reduzir os impactos de enchentes na região.
Arte e provocação
Formado em Direito Ambiental, Daniel trabalha com produção audiovisual há cerca de 20 anos e, durante a pandemia, começou a se aproximar de projetos sociais e voltados à proteção ambiental. Foi essa atuação que o levou a participar do projeto “Água até aqui”.
Segundo ele, quando a iniciativa foi pensada, não se imaginava que teria uma repercussão tão potente. “Acabou sendo uma ideia que serviu também a quem estava no local, registrando e deixando marcado para memória do que aconteceu. A própria ideia se expandiu”, complementa Daniel.
Para o produtor audiovisual, esses exemplos mostram o papel da arte como ferramenta de provocação sobre a urgência de uma mudança de rumos na relação da sociedade com a natureza e o clima. “É um mundo em que vivemos uma mudança de paradigma. A cultura do crescimento está sendo confrontada por uma maneira nova de pensar. E para o ser humano não é uma zona confortável, é uma zona de embate”, aponta.
Adesivos em Cachoeirinha e outros locais
Nascida em João Pessoa (PB), Isadora se mudou para Cachoeirinha em 2017 e há cerca de seis meses vive em Porto Alegre. Ela descreve que as marcas sinalizadas pelos adesivos, colocadas ao longo de dois dias, por vezes 3 metros acima do chão, servem como um alerta e um retrato da dimensão do desastre na vida das pessoas.
“Teve muita gente sem documentos, sem foto de casamento, sem brinquedo dos filhos. Eu torço para que isso tenha impactado as pessoas, como queríamos que impactasse. Torço para que a gente não precise passar mais uma vez por um Água até aqui”, afirma a publicitária.
Nas redes sociais do “Água até aqui”, diversas pessoas compartilharam imagens do adesivo em diferentes cidades, incluindo outros locais que foram afetados pelas inundações no Rio Grande do Sul.