Barracas da esperança: ambulantes sonham com dias melhores após a posse

Patrícia e Guido em sua barraca durante a festa da posse de Lula: esperança de empregos melhores, oportunidades e qualificação profissional com o novo governo (Foto: Tatiana Reis)

A trabalho no Festival do Futuro, vendedores ambulantes compartilham com a multidão a expectativa de vida nova e mais oportunidades com a volta do presidente Lula

Por Claudia Maciel | ODS 10 • Publicada em 2 de janeiro de 2023 - 11:03 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:54

Patrícia e Guido em sua barraca durante a festa da posse de Lula: esperança de empregos melhores, oportunidades e qualificação profissional com o novo governo (Foto: Tatiana Reis)

“A pipoca aqui é cinco”, “Uma é cinco, duas por sete”. “Faço seis para você virar freguesa”. Quem circula caminhando pelos grandes centros urbanos dos estados brasileiros e até mesmo da capital do país – seja na Rodoviária do Plano Piloto ou em eventos especiais que ocorrem nos monumentos ou na Esplanada dos Ministérios – ouve essas frases de pessoas intituladas vendedores autônomos ou ambulantes, marreteiros ou camelôs, e que são consideradas trabalhadores informais na atividade que exercem. Muitos sequer têm licença para ocupar esses espaços. Será que trabalham sem a licença por escolha?

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No Festival do Futuro, evento que celebrou a posse de Luís Inácio Lula da Silva, pela terceira vez, como presidente do Brasil, havia apenas 120 trabalhadores ambulantes licenciados para desempenharem livremente suas atividades para um público estimado de 300 mil pessoas. Mas outras dezenas ou centenas estavam espalhados pela Esplanada dos Ministérios, em um retrato do Brasil da desigualdade, do trabalho precário, da dificuldade da sobrevivência.

Dormimos no carro para estarmos aqui. Passamos a virada dentro do carro. Estamos aqui sem almoçar. Temos que chegar cedo no local do evento para conseguir um bom espaço, pois, se não for assim, por vezes tomamos prejuízo

Guido Breno Matos
Vendedor ambulante

Dona Maria Lucia Januário – mãe, moradora do Paranoá, uma das periferias do Distrito Federal, oriunda do Nordeste e ambulante há 30 anos – foi uma das 120 contempladas para trabalhar no festival pela Secretaria de Governo do Distrito Federal, que tem mais de oito mil cadastrados. Quando chegou à capital, ela tinha um filho com dois anos e não havia quem pudesse tomar conta dele para que ela trabalhasse fora. “Então comecei a vender as coisas na rua e levando ele. À medida que meu menino foi crescendo, esperava o marido chegar do serviço, deixava com ele e saía para vender nos ônibus e na rodoviária. Teve uma época em que fui contratada por um ano para entregar o pão e o leite em um projeto do GDF, porém o projeto acabou e fiquei sem trabalho novamente. A busca por emprego para trabalhar ‘fichada’ sempre foi complicada em Brasília e estou até hoje como ambulante” contou.

Durante o tempo de serviço, Maria Lucia afirma que já perdeu tanta mercadoria para o órgão fiscalizador – atualmente chamado de DF Legal na Capital – que o lucro, caso tivesse sido vendido esses produtos, a possibilitaria de não precisar mais de trabalhar. “Há uns anos atrás, numa Semana Santa, estava em uma feira aqui no Paranoá, onde moro. Peguei 150 quilos de peixe para vender e pagar depois. O DF Legal não quis explicação e levou a minha mercadoria. Eu passei um ano todinho trabalhando para pagar esses peixes”, desabafou a vendedora de 54 anos, que atribui as dificuldades para exercera profissão aos governos dos estados.

A Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP/DF) informou por meio de nota, que as licenças para ambulantes do Festival do Futuro foram definidas levando-se em conta as necessidades apontadas pelos órgãos competentes para oportunizar o trabalho dessa categoria. “Os pontos destinados são próximos ao público e já foram utilizados inclusive no evento de 7 de Setembro, mostrando-se adequados para o evento citado”.

Dona Maria Lucia reclamou das dificuldades para trabalhar na festa, onde vendia refrigerantes, água, cerveja e energéticos. “Para trabalharmos na posse do Lula, a gente teve que enfrentar filas com mais de mil pessoas para somente 120 serem sorteadas para trabalhar. Todos nós que somos dessa categoria profissional esperamos que chegue o carnaval, réveillon, a posse, um jogo, qualquer evento que tenha público para ir vender. Eles botam todo mundo para ir lá fazer inscrições para emitirem somente 120 licenças? Quem não foi sorteado vai estar lá do mesmo jeito, e o governo vai mandar o DF Legal para levar as mercadorias dos meus amigos. O vendedor ambulante também é um trabalho digno e honesto. Temos família e compromisso e precisamos sobreviver”, protestou.

