Medo abastece o desperdício de água

Água vaza de tubulação da Cedae: estatal admite que não combate desperdício em áreas dominadas por tráfico ou milícia (Foto: Custódio Coimbra)

Registros de furtos de água no Rio caem, mas presidente da Cedae reconhece que estatal não atua em áreas dominadas por tráfico e milícia

Por Emanuel Alencar | ODS 6 • Publicada em 18 de setembro de 2019 - 10:08 • Atualizada em 19 de setembro de 2019 - 01:37

Água vaza de tubulação da Cedae: estatal admite que não combate desperdício em áreas dominadas por tráfico ou milícia (Foto: Custódio Coimbra)
Água vaza de tubulação da Cedae: estatal admite que não combate desperdício em áreas dominadas por tráfico ou milícia (Foto: Custódio Coimbra)
Água vaza de tubulação da Cedae: estatal admite que não combate furtos de água em áreas dominadas por tráfico ou milícia (Foto: Custódio Coimbra)

O controle de comunidades da Região Metropolitana pelo tráfico de drogas e pela milícia faz com que as ações de combate a furtos de água deixem de acontecer, dependendo do grau de risco. A informação foi repassada ao Ministério Público do Rio pelo próprio presidente da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), Hélio Cabral, em ofício do dia 19 de junho de 2019. O documento foi anexado ao inquérito civil 8683, que apura as perdas na distribuição de água da concessionária do saneamento do Estado do Rio. Ao se referir a uma ação de combate de atividades irregulares de captação de água na Avenida Radial Oeste, na Mangueira, em julho de 2017, Hélio Cabral lembra que equipes da Cedae foram recebidas “a pedradas, mesmo com apoio policial”, e que “dependendo do custo-benefício”, a companhia deixa de fazer a inspeção: “Em diversas atuações, os fiscais deixam de realizar a vistoria em virtude de sofrerem diversos tipos de ameaças”.

O cenário de medo é mais um entrave ao combate aos históricos desperdícios. Somente na capital, 26,4% de toda a água distribuída pela Cedae se perde, segundo o MP – por motivos que vão de pequenos vazamentos de difícil detecção a grandes ações clandestinas. E os órgãos públicos parecem incapazes de mudar esse quadro. As comunicações sobre lava-jatos clandestinos feitas pela Cedae à Polícia Civil têm caído nos últimos anos (veja quadro abaixo): de 317 registros em 2015 para 264 registros em 2017, uma queda de 16%. Em 2018, foram somente 177 registros até agosto. Entretanto, o valor das multas a quem cometeu ilegalidades aumentaram. O #Colabora perguntou a Cedae o porquê de os registros estarem descendentes.

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A companhia respondeu que “o setor de segurança patrimonial da companhia atua diariamente no combate à ligação clandestina” e que “somente em 2019 (janeiro a julho) já foram realizadas mais de 3.700 atuações. Como divulgado recentemente, os casos de ligações irregulares não ocorrem exclusivamente em comunidades, na última semana, equipe da Cedae flagrou irregularidade em imóvel no condomínio Mansões, na Barra da Tijuca”.

A Cedae acrescentou, em e-mail, “que a equipe de segurança solicita, sempre que possível, apoio de órgãos de segurança em operações, principalmente quando identificado a dificuldade de atuação apenas por parte da equipe da companhia”. Disse ainda que, além das ações rotineiras, a empresa também atua em ações de outros órgãos, quando solicitada. E que o valor dos autos de infração por furto de água no período de janeiro a agosto de 2019 é de R$ 613.142,66, dos quais aproximadamente 27% já foram pagos.

Briga judicial com shopping da Zona Sul

No inquérito que está sob a responsabilidade do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente (Gaema), a Cedae informa que algumas ações estão sendo feitas para fechar o gigantesco ralo do desperdício de água. Ao detalhar as políticas de combate às chamadas “perdas reais” e não-visíveis – quando há vazamentos durante a distribuição de água -, a estatal diz que de 1.560 serviços previstos anualmente, na Região Metropolitana, somente 70 (ou 4,4%) já haviam sido realizados até junho passado. Para essas ações, a concessionária informa estar investindo R$ 14,5 milhões. Quanto ao programa de substituição de redes, a Cedae informa que já executou 170 quilômetros em 53 bairros do Rio e em 22 bairros da Baixada. O elevado índice de perdas de água reduz o faturamento das empresas e, consequentemente, sua capacidade de investir e obter financiamentos.

