Carnaval 2023: o elogio do Brasil popular

Detalhe do barracão da Imperatriz que tem Lampião como condutor do enredo: valorização da cultura brasileira nos enredos de 2023 (Foto: Fernando Grilli / Imperatriz Leopoldinense / Divulgação)

Enredos e visualidade nos desfiles das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro apostam na riqueza da nossa cultura

Por Daniela Name | ODS 11 • Publicada em 16 de fevereiro de 2023 - 13:00 • Atualizada em 27 de fevereiro de 2023 - 09:44

Detalhe do barracão da Imperatriz que tem Lampião como condutor do enredo: valorização da cultura brasileira nos enredos de 2023 (Foto: Fernando Grilli / Imperatriz Leopoldinense / Divulgação)
  • (Com Bernardo Pilotto*) – O público que for a Sapucaí ou sintonizar nos desfiles do Grupo Especial das escolas de samba cariocas já pode esperar por um conjunto de propostas que são a reafirmação, de variadas maneiras, do “país que não está no retrato” cantado nos versos de Manu da Cuíca e parceiros para “História pra ninar gente grande”, enredo da Mangueira de 2019. Mas, no lugar das bandeiras claramente desfraldadas, as 12 agremiações do cortejo principal no Rio de Janeiro, parecem ter encontrado uma nova forma de afirmar a política através de seus enredos e, consequentemente, através dos sambas, coreografias e concepções visuais. O carnaval de 2023 mira no Brasil que recuperou sua dignidade nas urnas e na riqueza popular de nossa cultura.

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Em 2018, marco de uma guinada narrativa dos desfiles, tivemos um vampiro-presidente, anti-homenagem a Michel Temer concebida por Jack Vasconcelos na Paraíso do Tuiuti e o então prefeito Marcelo Crivella transformado em Judas e “malhado” por Leandro Vieira na Mangueira. O contraponto a estas imagens, fruto de país ferido pelo golpe na ex-presidente Dilma, apareceu na Série Ouro, precisamente na Acadêmicos do Cubango. A dupla formada por Gabriel Haddad e Leonardo Bora, campeã em 2022 com o enredo sobre Exu na Grande Rio, já depositava sua atenção em um personagem que transitou nas bordas de nossa cultura de imagem: o artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989). Negro, nordestino e diagnosticado como esquizofrênico, Bispo representa o país que os vampiros e fundamentalistas tentaram calar.

Esta jovem geração de artistas afeiçoada ao enredo, que vem sendo chamada de “narradores”, acirrou suas propostas em 2019, ano da bandeira-emblema da Mangueira, que sitiou com “Índios, negros e pobres” a controversa proposta de “ordem e progresso” de nossa República. O trabalho desse grupo gerou respostas em outras escolas e, mais maduro, parece ter encontrado outras vias de manifestação em 2023. As visitas aos barracões da Cidade do Samba e a conversa com os carnavalescos mostram que as histórias e as criações plásticas concebidas para este ano seguem espelhando o quadro político e social do Brasil, e, depois de uma pandemia que deixou quase 700 mil mortos e de um desfile fora de época em 2022, o carnaval deste ano afirma a alegria dos temas e personagens da cultura popular. Veremos na avenida um mergulho num Brasil profundo, desvelando algumas histórias pouco conhecidas e reverenciando personalidades importantes da nossa música. É como se o carnaval estivesse dizendo que o momento agora é reconstruir o Brasil a partir desses brasis que serão apresentados no desfile.

Festejar os 100 anos da Portela é celebrar nossa vitória coletiva

Leonardo Bora
Carnavalesco da Grande Rio

A primeira escola a se apresentar no domingo de carnaval será o Império Serrano, que traz para a avenida um enredo sobre Arlindo Cruz, um dos maiores nomes do samba brasileiro contemporâneo e grande personalidade da escola (ele é autor de 12 sambas-enredos do Reizinho de Madureira). Arlindo esteve na gênese do movimento de renovação do samba em torno do bloco Cacique de Ramos, no final dos anos 1970, que revelou para o samba o grupo Fundo de Quintal e criou novas sonoridades a partir do banjo, do repique de mão e do tantan. O Cacique também estará presente na escola que vem a seguir, a Acadêmicos do Grande Rio, na homenagem a Zeca Pagodinho, que gravou diversas músicas de Arlindo, sendo parceiro dele em algumas, e também um “fruto da tamarineira”.

