Força do coletivo: comunidades driblam falta d’água causada por atraso de obras no São Francisco

Moradores reassentados para vilas rurais se unem para cobrar promessas do governo e usam até recursos próprios para fazer irrigação, tornando suas propriedades produtivas

Por Marco Zero Conteúdo | ODS 6 • Publicada em 28 de setembro de 2020 - 18:20 • Atualizada em 2 de novembro de 2020 - 09:34

Estação de Monteiro (PB), onde fica a vila Lafayette, que será uma das primeiras a receber água (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Estação de Monteiro (PB), onde fica a vila Lafayette, que será uma das primeiras a receber água (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Moradores reassentados para vilas rurais se unem para cobrar promessas do governo e usam até recursos próprios para fazer irrigação, tornando suas propriedades produtivas

Por Marco Zero Conteúdo | ODS 6 • Publicada em 28 de setembro de 2020 - 18:20 • Atualizada em 2 de novembro de 2020 - 09:34

(Por Inês Campelo e Sérgio Miguel Buarque) Trabalho coletivo. É assim moradores tentam superar o abandono e os problemas que afetam, há dez anos, a maioria da população que vive nas Vilas Produtivas Rurais (VPR) depois de ser removida pela obra de transposição do Rio São Francisco. São duas VPRs, localizadas nos extremos do mapa da transposição e separadas por mais de 300 quilômetros, que mostram que o melhor caminho para enfrentar os problemas causados pelo atraso das obras infraestrutura e a consequente escassez de água nessas instalações.  Moradores das Vilas Produtivas Rurais Captação, em Cabrobó/PE, e Lafayette, em Monteiro/PB, cansaram de esperar que prefeituras, órgãos estaduais ou federais cumprissem as obrigações assumidas. Se organizaram para cobrar as promessas feitas e, principalmente, para produzir.

A gente já recebeu as casas há quase dez anos e só estamos produzindo porque a gente se juntou e fez com recursos próprios. Essas estradas aqui, a drenagem, foi tudo a gente que fez

Captação fica nas margens do Rio São Francisco. É a primeira vila do Eixo Norte da transposição e, como o nome indica, fica bem próxima de onde a água é captada. Apesar da proximidade do rio e de ter sido umas das primeiras a serem ocupadas, ainda em 2010, os terrenos irrigados não foram entregues aos novos proprietários. Ainda havia outro problema. Os lotes reservados para produção eram menores do que o previsto. “Quando mediram a área para demarcar os terrenos que seriam irrigados só sobrou 1,65 hectare para cada um, quando o combinado eram dois”, lembra Rivaldo Manoel Novais, 56 anos.

Terreno irrigado pelo proprietário na VPR Captação, em Cabrobó (PE), que tem 17 casas (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Os lotes com o tamanho reduzido teriam sido entregues normalmente se os proprietários não fossem negociar com os representantes do Ministério do Desenvolvimento Regional. Os moradores não só pressionaram como apresentaram a solução para o problema. No final, houve uma inversão das áreas onde seriam implantados os lotes de sequeiro (terreno não regado utilizado para plantar nos períodos de chuva ou para criação de animais) com a área dos irrigados, garantindo os dois hectares pactuados anteriormente.

A troca do local dos lotes também possibilitou que os terrenos de sequeiro ficassem próximos do Rio São Francisco (o lote de Rivaldo, por exemplo, fica a 270 metros). Foi aí que surgiu a ideia de criar uma associação entre os moradores para implantar um sistema de irrigação próprio, aproveitando a proximidade do rio. “No começo a gente foi conversando com as pessoas. Tinha gente que não queria. Era um trabalho de convencimento. Até que chegou a hora que a gente disse: ‘vai ter que irrigar’. Aí a gente foi comprando cano, bomba, transformador. Era tudo dividido igualmente com todos”, lembra Rivaldo.