O curioso é que até um shopping entra na mira da Cedae, como vilão. O Botafogo Praia Shopping é descrito pelo presidente da empresa de saneamento, no inquérito, como autor de uma ilegalidade: o uso de caminhões-pipa para abastecimento estaria sendo feito em horário noturno. “Em relação aos estabelecimentos abastecidos por carro-pipa, cabe informar que, quanto ao Botafogo Praia Shopping, várias diligências foram efetuadas no local. Especialmente no período noturno constatou-se a veracidade da denúncia anônima sobre o abastecimento de carro-pipa”, descreve Hélio Cabral, na pág. 172 no inquérito. O processo tramita na 12ª Vara Cível da Comarca da Capital.

O #Colabora entrou em contato com a assessoria do Botafogo Praia Shopping para saber se o fato gerou algum litígio entre o estabelecimento comercial e a Cedae e o posicionamento do shopping acerca do uso de carros-pipa: é uma medida legal? O Botafogo Praia esclarece que, diante da escassez pontual de fornecimento de água no Rio de Janeiro, utilizou água proveniente de fontes alternativas devidamente legalizadas, conforme previsto na legislação em vigor. O shopping reforça ainda que, na ocasião, aferiu e atestou a potabilidade da água com uma empresa especializada. O procedimento adotado pelo shopping foi submetido ao Ministério Público atestando a sua perfeita conformidade com as normas legais aplicáveis. O Botafogo Praia reitera que o abastecimento do shopping é feito apenas pela Cedae.

 ‘Situação no Rio piorou muito’, diz ex-presidente da Sabesp

Na capital paulista a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) gasta cerca de R$ 400 milhões/ano para evitar que o índice de perdas aumente (hoje em cerca de 35%), segundo o engenheiro Jerson Kelman, ex-presidente da companhia paulista. Ele ressalta que as ações de combate ao desperdício em regiões densamente ocupadas são sempre um processo complicado, que demanda altos investimentos e muito tempo.

“Em cidades como Rio e São Paulo, vale combater o desperdício porque o abastecimento de água vem de muito longe (Guandu e Cantareira). Mas o processo está longe de ser simples e rápido. O Japão demorou 20 anos. Às vezes é preferível trocar ramais (que liga o tronco principal a outros menores) do que trocar grandes tubulações. Sobre as ameaças, enfrentei isso também quando estava na Light (de 2010 a 2012). Uma concessionária não tem poder de polícia”, destaca Kelman.

Para o engenheiro, a situação piorou muito com a derrocada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). “Entrávamos na rasteira na UPP. Beltrame (ex-secretário de Segurança) dizia que uma das funções da pacificação das favelas era melhorar os serviços públicos. Mas não vejo as perdas na distribuição como um crime que o Estado esteja cometendo. É uma questão fundamentalmente econômica”, diz Jerson Kelman.

Segundo o Banco Mundial, o valor aceitável em perdas na distribuição de água para países em desenvolvimento está entre 4% e 8%. Por e-mail, a Cedae informou ainda que os “gatos” na rede danificam a rede de distribuição da companhia, causando vazamentos de água e reduzindo a pressão no sistema, prejudicando o abastecimento. E que “as ligações clandestinas estão tipificadas no artigo 155 do Código Penal como crime de furto de água e podem ser denunciadas pelo site www.cedae.com.br ou pelo telefone 0800-282-1195”. A reportagem também questionou a Delegacia de Defesa dos Serviços Delegados sobre inquéritos ou investigações abertos neste ano de 2019 a respeito de lava-jatos clandestinos, mas não obteve retorno.

Emanuel Alencar

Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa mestra em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.

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