Em comum, os dois desfiles têm o fato de que não são meramente biográficos. O objetivo das duas agremiações é mostrar o ambiente cultural que forjou essas duas personalidades brasileiras. Serão, então, desfiles sobre o subúrbio carioca, o pagode, a religiosidade popular e as escolas de samba. No Império, Alex de Souza propõe um passeio pelos “Lugares de Arlindo” – e apenas um deles é a própria escola. Na Grande Rio, Bora e Haddad reafirmam a natureza antropológica e territorial de suas propostas, cantando Zeca para, em última instância, homenagear o samba e os elementos que o formaram. Nas alegorias, a reincidência de elementos arquitetônicos que são formados por grupos de peças, muitas vezes distintas entre si (azulejos, cobogós, piso de caquinhos, “parede” de engradados de cerveja) enfatiza essa ideia de uma cidade-samba habitada pelo homenageado, cujo “bairro” mais importante, onde deságuam todos os outros, é a Portela, escola de Zeca, celebrada em seu centenário no último carro do cortejo de Caxias. “Festejar os 100 anos da Portela é celebrar nossa vitória coletiva”, diz Bora.

Ainda no desfile da Grande Rio, chamam a atenção as fantasias que ora parecem uma cena (caso da “Pipa”) ora são feitas de muitos elementos acumulados, no barroco contemporâneo que caracteriza a dupla de carnavalescos.

A homenagem da Grande Rio não será a única que a Portela vai receber no carnaval. Além de ser enredo da União da Ilha do Governador na Série Ouro, e de ter um samba-enredo seu reeditado na Caprichosos de Pilares (na Série Prata/Intendente Magalhães), haverá a auto-homenagem ao seu centenário. A Majestade do Samba contará sua própria história a partir da voz de cinco grandes baluartes (Paulo da Portela, Dodô, Natal, David Corrêa e Monarco) e o projeto dos carnavalescos Renato e Márcia Lage explora o azul ultramarino da bandeira portelense, mas passeia por outros tons da cor nos segmentos do cortejo. No desfile também estará essa ideia de vitória coletiva das escolas, a partir de um samba que diz “vencemos, mesmo marginalizados”.

Não é incomum o carnaval dobrar-se sobre si mesmo, falar do próprio carnaval. Em um ano como 2023, em que o patrimônio cultural atravessa as propostas, o Salgueiro faz outra celebração à folia em um cortejo inspirado por Joãosinho Trinta que, a despeito de ser também um ídolo incontestável na Beija-Flor, é uma “cria” de Fernando Pamplona na chamada “Revolução Salgueirense, tendo sido campeão pela escola em 1974 e 1975. “Delírios de um paraíso vermelho”, de Edson Pereira, é um dos enredos mais oníricos do carnaval. Com uma estética menos marcada pela invenção do que pelo manejo dos elementos de um repertório clássico de construção de alegorias e fantasias, a escola tijucana aposta na suntuosidade e no canto de seus componentes para empolgar com um dos sambas menos populares do ano.

Detalhe do barracão da Unidos da Tijuca com enredo sobre a Baía de Todos os Santos: elogio do Brasil Popular no Carnaval 2023 das escolas de samba do Rio (Foto: Divulgação / Unidos da Tijuca)
Detalhe do barracão da Unidos da Tijuca com enredo sobre a Baía de Todos os Santos: elogio do Brasil Popular no Carnaval 2023 das escolas de samba do Rio (Foto: Divulgação / Unidos da Tijuca)

 

Invasão do Nordeste

Além de suas próprias histórias, o desfile de 2023 tem no Nordeste seu grande ponto de interesse. Com propostas bastantes distintas e ramificadas, Mocidade Independente, Unidos da Tijuca, Mangueira, Imperatriz Leopoldinense e Beija-Flor passam, cada uma a seu modo, pela região.

Com “Terra de meu céu, estrelas de meu chão”, a Mocidade vai falar sobre os artistas discípulos de Mestre Vitalino, na região pernambucana de Alto do Moura, Caruaru. “Quis voltar para um universo que sempre marcou o meu trabalho, que é a arte popular, um interesse antigo e que me permitiria fazer um desfile exuberante, mesmo que precisasse botar o pé no chão”, conta o carnavalesco Marcus Ferreira, tocando em um ponto que não é segredo para ninguém: a escola passa por problemas administrativos, que certamente terão reflexos no desfile.

Para responder a isso, Ferreira tem respondido às limitações com criatividade, usando materiais naturais no lugar de penas e outros adornos caros e investindo numa conexão entre o seu tema – o da metáfora para a criação a partir do barro – com a história visual de sua escola. No carro abre-alas, por exemplo, o artista prepara uma homenagem-surpresa a um antecessor que marcou a Mocidade.

