Chacinas em escolas indicam progressão do ódio e da falta de limites

Vigília em homenagem a crianças assassinadas em creche em Blumenau (SC): chacinas em escolas indicam avanço do ódio no país (Foto: Anderson Coelho / AFP)

Com multiplicação do número de casos, é impossível desassociar esse crescimento da proliferação do ódio e do armamentismo entre os brasileiros

Por Fernando Molica | ArtigoODS 16 • Publicada em 7 de abril de 2023 - 10:10 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 13:48

Vigília em homenagem a crianças assassinadas em creche em Blumenau (SC): chacinas em escolas indicam avanço do ódio no país (Foto: Anderson Coelho / AFP)

No alto da capa de sua edição desta quinta-feira, o jornal O Estado de S.Paulo relaciona doze massacres em escolas ocorridos no país desde 2002. Uma leitura rápida permite constatar uma aceleração dessas chacinas: metade ocorreu ao longo de 17 anos; os outros seis crimes listados foram cometidos nos últimos quatro anos e quatro meses, a partir de 2019, ano da posse de Jair Bolsonaro na Presidência.

Estudo da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Estadual Paulista citado pela Folha de S.Paulo destaca a ocorrência 13 ataques semelhantes de 2002 a julho de 2022. Apenas de agosto passado para cá foram mais dez casos, é impossível desassociar esse crescimento da proliferação do ódio e do armamentismo entre nós.

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Todos podemos agir de maneira terrível e tomar atitudes graves e antissociais, no trabalho, na escola, em casa, no trânsito, no aperto do transporte público, na fila de um hospital, qualquer um de nós pode matar. Mas não sobreviveríamos se nos pautássemos apenas pelos nossos instintos. Por isso que, ao longo de milênios, as diferentes sociedades criaram leis, códigos, normas de comportamento e também instituições para regular a vida coletiva: escola, religião, polícia, justiça e tantas e tantas outras.

Regras que determinam desde a necessidade de mastigar de boca fechada à proibição de dirigir após beber e à prática do homicídio. Valores que, ao longo do tempo, foram sendo incorporados pela humanidade. Sem essas limitações, nenhum de nós estaria aqui.

Esse padrão mínimo de comportamento também determina a obrigação da tolerância e de respeito em relação ao outro. Temos o direito de discordar da estatização ou da privatização, da presença maior ou menor do Estado na economia, da concessão de incentivos fiscais ou da absolvição de A ou B. Assim como devemos respeitar comportamentos individuais que afetam apenas a vida daqueles que o praticam – crenças, práticas sexuais, uso de álcool, corte de cabelo desse ou daquele jeito.

Desde a redemocratização que o Brasil avançava aos trancos e barrancos, como é comum acontecer em sociedades democráticas. Divergíamos muito, mas tínhamos alguns pactos: respeitávamos os resultados das urnas, governos eleitos tinham o direito de seguir as vontades majoritárias desde que isso não implicasse corte nos direitos das minorias.

Esse combinado passou a ser relativizado na última década, entrou em parafuso na campanha eleitoral de 2018 e acabou desprezado durante o mandato de Jair Bolsonaro na Presidência. Na cartilha bolsonarista, apenas a maioria que o elegera tinha direitos e representava o “Brasil de verdade”. “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil” e “Vamos fuzilar a petralhada“, prometeu ao longo da campanha.

No Planalto, a propagação da intolerância e do ódio foi ainda mais estimulada, como se os não bolsonaristas não fossem cidadãos, não pagassem impostos, não ajudassem a sustentar a máquina estatal. Ao levar para a política princípios religiosos – céu e inferno, bem e mal, pecado e virtude – ele obstruiu a lógica da negociação, fundamental em qualquer sociedade. Afinal, não dá para transigir com o Diabo, que deve ser combatido, derrotado, exterminado.

Não foi Bolsonaro que inventou o ódio, a intolerância e o preconceito, tudo isso havia entre nós, como em qualquer outro lugar. Mas ele soube se tornar um canal de expressão e de ampliação desses sentimentos. A regra foi a expulsão dos que divergiam, inclusive de ministros defenestrados poucas semanas depois do início do mandato presidencial. Governadores que discordavam de Bolsonaro ou que poderiam lhe fazer frente em 2022 foram colocados de lado, adversário passou a ser visto como inimigo.

A palavra liberdade ganhou outro significado, passou a ser utilizada para a defesa do indefensável, do preconceito, do direito de mentir. A população recebeu o direito de comprar armas de maneira irrestrita – muitas das quais seriam repassadas para quadrilhas – e ouviu do poder central o recado de que não havia mais limites para os que pensavam como o chefe.

A fiscalização nas estradas diminuiu (as mortes em acidentes em rodovias aumentaram a partir de 2019), a violência policial foi estimulada, militares da ativa passaram a participar da vida política; em nome de Deus e do Mito – designação que dá ao líder um caráter sobre-humano – todos podiam fazer o que bem entendessem, todos eram livres, inclusive para desrespeitar medidas contra a proliferação da covid-19, ou seja, para disseminar a morte.

O desrespeito a tantas leis e normas relativizou a institucionalidade. Quem pode acelerar sem limites na estrada, matar quem classifica de bandidos e não usar máscara na pandemia pode também desmatar, invadir terras indígenas, não aceitar o resultado das urnas, pedir golpe de Estado diante de quartéis, atacar policiais, invadir e depredar sedes de poderes. Tudo isso como exercício de liberdade.

Quem não se vê limitado por regras, não teme punições e se acha movido por vozes misteriosas pode, em casos extremos, também deixar de conter seus ódios e recalques. Passa a se achar no direito de matar ou impor sofrimento a supostos inimigos e demônios, vistos como culpados ou cúmplices de suas dores, de seus traumas, de sua infelicidade, de desejos tidos como pecaminosos e sujos – é preciso exterminar a alegria alheia, como aquela proporcionada por crianças. Matar passa a ser uma prerrogativa de quem é livre, de quem se acha maior que qualquer lei.

Seria então preciso eliminar o outro, o oponente, o pecador, provar ao mundo que não é maricas. Cometer um gesto brutal também representaria a chance de sair do anonimato de uma vida infeliz e reclusa, uma forma de mostrar ao universo virtual que seu ódio não tem limites, a lógica do meu é maior do que o seu. Em mentes mais frágeis, o estímulo à transgressão pode ter consequências trágicas, promover chacinas seria apenas um passo além.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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