Eram 17h40 do dia 4 de maio quando Marianne Calixto, de 33 anos, gravou o primeiro vídeo para as redes sociais mostrando o avanço da água em frente ao condomínio de prédios onde mora, no centro de Canoas, no Rio Grande do Sul. Desceu de sua casa no último andar e começou a prestar os primeiros trabalhos de socorro às pessoas mais afetadas e em risco devido às enchentes. “O alagamento foi ali na minha rua, na minha região, então comecei a ajudar no resgate porque a água subia muito rápido. Os barcos paravam e eu ajudava a tirar as pessoas, com as mochilas, crianças. Depois de dois dias ajudando você fica muito envolvido”, conta a advogada, coordenadora de Assessoria de Gabinete na Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.
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Marianne realizou buscas de pessoas em risco nos primeiros dias e, em seguida, passou a arrecadar e levar doações para os abrigos já montados pelo governo que recebem as vítimas das fortes chuvas e alagamentos. Só não imaginava o que ouviria nas instalações. Em meio à situação emergencial, nas primeiras semanas da pior tragédia climática da história do estado do Rio Grande do Sul, mulheres e crianças desalojadas tiveram que enfrentar, ainda, a vulnerabilidade de se viver em abrigos mistos e o medo de serem violadas.
A advogada percebeu isso assim que começou a frequentar os abrigos. “Tivemos relatos de abuso das médicas que atenderam essas vítimas e também pessoas querendo abafar os casos. Reportamos as informações, mas diziam que era fake news. Isso me incomodou, pois estava levando uma questão grave, e a preocupação com a imagem estava acima da realidade”.
A violência sexual nos abrigos não era falácia; segundo a Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, até o dia 10, oito pessoas foram presas por suspeita de estupro em abrigos de Porto Alegre, Canoas e Viamão. Ainda conforme a secretaria, os abusos eram recorrentes nas residências das vítimas e se estenderam aos abrigos para onde foram transferidas. No domingo (19), homem de 22 anos foi preso em flagrante por estupro de vulnerável dentro de um abrigo temporário, montado em uma igreja, para receber vítimas das enchentes em Gravataí, na Região Metropolitana.
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Veja o que já enviamosPara mudar a situação, Marianne conseguiu entrar em contato com a ex-BBB Marcela Mc Gowan, que trabalhou como médica ginecologista e obstetra voluntária em um dos hospitais de Canoas e também teve acesso aos casos de abuso. “Nos juntamos com outras duas voluntárias que já tinham um pavilhão disponível e cada uma contribuiu com o que pôde; colchão, doação, imprensa e visibilidade. Na noite do dia 8, nasceu o primeiro abrigo exclusivo para mulheres e crianças da cidade, e em dois dias alcançamos a lotação máxima de 60 pessoas”, explica a advogada. A instalação conta com o apoio do Instituto Survivor e a ONG #MeTooBrasil, que atuam na prevenção e acolhimento de mulheres em situação de violência doméstica e vítimas de assédio e abuso sexual.
Vítimas e voluntárias compartilham casa
Enquanto os menores brincam num espaço kids, do outro lado as mais velhas se reúnem para jogar cartas. “A gente sempre fala que aquele abrigo é para ser a casa delas. É isto que a gente queria: que elas se sentissem livres e com privacidade para poder viver talvez quatro meses ali dentro”, relata Marianne. Esse, segundo ela, é o principal diferencial do abrigo em relação aos outros; as “voluntárias da linha de frente” — como são chamadas Marianne, Marcela e outras mulheres que estão trabalhando presencialmente — se esforçam para criar um ambiente confortável e acolhedor às vítimas das enchentes.
O cotidiano não deixa de ser difícil, mas as preocupações e a tensão é aliviada por saber que o local é seguro e está preparado para receber mulheres e crianças atendendo e ouvindo suas necessidades, sem a possibilidade de terem seus corpos e espaços violados. “Nossas abrigadas estavam uma noite sem dormir no abrigo geral, porque elas tinham filhas e estava tendo caso de estupro no banheiro. Não conseguiam dormir tranquilas”, diz. Além disso, histórias de abandono também são recorrentes para essas vítimas. “Uma mãe de três filhos falou que, no dia da enchente, o marido pegou o carro e foi embora, deixou ela com as crianças em casa para ser resgatada pelo barco. Outro caso é de uma jovem de 21 anos grávida que tem um menino de 5 anos, os primeiros que eu trouxe para o nosso abrigo. No dia da enchente, o marido a largou no abrigo mais problemático de Canoas e foi para casa da mãe dele. Esses são exemplos do estado de vulnerabilidade das mulheres que estão ali conosco”.