Rivaldo Manoel Novaies, da VPR Captação, em Cabrobó (PE): união do moradores para melhorar a comunidade (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Treze dos dezessete proprietários aceitaram participar da associação. Há cerca de três anos, com a água trazida do São Francisco, começaram a produzir e aumentar a renda familiar. Cada sócio paga R$ 15 por mês, com as eventuais despesas extras para investimentos sendo rateadas igualmente. “A gente já recebeu as casas há quase dez anos e só estamos produzindo porque a gente se juntou e fez com recursos próprios. Essas estradas aqui, a drenagem, foi tudo a gente que fez através da associação”, mostra Rivaldo com orgulho.

O exemplo de Lafayette

A VPR Lafayette está localizada no final do Eixo Leste, no município de Monteiro/PB. Inaugurada em março de 2016, está no grupo das últimas vilas a serem entregues e, possivelmente será uma das primeiras a receber os lotes irrigados. Isso porque o Eixo Leste, apesar de algumas interrupções por problemas estruturais, já está em pré-operação. Mas, mesmo antes de a água chegar e dos inúmeros problemas comuns às outras vilas, boa parte dos moradores começou a produzir de forma consistente e articulada.

Agnaldo Freitas da Silva, presidente da associação de moradores da VPR Lafayette, em Monteiro PB, que tem 61 casas (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Agnaldo Freitas da Silva, 44 anos, é o presidente da Associação de Moradores de Lafayette e também um agricultor inquieto, que vive procurando ideias, parcerias e apoio para projetos que ajudem a melhorar a sua produção. Sua e dos vizinhos. Segundo Agnaldo, o sucesso da vila em relação à maioria das outras do projeto de transposição deve-se à combinação de organização entre os moradores com a busca pela capacitação técnica para produzir com mais eficiência e menos recursos. São muitos exemplos nestes pouco mais de quatro anos, envolvendo parcerias com órgãos públicos, universidades e organizações não governamentais.

Fizemos capacitação com a comunidade. Mostramos que a água não era para a plantação ou consumo dos animais

Além de ter organização, é preciso ter persistência. Um exemplo disso foi o processo para colocar água nas torneiras das casas da vila. “Aqui, tivemos todo processo com a água. Começamos com o poço, mas era imprópria para o consumo, já que tinha muito sódio. Paramos o poço e acionamos o ministério que passou a fornecer carro-pipa por mais de um ano. Depois, conseguimos a Cagepa (Companhia de Água e Esgoto da Paraíba) que opera até hoje aqui dentro. A gente teve até que entrar com ação na Justiça Federal”, lembra Agnaldo. Tanta luta mostrou também a necessidade do uso consciente da água. “Fizemos capacitação com a comunidade. Mostramos que não era para a plantação ou consumo dos animais”.

Desde cedo, os moradores de Lafayette perceberam que precisavam agregar valor ao que produzissem. Assim, poderiam compensar o custo relativamente alto da água e as condições do terreno nem sempre tão favoráveis. Perceberam também que o trabalho conjunto e a capacitação técnica era o melhor caminho. Foi assim, por exemplo, com a produção de algodão agroecológico ano passado. Vale lembrar que a Paraíba já foi um importante centro produtor de algodão até a praga do bicudo por volta dos anos 1980.

Criação de bodes de Agnaldo na VPR Lafayette (PB) (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Luciano dos Santos, 43 anos, foi um dos 29 moradores da vila que começaram o projeto. Depois de passar por uma capacitação de seis módulos com técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), os produtores começaram a preparar o terreno, com uma série de cuidados e procedimentos para que o “selo” de agroecológico fosse garantido.  Luciano lembra que na época dos pais dele plantavam o algodão Mocó mas, depois da capacitação, eles resolveram plantar o Aroeira. “Tem boa produtividade e é mais resistente às pragas”.

