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O Jardim de Alah entre o público e o privado

Parque em área privilegiada do Rio de Janeiro, entre o mar e a lagoa, vai ser concedido para exploração pela iniciativa privada

ODS 11 • Publicada em 21 de março de 2023 - 09:15 • Atualizada em 15 de abril de 2023 - 21:59

Quando foi inaugurado em 1938, o parque do Jardim de Alah, construído ao longo do canal que liga as praias de Ipanema e Leblon à Lagoa Rodrigo de Freitas, em área privilegiada do Rio, fazia parte de ambicioso projeto turístico que incluía até passeios de gôndola. O projeto previa ainda esculturas, lagos e caramanchões ao longo dos jardins. Agora, 85 anos depois, a Prefeitura do Rio abriu licitação para conceder o Jardim de Alah à exploração da iniciativa privada: é mais uma tentativa para fazer o parque alcançar o seu aparentemente óbvio potencial como área de lazer urbano.

O Jardim de Alah, vazio e abandonado como quase sempre nos últimos 60 anos: Prefeitura abre licitação para concessão de parque público à iniciativa privada (Foto: Oscar Valporto)
O Jardim de Alah, vazio e abandonado como quase sempre nos últimos 60 anos: Prefeitura abre licitação para concessão de parque público à iniciativa privada (Foto: Oscar Valporto)

Escrevi “aparentemente óbvio” porque, nestas mais de oito décadas, não foram poucas as iniciativas anunciadas para revitalizar (reformar, reurbanizar, reocupar) o Jardim de Alah, que só nos seus primeiros anos teve o destino imaginado como área de lazer para os cariocas. A partir da década de 1960, o parque foi sendo relegado ao abandono, espremido pela multiplicação de construções de prédios dos dois lados do canal – e suas águas, cada vez mais poluídas, afastavam os frequentadores.

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Durante quase todo esse tempo, o cenário do parque – entre Ipanema e o Leblon, entre o mar e a lagoa, com vista do Cristo Redentor do Corcovado – teve jardins maltratados, bancos quebrados e deques servindo de depósito ou dormitório. Sim, ainda há deques, construídos para aquelas gôndolas na década de 1930. Neste século, parte da área serviu como canteiro de obras da expansão do metrô. Pelo menos desde 2003, nenhuma iniciativa pública foi tomada para cuidar melhor desse parque público – também não houve registro de iniciativas particulares para tratar melhor do Jardim de Alah.

A ideia da concessão à iniciativa privada também não é nova, mas agora a Prefeitura do Rio lançou formalmente a licitação – a proposta vencedora deve ser conhecida no dia 26 de abril. O edital estabelece que a nota maior (70%) será atribuída à melhor proposta urbanística para revitalizar o Jardim de Alah, para que se torne espaço “em um elemento de integração entre os bairros de Ipanema, Leblon e a Lagoa Rodrigo de Freitas”, com melhorias no paisagismo e na iluminação do parque. Os investimentos previstos podem chegar a R$ 112,5 milhões ao longo dos 35 anos de concessão.

Como contrapartida para os investimentos, a empresa (ou consórcio) vencedora terá direito a instalar quiosques, lojas, restaurantes, áreas para eventos e exposição na área de concessão que tem 93,6 mil metros quadrados, incluindo as três praças que formam o Jardim de Alah: Almirante Saldanha, Grécia e Paul Claudel. A concessionária poderá explorar uma área de estacionamento para 200 veículos.

Faixas contra a concessão do Jardim de Alah: grupo de moradores teme descaracterização de área de lazer com exploração comercial, do espaço público pela iniciativa privada (Foto: Oscar Valporto)
Faixas contra a concessão do Jardim de Alah: grupo de moradores teme descaracterização de área de lazer com exploração comercial, do espaço público pela iniciativa privada (Foto: Oscar Valporto)

A concessão de parques – e outros equipamentos ou serviços públicos – à iniciativa privada tem exemplos de sucesso em outros países. No Brasil, entretanto, concessões em geral são vistas com desconfiança pela população devido à combinação perniciosa dos péssimos serviços prestados pelas empresas privadas com a omissão e falta de fiscalização pelo poder público sobre as concessionárias. O transporte público é o exemplo mais trágico dessa combinação que desmoraliza, ao mesmo tempo, as empresas privadas e as autoridades governamentais

No caso do Jardim de Alah, cariocas em geral podem aplaudir a iniciativa: o abandono do parque, numa área privilegiada pela natureza, é uma vergonha para a cidade. Vizinhos, entretanto, protestam contra o modelo de concessão que “permite lotear o Jardim e as calçadas em volta para lojas, quiosques, restaurantes e eventos”, na visão da Associação de Moradores e Defensores do Jardim de Alah (AMDJA). Em nota após o lançamento do edital de concessão no dia 9 de março, a associação defende um modelo que privilegie atividades de lazer, recreação e esporte. “Não queremos que esta área verde seja epicentro para camelôs, quiosques e shows”, afirma a nota.

Os representantes da prefeitura argumentam que o edital prevê a ampliação das áreas verdes e o uso de espécies nativas para intervenções paisagísticas e estabelece, de maneira clara, que qualquer intervenção no Jardim de Alah tem que respeitar restrições de gabarito da região e outros parâmetros estabelecidos pela Área de Proteção ao Ambiente Cultural (APAC) do Leblon.

O Jardim de Alah e sua vista do Cristo do Corcovado: localização privilegiada não impediu abandono do parque ao longo de décadas (Foto: Oscar Valporto)
O Jardim de Alah e sua vista do Cristo do Corcovado: localização privilegiada não impediu abandono do parque ao longo de décadas (Foto: Oscar Valporto)

Carioca e morador desta cidade a maior parte da vida, sou como a maioria dos brasileiros: desconfio das empresas privadas, desconfio das autoridades públicas e desconfio até desta associação de moradores, formalizada somente em 2022, quando a discussão sobre a concessão do Jardim de Alah foi retomada. O parque fica entre o mar e a lagoa e seu canal separa os bairros de Ipanema e Leblon. Há vizinhos desconfiados dos dois lados, mas eles são bem diferentes.

Na parte Ipanema, são moradores de prédios com muitos apartamentos de mais de 200 metros quadrados – alguns chegam a estar avaliados em mais de R$ 3 milhões. Do lado Leblon, há dois grandes conjuntos de apartamentos: a Cruzada São Sebastião, condomínio de baixa renda, com sete blocos e quase mil apartamentos, de 25 a 45 metros quadrados; e o Condomínio Jardim de Alah, chamado ao ser erguido na década de 1960 de Conjunto dos Jornalistas, típico da classe média: três prédios de 16 andares e  apartamentos de 55 a 100 metros quadrados.

Hoje, todos esses moradores – de um lado e de outro, com qualquer nível de renda – aproveitam muito pouco o Jardim de Alah, um espaço público que merece melhor tratamento. Talvez a iniciativa privada consiga trazer cariocas de volta ao parque, como sonharam seus idealizadores. Ou não.

 

 

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