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Nilton Bravo: alegria e melancolia nos botequins cariocas

Pintor espalhou painéis por bares e restaurantes do Rio de Janeiro, mas sobraram poucas obras que deveriam ser preservadas pela cidade

ODS 11 • Publicada em 11 de julho de 2023 - 09:07 • Atualizada em 11 de julho de 2023 - 11:08

Andar pela cidade quase sempre nos reserva uma surpresa. Na caminhada distraída pela Lapa, meus olhos igualmente distraídos tropeçaram no painel – meio escondido para quem passa na calçada – de um boteco ali no cruzamento de Mem de Sá e Gomes Freire. Fui olhar de perto para ver se era mesmo um Nilton Bravo: era. Sentei para tomar uma cerveja no Bar e Restaurante Figueira só para acompanhar a alegria do encontro.

Painel de Nilton Bravo no Bar Figueira, na Lapa: memória carioca mal preservada (Foto: Oscar Valporto)
Painel de Nilton Bravo no Bar Figueira, na Lapa: memória carioca mal preservada (Foto: Oscar Valporto)

O pintor Nilton Bravo faz parte da história das cidades e de seus botequins. Já tinha visto alguns – na Adega Flor de Coimbra, ali mesmo na Lapa, no Bar Sulista, na Gamboa, no Jobi, no Leblon – e sabia que havia outros espalhados pelo Rio de Janeiro. Numa antiga entrevista, Bravo vangloriava-se de ter pintado mais de mil painéis antes de Pelé fazer mil gols – muitos deles em botequins. As paisagens variam pouco: lago ou lagoa, um morro ou dois, árvores, um barco, uma casa.

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Mas também sabia que os painéis do pintor – como tantas tradições cariocas – sofriam com a falta de cuidado com a memória e a história. Na consulta pelo celular, a alegria foi virando melancolia, rima ruim numa mesa da calçada na Lapa. Fico sabendo que devem haver menos de 10 pinturas sobreviventes pelos botecos da cidade. A mais recente reportagem diz que, de 13 tombadas pelo patrimônio municipal, cinco haviam sido removidas: imprecisa, não lista as oito preservadas. Mas informa do doloroso fechamento, durante a pandemia (outra rima ruim para melancolia), do Café e Bar Brasília, no Cachambi, e do Costa do Minho, no Grajaú, dois estabelecimentos que mantinham os painéis de Nilton Bravo. Vejo que este aqui, do Figueira, nem estava na lista de tombados em 2018 pela prefeitura. Não basta tombar: tem que preservar.

Paisagem clássica dos painéis de Nilton Bravo na parede do Bar Sulista, na Gamboa: Michelângelo dos Botequins, na definição do escritor Paulo Mendes Campos (Foto: Oscar Valporto)
Paisagem clássica dos painéis de Nilton Bravo na parede do Bar Sulista, na Gamboa: Michelângelo dos Botequins, na definição do escritor Paulo Mendes Campos (Foto: Oscar Valporto)

Esta crônica não tem a pretensão de fazer um inventário de Bravos, o que já foi feito pelo escritor João Antônio e, com mais rigor, pelo professor e blogueiro Evandro Domingues – um apaixonado pelo Rio de Janeiro e pelo pintor. Num inventário de seu blog A Vida numa Goa (em 2015), ele listou 27 painéis de Nilton Bravo – muitos já estão mesmo perdidos, como a enorme pintura que enfeitava o tradicional – e também fechado – Sírio e Libanês. Em 2021, Evandro e um amigo localizaram quatro Bravos em uma lanchonete na Ilha do Governador.

Portanto, prefiro aguardar sua atualização sobre o legado do “Michelangelo dos Botequins”, maneira como o pintor foi dezenas de vezes citado a partir da publicação, em 1989, na Folha de São Paulo, de uma crônica do grande mineiro – e botequinólogo – Paulo Mendes Campos, exatamente como esse título. RioéRua – e também é cultura; portanto, portas abertas para o escritor.