No individual é muito difícil. Com a associação podemos buscar a venda direta e conseguir melhores preços

O trabalho, segundo Luciano, foi duro. Dos 29 produtores que começaram, apenas quatorze chegaram ao final do processo. O cultivo rendeu cerca de uma tonelada de plumas, vendidas à Veja Fair Trade, marca francesa de tênis sustentáveis, por R$ 11,50 o quilo. As negociações foram feitas com o apoio da Associação de Certificação Participativa dos Produtores Agroecológicos do Cariri Paraibano (ACEPAC) e em parceria com o Instituto C&A. “No individual é muito difícil. Com a associação podemos buscar a venda direta e conseguir melhores preços”, explica.

Em onze casas da vila, tanques de concreto no quintal chamam a atenção. A estrutura, construída em parceria com o Sebrae, é mais uma aposta dos moradores. Em cada tanque de 14 mil litros, são dois por propriedade que participa do projeto, estão cerca de mil tilápias. Para conseguir tantos peixes em um espaço tão restrito, os moradores tiveram orientação de profissionais da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que tem um convênio com o Ministério do Desenvolvimento para realizar capacitações nas dezoito vilas.

Além do algodão e dos peixes, vários outros projetos foram ou estão sendo executados na vila Lafayette. Apicultura (eram 200 colmeias de abelhas nativas), milho hidropônico, curso de hortaliças e criação de aves, perfuração de poços (11 ao todo) e plantação de palma (renderam 440 mil raquetes em 2019) só para citar os mais relevantes. “Aos poucos estamos desenvolvendo nosso potencial. São essas parcerias que vão abrindo caminho”, comemora Agnaldo.

A organização para a produção agrícola também ajuda na mobilização para trazer benefícios para a comunidade. Em Lafayette o posto de saúde funciona e a escola oferece cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A estrutura física da escola também é usada para cursos de capacitação e oficinas dos mais variados tipos, desde fabricação de doces a aulas de dança.

Claro que ainda existem muitos problemas a serem resolvidos e nem todas as pessoas da comunidade estão envolvidas nesse processo. Lafayette é bem heterogênea, o que dificultou e, de certa forma, limitou a organização. Das 61 famílias iniciais, dezenove vieram da zona urbana de Monteiro, sem afinidade com a agricultura. Outras dezoito famílias vieram de localidades de Pernambuco, fato que não ajudou na integração no primeiro momento. Isso, porém, não impede Agnaldo de pensar em ampliar o trabalho coletivo. “Nossa ideia é fazer uma cooperativa. Mas isso só será possível quando os lotes irrigados forem entregues”.

Terreno de sequeiro que foi irrigado graças à união da comunidade, perto do Rio São Francisco, na VPR Captação, em Cabrobó (PE) Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Com a ajuda dos universitários

Segundo Leonardo Cavalcanti, coordenador das ações do Programa de Reassentamento das Populações (PBA08) na Universidade Federal do Vale do São Francisco, a ideia da universidade também é incentivar a criação de cooperativas. “Reuniríamos as VPRs de Pernambuco e criaríamos uma cooperativa, o mesmo com as vilas do Ceará e da Paraíba. Assim, elas poderiam comprar e comercializar em melhores condições”, explica. 

Em 2019, a Univasf realizou 69 capacitações nas dezoito VPRs. Os cursos de Formação de representantes e Organização Socioprodutiva aconteceram em todas as vilas. Outros, como Irrigação, Beneficiamento de Frutas, Quintal Produtivo, Produção de Forragens, Horta Agroecológica, Criação de Galinhas Caipiras e Piscicultura foram aplicados conforme a necessidade de cada comunidade. Ao todo, foram 1.075 participantes.

As capacitações fazem parte do PBA08 e, através de um convênio com o Ministério do Desenvolvimento Regional, envolvem professores e pesquisadores de diferentes cursos da Univasf e também de colaboradores terceirizados e estudantes. Segundo Leonardo Cavalcanti, em 2019 houve uma mudança de foco na realização das capacitações. “A escolha dos cursos foi feita com a participação das vilas, abordando temas de interesse e da realidade de cada uma”.

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