Lampião formou a imagem que temos do homem e da cultura do Nordeste. Sua visualidade, seu jeito de vestir, inspirou figuras como Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e os personagens de Mestre Vitalino

Leandro Vieira
Carnavalesco da Imperatriz Leopoldinense

A Bahia está nos enredos da Unidos da Tijuca e da Mangueira. Na Tijuca, a proposta de Jack Vasconcelos é um mergulho na Baía de Todos os Santos, dialogando tanto com enredos antigos da escola (como “Guanabaran, o seio do mar”, sobre a Baía de Guanabara, de 1992) quanto com o trabalho feito em 2022, “Waranã – A reexistência vermelha”, já que o desfile deste ano explora novamente em alguns segmentos as culturas dos povos originários, celebradas ano passado. Como é uma característica de seu trabalho, Jack criou um partido visual para a elaboração de todos os segmentos. Nas alegorias, por exemplo, chama a atenção um projeto que dá à parte de trás de todos os carros uma segunda cena, tão impactante quanto a que é vista na parte da frente, frequentemente se conectando as alas consecutivas, como se o desfile pudesse ser lido, de fato, como a história de um livro. A lógica de frente e verso também está em muitas fantasias, especialmente naquelas com estampas especialmente desenvolvidas pelo artista Antônio Vieira.

“A água está em tudo, por isso marquei todas as alas com uma espécie de aguada azul. Mesmo quando a fantasia não representa algo aquático, ela está inundada pelo enredo”, explica o carnavalesco.

A Mangueira desfilará com “As Áfricas que a Bahia canta”, desenvolvido pelos carnavalescos Annik Salmon e Guilherme Estêvão. A escola pretende mostrar as “visões de África na Bahia a partir da sua musicalidade e instituições carnavalescas negras”, mas também enfatiza o protagonismo feminismo na genealogia dos blocos e cortejos afro de Salvador. A cultura do estado tem sido uma escolha afetiva e segura para a agremiação, ea relação da Bahia com a Mangueira é muito antiga. É possível mesmo dizer que nasceu junto com a escola, fundada em 1928 no Terreiro de Tia Fé, que aportou em Salvador com a diáspora dos africanos escravizados, mas veio para o Rio plantar as sementes que fizeram florescer a Mangueira. Posteriormente, ela foi trazida para o Rio de Janeiro do início do século XX.

Bahia e Mangueira já se encontraram no segundo desfile da escola, em 1933, “Uma segunda-feira no Bonfim da Bahia”. A partir daí, entrelaçaram em vários momentos, como nos carnavais de 1948 (“Vale do São Francisco”), 1963 (“Exaltação à Bahia”), 1973 (“Lendas do Abaeté”), 1986 (“Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm”), 1994 (“Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu”), 2006 (“Das águas do São Francisco, nasce um rio de esperança”) e 2016 (“Maria Bethânia: A menina dos olhos de Oyá”). Alguns sambas de quadra, como “Capital do samba” e “Tem capoeira” também mostram essa ligação.

A escolha de um enredo com tanta relação com sua história produziu aquela que foi a melhor safra de samba nas disputas pré-carnaval. Por reconhecerem isso, os carnavalescos preparam uma homenagem à Ala de Compositores. As propostas visuais de Annik e Estêvão também celebram elementos reincidentes na Mangueira, como o vento de Iansã, que dá o tom na comissão de frente e em uma importante ala do primeiro segmento do desfile.

A obra de Louco Filho, pilar de um clã de artistas do Recôncavo, é uma das referências visuais das alegorias. “Vamos usar muita estamparia africana, porque o que muita gente não sabe é que a ilustração das estampas é a forma que o carnaval baiano encontrou de desenvolver seu enredo. Cada estampa é uma história”, afirma Annik.

Através da história do boi, estamos celebrando o Pará e o Brasil”, diz João Vitor. “Falar da nossa cultura é reafirmar a força de cada um de nós e dos próprios desfiles

João Vítor Araújo
Carnavalesco da Paraíso do Tuiuti

Também podemos dizer que o enredo da Beija-Flor está localizado em terras baianas. Isso porque a escola vai partir dos acontecimentos de 02 de julho de 1823 para revisitar personagens esquecidos e deixados de lado pela história oficial de nosso país. A proposta de Alexandre Louzada e André Rodrigues verte esse momento revolucionário em símbolos pátrios oficiais, como brasões e bandeiras, e não se furta a abordar aspectos controversos da opressão, caso das correntes presentes em uma das alegorias já divulgadas. No conjunto de fantasias, a opulência que tem marcado os desfiles da escola de Nilópolis.