Guido Breno Santos Matos – que veio do Maranhão e mora no DF há 20 anos – acredita que o Governo Federal possa realizar diretamente melhorias para os vendedores ambulantes por meio do Ministério do Trabalho e outras pastas. Ele e sua mulher, Patrícia Rodrigues de Mesquita, contaram que estavam trabalhando no Festival do Futuro com o sentimento de esperança não só por eles, mas também pela família que ficou no Nordeste e que padeceu muito com o governo de Bolsonaro. “Todos estão felizes com a vitória dele, né? Todos que estão aqui prestigiando estão felizes com a esperança de algo melhor vir pra 2023, né? E assim pra frente”, disse.

Guido, de 39 anos, trabalha como vendedor ambulante desde 2019, pois foi demitido pouco antes da pandemia. Patrícia, de 38, desde que veio para Brasília, sempre trabalhou vendendo roupa e coisas do gênero de forma ambulante. “Eu não podia trabalhar por conta das crianças e me virava do jeito que podia. Quando ele ficou desempregado, decidimos trabalhar juntos”, contou.

O brasileiro é muito guerreiro. Não tem emprego, mas está dando um jeito de se virar. Se o governo tiver um plano para a nossa categoria vai ser bem vindo. Quero que Lula melhore a economia e acabe com a instabilidade

Ronaldo da Silva Rios
Pipoqueiro

Eles relataram que, na Capital do país, o acolhimento é um pouco difícil e é demorada a adaptação – e que a situação se torna pior ainda quando se exerce uma atividade árdua e pouco reconhecida como a de vendedor ambulante. “Dormimos no carro para estarmos aqui. Passamos a virada dentro do carro. Estamos aqui sem almoçar. Temos que chegar cedo no local do evento para conseguir um bom espaço, pois, se não for assim, por vezes tomamos prejuízo, pois o retorno não paga nem o valor que gastamos na aquisição do produto. No festival, hoje, quando colocamos a mercadoria para a venda, o órgão fiscalizador apareceu e disse que tínhamos que nos concentrar após a rodoviária do Plano Piloto. Tivemos que ficar quietos, sem enfrentar eles. Mas aqui onde estamos já é bastante longe do evento. Imagine após a rodoviária?”, afirmou Guido.

O casal, que não conseguiu a licença, vende água, cervejas, refrigerantes e energéticos e contou que, em média, tiram por evento, caso bem posicionados com a carrocinha, de R$ 800 a R$ 1000. Na posse de Lula, mesmo mal posicionados por conta da ordem da fiscalização, os ambulantes ainda estavam lucrando, pois não havia abastecimento de serviços para todo o público presente. Guido e Patrícia consideram insuficientes 120 licenças para atender mais de 300 mil pessoas. Ele é cadastrado há três anos para não correr o risco de ser impedido de trabalhar, porém como o processo de escolha para o festival foi um chamamento público, dessa vez não conseguiram a licença.

Patrícia está à espera do quarto filho do casal. Guido acredita em Lula para retomar o investimento na educação para que as pessoas tenham melhores oportunidades de trabalho e que ele também invista na saúde, pois. durante os últimos quatro anos, não se sentiu assistido e cuidado. “Precisamos de trabalho. Se não tivermos uma boa qualificação, não teremos um bom emprego. Na capital, vejo poucas ofertas de cursos, até porque aqui não há indústrias. Precisamos estudar para nos qualificar, senão vamos manter essa atividade de passar noite e dia acordados em eventos para conseguirmos levar o alimento diário. E, também, para conseguir manter essa forma de ganhar dinheiro é necessário saúde”, disse Guido.

O vendedor ambulante também lamentou a perda de oportunidades de trabalho no Estádio Nacional Mané Garrincha, construído em Brasília para a Copa do Mundo de 2014. “O GDF arrendou o estádio. Ali a gente ganhava dinheiro e podíamos chegar e trabalhar sem baderna. Hoje em dia o acesso está limitado e não conseguimos mais. O evento público é uma excelente fonte de renda para o ambulante”.

O pipoqueiro Ronaldo e sua carrocinha na Esplanada dos Ministérios: ambulantes sonham com dias melhores após a posse de Lula (Foto: Tatiana Reis)
O pipoqueiro Ronaldo e sua carrocinha na Esplanada dos Ministérios: ambulantes sonham com dias melhores após a posse de Lula (Foto: Tatiana Reis)

Um ambulante muito conhecido desde as gerações anteriores é o famoso pipoqueiro, personagem frequente de filmes românticos compondo a história de casais apaixonados. Porém, a atividade laboral deste profissional, “de rosa, só tem a cor do corante da pipoca” – como disse Ronaldo da Silva Rios, que já trabalha há 17 anos como vendedor de pipoca e de picolé. No Festival do Futuro, ele contou que nunca conseguiu licença para trabalhar em eventos porque chegou ao conhecimento dele que, como são rotativos (a carrocinha pode ficar mudando de lugar), a licença não seria necessária. O pipoqueiro acredita que as permissões são destinadas somente aos ambulantes que montam barracas – mas na própria festa da posse, havia vendedores – como dona Maria Lúcia – que não montam barraca e conseguiram a autorização.

