ODS 1
Pela primeira vez, Lei Maria da Penha defende prostituta
Em decisão inédita no país, Justiça do Rio usa legislação que pune violência doméstica para condenar agressor de garota de programa
No ano em que completa uma década, a Lei Maria da Penha passa a ser capaz de proteger ainda mais mulheres: numa decisão inédita, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio aplicou a legislação – voltada a punir a violência doméstica – no caso da agressão de uma prostituta carioca de 37 anos, espancada por um cliente. O mandado de prisão contra o agressor, um empresário divorciado de 55 anos, morador da Tijuca, será expedido em três semanas, no máximo. Como prevê a Lei Maria da Penha, a pena, por lesão corporal gravíssima, foi acrescida em um terço e será de dois anos e oito meses.
O caso, que chama a atenção do meio jurídico, começou a tramitar em 2013, ano em que uma garota de programa, na época com 33 anos, moradora da Barra da Tijuca, sofreu lesões corporais graves – um soco que recebeu na boca fez com que perdesse dentes e passasse a ter comprometimento permanente na mastigação. O ataque de fúria partiu de um cliente, com quem ela se relacionava há seis anos. A defesa do réu sempre bateu na tecla de que a vítima era garota de programa e, portanto, não havia relação de afeto que justificasse o julgamento numa Vara da Violência Doméstica e Familiar, para onde o processo fora encaminhado.
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Veja o que já enviamosNa tribuna, durante o julgamento, o advogado do réu se referira à vítima como o exemplo da mulher tsunami: ‘Começa fazendo onda e depois leva tudo do parceiro.’
[/g1_quote]O empresário acabou condenado a dois anos e oito meses em regime aberto (cumpre pena na casa do albergado, podendo apenas dormir na prisão). A defesa não gostou e apelou. O recurso, então, chegou às mãos dos três desembargadores da Primeira Câmara Criminal do TJ do Rio, que, por dois votos, mantiveram a condenação. Como a decisão não foi unânime, o réu teve direito a embargos infringentes, que foram julgados agora pelos cinco desembargadores da Segunda Câmara Criminal.
O embate de teses foi, digamos, a cereja do bolo. De um lado, a defesa, que não negava as lesões corporais, mas que elas seriam sido uma atitude de legítima defesa. Porém, insistia na tese de que o réu apenas gostava de contratar serviços de garotas de programa e tratava-se, portanto, de uma relação sem afeto, com pagamento pelos serviços prestados pela prostituta. Entre as provas, havia reproduções de páginas do site de prostituição do qual a vítima fazia parte (com tabela de preços cobrados). A defesa argumentara ainda que a mulher tinha outros clientes. Na tribuna, durante o julgamento, o advogado do réu se referira à vítima como o exemplo da “mulher tsunami”: “Começa fazendo onda e depois leva tudo do parceiro.”
Já os advogados da garota de programa reuniram fotos, reproduções de e-mails e depoimentos para comprovar a relação afetiva entre o casal, apesar do fato da vítima não negar fazer programas com outras pessoas. De acordo com a acusação, os dois se aproximaram através de um site de relacionamentos e não de prostituição (do qual ela fazia parte também).
[g1_quote author_name=” José Muiños Piñeiro Filho” author_description=”Desembargador” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Apesar de comprovadamente a vítima ser garota de programa, inclusive com site de propaganda e divulgação de preços, e ela não ter negado esta condição, mantive a condenação por entender que a questão não era de mera relação contratual entre cliente e serviços sexuais oferecidos pela vítima, como sustentava a defesa
[/g1_quote]O julgamento do recurso na Segunda Câmara Criminal teve o desembargador José Muiños Piñeiro Filho como relator. Ele ficou convencido que o relacionamento teve um lado afetivo. Fotos mostravam o réu com o filho da vítima durante um jogo de futebol, em almoços com a família dela (com a presença da mãe da prostituta) e outros momentos de lazer.