“Herdeiro de nobre tradição pictórica, ele repetia Miguel Ângelo passando a vida pendurado em andaimes, cobrindo paredes com cores e formas. O botequim era a sua Capela Sistina. Em vez do papa, quem lhe dava ordens era o dono do bar: ‘Bota um barquinho ali naquele canto’. Ele botava. Trabalhando a metro quadrado, seus quadros pregavam a doçura das tardes, a quietude das águas. Por sua ternura, era o Rubem Braga da paleta, o Vinícius de Moraes do pincel”.

Nilton Bravo, entretanto, já era conhecido dos cariocas mais apaixonados como prova outra crônica, de Nelson Motta, no Caderno B do falecido JB, publicada em 1967. “Seu estilo é inconfundível e sua obra espalha-se pela cidade inteira. Entre os cariocas, seus painéis são mais conhecidos do que qualquer quadro de Picasso ou Van Gogh. Quase todo mundo já viu um painel seu, mas, provavelmente, muito poucos prestaram atenção à pintura para não deixar esfriar o cafezinho. Sim, é ele mesmo — Nilton Bravo — o pintor que decorou a grande maioria dos bares e botequins do Rio com seus painéis”.

Todo carioca devia conhecer o pintor que merecia ser melhor tratado pelos responsáveis pela preservação da memória da cidade. Ele aqui nasceu, em 1937, e aqui morreu, em 2005 – morou a maior parte da vida no Lins, na Zona Norte. O avô, Manoel Pinto Bravo, decorava, principalmente, tetos e paredes de residências e igrejas, O pai, Lino, já tinha alguma fama de pintor de botequins e iniciou o filho nos pincéis, assinaram juntos vários painéis e, durante muito tempo, Nilton assinava suas pinturas como Bravo Filho. Além dos painéis e afrescos para os botequins, Nilton Bravo também pintou outras telas, expôs em galerias e ocupou a cadeira 40 da Academia Brasileira de Belas Artes.

Painel descascado de Nilton Bravo no Sulista: prefeitura botou placa de patrimônio cultural mas não ajuda na conservação (Foto: Oscar Valporto)
Painel descascado de Nilton Bravo no Sulista: prefeitura botou placa de patrimônio cultural mas não ajuda na conservação (Foto: Oscar Valporto)

Resolvi carregar minha melancolia para ver se meus Bravos mais conhecidos estavam mesmo intactos. Levei minha sede ao Sulista, na Harmonia, para tomar mais uma cerveja e ver que os dois painéis, os primeiros alvos de tombamento, permanecem firmes – “intactos” não seria a melhor definição porque bar e pinturas – estas alvo de tombamento – já viram melhores dias. A prefeitura botou uma placa, citando Nilton Bravo, mas não ajuda o boteco na conservação dos painéis, um deles bem descascado. Repito para que, quem sabe, o prefeito Eduardo Paes leia: não basta tombar, tem que preservar.

Painel de Nilton Brava na Adega Flor de Coimbra, na Lapa: memória preservada (Foto: Oscar Valporto)
Painel de Nilton Brava na Adega Flor de Coimbra, na Lapa: memória preservada (Foto: Oscar Valporto)

Com a fome já apertando, voltei à Lapa onde o painel de Bravo tem provavelmente a melhor companhia gastronômica: os bolinhos de bacalhau e outros sabores portugueses da Adega Flor de Coimbra. Já sabia que o painel do Jobi estava preservado – moro perto do bar e passo sempre pelo painel. Mas achei por bem tomar uma em homenagem ao pintor para espantar a melancolia.

Painel de Nilton Bravo no bar Jobi, no Leblon: lembrança de um tempo quando todo bar carioca queria ter uma obra do pintor na parede (Foto: Oscar Valporto)
Painel de Nilton Bravo no bar Jobi, no Leblon: lembrança de um tempo quando todo bar carioca queria ter uma obra do pintor na parede (Foto: Oscar Valporto)

Os botequins têm o dom de deixar a alma mais leve, a cabeça fresca e o espírito animado. Assim, na caminhada do Jobi até em casa, estabeleci a meta de me aprofundar na pesquisa sobre os painéis finais de Nilton Bravo para saber onde ainda é possível beber olhando para suas bucólicas paisagens.

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