Ronaldo não tem filhos e sofre de anemia falciforme, doença genética e hereditária causada por anormalidade de hemoglobina dos glóbulos vermelhos. Os efeitos da doença são episódios de intensa dor, suscetibilidade às infecções, lesões orgânicas e, em alguns casos, a morte precoce. Estima-se que, no Brasil, uma em cada cem pessoas apresente as alterações genéticas decorrentes da doença, que atinge principalmente pessoas negras. A doença é detectada por meio do teste do pezinho, que deve ser realizado nas Unidades Básicas de Saúde, de preferência, entre o 3º e o 5º dia de vida do bebê.

Além de conviver com a doença, Ronaldo enfrenta o estigma de “bandido” – ele relatou que os trabalhadores ambulantes são tratados assim pela fiscalização. “Uma vez, fui ameaçado duramente pelos fiscais do DF Legal, antiga Agefis. Eles pegaram meu carrinho e me humilharam para caramba. Fiquei muito chateado. Complicado, a gente estar trabalhando e confiscarem a sua mercadoria e te tratar como bandido. É muito ruim. Eu tenho a expectativa que, com o Lula, o dinheiro circule. O dinheiro ficou na mão de pouca gente, lamentou o pipoqueiro, de 43 anos”.

Ronaldo, que nasceu no interior do Tocantins, é conhecido no meio dos vendedores como Romarinho. Ele se tornou ambulante para se manter na capital e continuar o tratamento para anemia falciforme. “O emprego mais fácil e imediato que me apareceu foi o de ambulante. Como eu tenho essa doença eu não posso ser contratado porque nenhuma empresa quer o prejuízo de ter um funcionário que pode ficar muitos dias sem aparecer no serviço devido às crises de saúde”.

Hoje não há uma política governamental que abrace as pessoas que estão à margem da CLT e da cidadania. Nos compete, enquanto Central Sindical, ter um guarda-chuva mais ampliado onde nós vamos buscar alternativas de empreendedorismo com o Sebrae, por exemplo. Os primeiros 100 dias do Governo Lula já são um desafio enorme

Ricardo Patah
Presidente da União Geral dos Trabalhadores

Ele não se curva diante as dificuldades para os ambulantes. Sai de casa por volta de 6h da manhã. Chega ao local do evento, monta e limpa o carrinho e prepara a pipoca para a venda. Mas frisa que é preciso respeito com o vendedor ambulante. “Ele está na rua vendendo por causa da ausência de uma oportunidade melhor. Falamos mal do povo, mas querendo ou não, o brasileiro é muito guerreiro. Não tem emprego, mas está dando um jeito de se virar. Se o governo tiver um plano para a nossa categoria vai ser bem vindo. Quero que Lula melhore a economia e acabe com a instabilidade. Estamos vivendo uma instabilidade política. Nossa democracia sofreu um golpe e isso enfraqueceu a nossa democracia. Muita gente não aceita que aquilo foi um golpe. Mas para quem entende de democracia e o que significa aquela tomada de poder, entende que foi um golpe, Quem perdeu foi a população brasileira”.

Assim como Dona Maria Lúcia, Ronaldo e o casal Guido e Patricia, mais de 8 mil vendedores ambulantes esperançosos por melhores condições de trabalho estão cadastrados no Distrito Federal. O IBGE registrou 38,3 milhões de trabalhadores no Brasil sem carteira assinada, no início de 2022. De acordo com dados de dezembro de 2021 e fevereiro de 2022 da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o setor considerado ‘informal’ supera o formal em quase quatro milhões de trabalhadores.

O presidente nacional da União Geral dos Trabalhadores, Ricardo Patah, integrante da equipe de transição do Governo Lula, disse que o grupo entregou um material de diagnóstico sobre o Ministério do Trabalho, no que concerne às ações, orçamentos e decretos, mas não foram feitas propostas em cima dos diagnósticos. “Mas é lógico que todo movimento sindical, e a UGT, em especial, quer resgatar o Ministério do Trabalho fortalecido. Que ele tenha capacidade novamente de atuação através de suas subdelegacias de fiscalizações. Que não fique só na questão que valoriza a política do salário mínimo, mas também a política de inclusão, a qualificação e a capacitação, e que alcance as pessoas que vamos chamar de “desalentadas”, com o serviço precário como os vendedores ambulantes”, afirmou o dirigente sindical.

Ricardo Patah disse ainda que haverá política específica para todas essas pessoas que são consideradas “invisíveis” perante a sociedade. “Hoje não há uma política governamental que abrace as pessoas que estão à margem da CLT e da cidadania. Nos compete, enquanto Central Sindical, ter um guarda-chuva mais ampliado onde nós vamos buscar alternativas de empreendedorismo com o Sebrae, por exemplo. Os primeiros 100 dias do Governo Lula já são um desafio enorme”, acrescentou.

Claudia Maciel

Graduada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, graduanda em Serviço Social e pós-graduanda em Assessoria em Comunicação Pública, Claudia Maciel foi coordenadora de Comunicação da ‘Central Única das Favelas do Distrito Federal (CUFA DF), da Rede Urbana de Ações Socioculturais (RUAS) e do Núcleo Juvenil Jovem de Expressão. Trabalhou por oito anos, como produtora, locutora e roteirista, no programa de rádio ‘Ação Periferia’ veiculado pela Rádio Nacional AM Brasília

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