– Apesar de comprovadamente a vítima ser garota de programa, inclusive com site de propaganda e divulgação de preços, e ela não ter negado esta condição, mantive a condenação por entender que a questão não era de mera relação contratual entre cliente e serviços sexuais oferecidos pela vítima, como sustentava a defesa. Réu e vítima mantiveram relações por seis anos. Eles se conheceram em site de relacionamento e não de programa sexual. Passou a frequentar a casa dela e vice versa. Havia fotos dele ao lado da vítima em momentos de descontração, como em barcos em Angra do Reis, em clubes e em almoços com a família dela. Situações que indicavam descontração e carinho e não apenas companhia profissional e paga – afirma o desembargador.
O conjunto de provas, na avaliação de Piñeiro, mostrou que “ainda que ele pagasse algumas vezes pelos programas ou ajudasse financeiramente e mesmo sabendo que ela fazia programas com outros homens, havia relação de afeto e, com isso, a aplicação da Lei Maria da Penha”. O desembargador destaca especialmente o artigo artigo 5,III: “para efeitos da lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão….; em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”
O tema, porém, provocou opiniões divergente entre os desembargadores da Segunda Câmara Criminal. Num determinado momento, por exemplo, foi citada uma troca de mensagens entre a vítima e uma amiga, na qual ela (a prostituta) reclamava que o empresário estava saindo com outra mulher (que ela chamava de “velha”). Uma desembargadora concluiu que isso demonstrava que a garota de programa estava apenas preocupada com a possível perda de sua “galinha dos ovos de ouro”. A outra desembargadora, porém, entendeu como a reação de uma mulher “despeitada” com a presença de outra mulher no relacionamento. Em outras palavras: ciúme.
[g1_quote author_name=”José Muiños Piñeiro Filho” author_description=”Desembargador” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Esse tema me trouxe a lembrança de uma discussão jurídica antiga e que, felizmente, com o tempo, foi superada. Saber se uma prostituta poderia ser vítima de estupro. Quando eu comecei a estudar Direito, nos anos 70, era dividida na época a opinião dos juristas a respeito desse tema
[/g1_quote]Ao final dos argumentos, dois desembargadores (um deles, uma mulher) acompanharam o voto de Piñeiro. E dois (um deles, outra mulher) divergiram no entendimento de que caberia a aplicação da Lei Maria da Penha. Mas, por três votos a dois, foi mantida a condenação com aplicação dessa lei.
Caso a Segunda Câmara Criminal não acolhesse a tese da acusação, a condenação pela Vara da Violência Doméstica e Familiar teria que ser anulada para o processo recomeçar numa Vara Criminal comum. Nesse caso, o réu ficaria impune, pois o crime já estaria prescrito.
Na avaliação do desembargador a decisão inédita é um avanço:
– Esse tema me trouxe a lembrança de uma discussão jurídica antiga e que, felizmente, com o tempo, foi superada. Saber se uma prostituta poderia ser vítima de estupro. Quando eu comecei a estudar Direito, nos anos 70, era dividida na época a opinião dos juristas a respeito desse tema – acrescenta ele.
A defesa do réu pode recorrer ao Superior Tribunal de Jutiça, em Brasília, mas o mandado de prisão será expedido em breve.
Procurados pelo Projeto #Colabora, a vítima e o advogado dela não quiseram dar entrevista.
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Depois de duas décadas dedicadas à cobertura da vida cotidiana do Rio de Janeiro, a jornalista Laura Antunes não esconde sua preferência pelos temas de comportamento e mobilidade urbana. Ela circula pela cidade sempre com o olhar atento em busca de curiosidades, novas tendências e personagens interessantes. Laura é formada pela UFRJ.
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Boa tarde! Sou advogada e pesquiso a Lei Maria da Penha. Gostaria de acessar os votos dos desembargadores desse processo, para que possa fazer uma análise dos discursos. Para tanto, seria possível que vocês me passassem alguma informação do processo?
Garanto que os dados da vítima e do réu não serão divulgados.
Enquanto estudante da ciência jurídica, respeito os votos vencidos, no entanto, não consigo entender qual a dificuldade em se aplicar a Lei Mª da Penha neste caso concreto. O relacionamento ocorria a anos, fotos em momentos diversos da prestação de serviços, almoço em família, mensagens trocadas comprovando afinidade…
Infelizmente, sou levado a crer que os votos vencidos foram movidos por preconceito e dogmas moralistas. É solar a afetividade ao longo de 06 ANOS, não são seis dias.