Ainda no Nordeste, mas em um mapa muito mais imaginário do que real, situa-se o enredo de Leandro Vieira para a Imperatriz Leopoldinense. A escola vai trazer uma narrativa abusadamente delirante, inspirada nos cordéis que imaginam o que aconteceu a Lampião depois de sua morte. Ao tentar entrar no inferno, o cangaceiro foi expulso pelo diabo, que temeu uma concorrência; ao bater nas portas do céu, interrompeu o café de São Pedro que, irritado, convocou outros santos para expulsá-lo. Mais do que uma biografia, Vieira propõe a recostura de uma oralidade que forma um dos maiores mitos brasileiros. A exemplo do que fez com o capoeirista Besouro na vitória do Império Serrano na Série Ouro, em 2022, o carnavalesco está mais interessado naquilo que nós imaginamos ser Lampião do que propriamente no que ele realmente fez.

“Lampião formou a imagem que temos do homem e da cultura do Nordeste. Sua visualidade, seu jeito de vestir, inspirou figuras como Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e os personagens de Mestre Vitalino”, conta o artista, que faz com que Lampião também vagueie pelos “campos do sertão” da Imperatriz, cujos componentes têm origens nordestinas na população que forma os Complexos do Alemão e da Maré.

Os carnavalescos Rosa Magalhães e João Vítor Araújo com as fantasias da Paraíso do Tuiuti: história do boi e da lenda da chegada dos búfalos na Ilha de Marajó no enredo para celebrar o Pará e o Brasil (Foto: Eweton Pereira)
Os carnavalescos Rosa Magalhães e João Vítor Araújo com as fantasias da Paraíso do Tuiuti: história do boi e da lenda da chegada dos búfalos na Ilha de Marajó no enredo para celebrar o Pará e o Brasil (Foto: Eweton Pereira)

A força da cultura

Quem também vai trazer um personagem para a avenida é a Unidos do Viradouro. A escola de Niterói pretende contar a saga de Rosa Maria Egipcíaca, uma personagem bastante rica e complexa. Nascida em 1719 na Costa de Ajudá, no Benim, ela foi escravizada e trazida para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro. Posteriormente, foi levada para Minas Gerais, onde se prostituiu. Com 30 anos de idade, passou a ter visões e foi se tornando uma santa popular. Ao voltar, fugindo, para o Rio de Janeiro, em 1751, aprendeu a ler e começou a escrever a partir de inspiração espiritual. Ela foi presa e seus livros foram considerados hereges pela igreja católica.

Essas diferentes fases e facetas da vida de Rosa serão apresentadas setor a setor pela Viradouro. que tem como desafios tornar essas variantes claras o suficiente para o júri e defender esse enredo tão denso como a última escola a passar pela Sapucaí, já no alvorecer da terça-feira gorda.

A cultura popular, pensada especificamente a partir da festa e dos folguedos, está presente nas propostas na Unidos de Vila Isabel e na Paraíso do Tuiuti.

O enredo de Paulo Barros para a Vila Isabel, “Nessa festa, eu levo fé!”, sobre as festas religiosas em todo o mundo, faz uma espécie de compilação de um tema muito caro à história dos desfiles, proposto pela escola de forma abrangente, que deixa margens para que Barros possa mergulhar no universo pop e nas referências estrangeiras que têm sido recorrentes em suas concepções.

O Tuiuti traz para a Sapucaí o brasileiríssimo “Mogangueiro da cara preta”, concebido por Rosa Magalhães e João Vitor Araújo. Para celebrar o Pará, a dupla conta a lenda da chegada dos búfalos na Ilha de Marajó, vindos da Índia. Um destaque é o trabalho de cor, especialmente nos primeiros segmentos do desfile, em que a cultura indiana é lembrada em tons de rosa misturados com dourados, azuis e verdes dá à entrada do Tuiuti – primeira escola a desfilar na segunda-feira – uma paleta acesa e empolgante.

“Através da história do boi, estamos celebrando o Pará e o Brasil”, diz João Vitor. “Falar da nossa cultura é reafirmar a força de cada um de nós e dos próprios desfiles”.

Se os enredos de 2023 nos trazem algum aprendizado sobre as formas da arte fazer política, ele diz respeito à importância de nos olharmos no espelho.

*Bernardo Pilotto é sociólogo, pesquisador de Carnaval e editor do conteúdo do Carnavalícia, perfil que analisa blocos e desfiles de escolas de samba.

**Esta reportagem faz parte de série produzida em parceria pelo #Colabora – Jornalismo Sustentável e pela Revista Caju

Daniela Name

Daniela Name é crítica de arte, curadora e jornalista. É editora da plataforma curatorial Caju, que mantém a revista digital de mesmo nome e realiza projetos expositivos, educativos e editoriais.

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