Uma vez no abrigo, Marianne relata que o que essas vítimas mais precisam não são comidas ou roupas — já que, felizmente, o abrigo recebe muitas doações. A carência principal é atenção e acolhimento. “Depois, reconstruir a casa delas será o mais pesado, mas até isso acontecer há todo um processo. Hoje o que elas mais precisam é atenção, sentar e ficar conversando, tornar a situação menos dolorosa. A gente bota uma novela na TV, a ‘gurizada’ joga futebol na rua e tomamos chimarrão na calçada. Sensibilizamos muito essa questão dos abrigos, que deveriam ser acolhedores, não colocar um colchão no chão e falar para dormirem por cinco meses”, diz a advogada.
O local conta com enfermaria, responsabilidade das ex-bbbs e médicas Marcela, Thelma Assis e Amanda Meirelles, onde são realizados atendimentos médicos todos os dias. “As gurias do Big Brother ficaram com a gente desde o início, elas que organizaram remédios, prontuários, e convocaram médicos do Brasil para voluntariar”, explica Marianne.
Marcela, que também colaborou na criação do abrigo exclusivo para mulheres e crianças em Canoas, chegou a publicar na última segunda (20), um vídeo nas redes sociais falando sobre abuso sexual em situações de catástrofe e divulgando um guia básico de como lidar com esses casos. “Quando sai alguma notícia de abuso, o que vejo é que as pessoas não acreditam que no meio da tragédia ainda tem gente capaz de tal atrocidade. É quase como se houvesse uma esperança de que a situação sensibilizasse abusadores e diminuísse ou anulasse a existência desse tipo de situação, mas não é isso que acontece”, explica no vídeo.
Segundo ela, o cenário de abuso sexual de mulheres e crianças se deve ao aumento da exposição de grupos vulnerabilizados a riscos; a falta de infraestrutura segura; separação de famílias e perda de rede de apoio; enfraquecimento dos órgãos de proteção e instituições de saúde, que ficam sobrecarregadas em situação de catástrofe; e a falta de preparo de equipes de emergência ou que cuida dos abrigos.
Outros abrigos específicos para mulheres e crianças
Também patrocinado pelo Instituto Survivor e a ONG #MeTooBrasil, o abrigo SOS Mulheres RS, criado por voluntárias, acolhe mulheres e crianças na cidade de Novo Hamburgo desde o dia 11 deste mês. Elisa Rose Waters, uma das coordenadoras, explica em vídeo veiculado nas redes sociais que o trabalho é dividido em cinco frentes: no abrigo exclusivo para mulheres e crianças em Novo Hamburgo; no cadastramento das gestantes, lactantes, mães solo, com bebês e crianças de outros abrigos para oferecer suporte no momento de reestruturação de suas casas; nas entregas de cestas básicas para famílias e moradores da região e cidades vizinhas; no suporte a outros abrigos e no ambulatório com serviço médico.
Localizações que separam homens de mulheres e crianças têm se multiplicado pelo estado, e as iniciativas partem de setores privados e públicos. A prefeitura de Porto Alegre criou três abrigos femininos para acolher as vítimas das enchentes em conjunto com o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Tribunal de Justiça do Estado e a Assembleia Legislativa e apoio das polícias Civil e Militar. As instalações estão localizadas na Paróquia São Martinho, na Zona Sul; Foro Regional Partenon, na Zona Leste e na esquina das ruas Silva Só e Felipe de Oliveira, na região central. Nos municípios de Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre, e de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, também há abrigos exclusivos para mulheres e crianças.
Para pedir ajuda, entre em contato:
Brigada Militar (190)
Corpo de Bombeiros Militar (193)
Defesa Civil estadual (199)
Disque Denúncia SSP: 181
Disque Denúncia Polícia Civil: 197
WhatsApp Polícia Civil: (51) 98444-0606
Delegacia Online: www.dol.rs.gov.br