Diário de viagem: no rastro da transposição do Rio São Francisco

Equipe do Marco Zero Conteúdo circulou pelo Nordeste em busca das histórias dos moradores reassentados nas 18 vilas produtivas rurais

Por Marco Zero Conteúdo | ODS 6 • Publicada em 28 de setembro de 2020 - 23:58 • Atualizada em 1 de outubro de 2020 - 10:02

A VPR Negreiros, em Salgueiro (PE), uma das 18 percorridas pela equipe do Marco Zero Conteúdo (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

A VPR Negreiros, em Salgueiro (PE), uma das 18 percorridas pela equipe do Marco Zero Conteúdo (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Equipe do Marco Zero Conteúdo circulou pelo Nordeste em busca das histórias dos moradores reassentados nas 18 vilas produtivas rurais

Por Marco Zero Conteúdo | ODS 6 • Publicada em 28 de setembro de 2020 - 23:58 • Atualizada em 1 de outubro de 2020 - 10:02

(Por Inês Campelo) A expectativa de percorrer 18 vilas produtivas rurais em pouco tempo era grande. Conhecer o mundo através de histórias de vida de pessoas simples é uma das coisas que mais me encantam no jornalismo.

Sempre tive uma ligação forte com o interior, influência familiar. Nasci em Garanhuns, mas cresci no Recife. Apesar disso, brinco dizendo que saí de lá com 30 dias, mas Garanhuns nunca saiu de mim. Daí meu primeiro afeto por lugares pequenos, onde todo mundo conhece todo mundo e vizinhos carregam como “sobrenome” ser filho de alguém – Maria de seu João de Barros.

São de lugares simples que carrego as melhores experiências e exemplos. Graças ao jornalismo, já percorri muitas estradas rumo ao interior, principalmente de Pernambuco.

Entender um pouquinho sobre a maior obra para o povo já vista nesse velho Brasil é revigorante. Faz até os mais incrédulos imaginarem que pode ser diferente e que, se depender daqueles sertanejos, o Brasil pode se curar de tantas feridas.

O chão laranja de terra batida e muita pedra mostrou de cara o que já esperava. O sol a pino, o céu especialmente azul e riscado por nuvens me lembrou de quando era criança e via histórias desenhadas, e foi revelando pouco a pouco a vida sofrida daquelas pessoas que ia conhecer.

Foi um calor escaldante, vi pela primeira vez na vida o termômetro do carro bacana em que viajamos marcar 44°, o que deu mote para começar muitas conversas nos oito dias em que nos aventuramos, eu e Sérgio, por caminhos que muitas vezes nem o GPS mostrava.

As vilas seguem o mesmo padrão. Casas, posto de saúde, escola, campo de futebol, sede de associação comunitária contornam o terreno que mais parece um tabuleiro de Banco Imobiliário, mas sem o bairro do Morumbi. Quase sempre no meio do nada. Seja em Pernambuco ou Ceará, o modelo é o mesmo. É sobre vidas independentes que foram colocadas nesse tabuleiro que quero falar.

A grandiosidade da obra que via de perto, do começo ao fim, carregava, pra mim, o peso de tantas mudanças que até hoje confundem os sentimentos. Era a água sonhada que poderá irrigar terras e acabar com as manchetes de seca do meu Nordeste, mas também uma mudança da vida de tanta gente.

Ouvi de um cidadão, seu Zé Ribeiro, que vivera 60 dos seus 84 anos de vida num pedacinho de terra e que agora está numa “casa boa” mas sem vida, sem um pé de pau pra sentar à sombra no fim do dia, sem o rio pra tomar banho, porque as vilas na maioria das vezes estão distantes quilômetros do rio. Penso sobre isso até hoje.

Quando só se conhece um pedaço de terra que lhe é “tirado”, é difícil retomar a vida mesmo com outros tantos suportes oferecidos pelo projeto. Isso me faz ter dúvidas. E se fosse comigo? Se meu mundinho fosse virado de ponta cabeça, como estaria?

A VPR Cacaré, em São José de Piranhas (PB): jornalismo no rastro da megaobra (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Mas essa foi só uma parada. Foi uma história entre tantas. Conhecer uma mulher que se tornou líder comunitária em sua vila também traz reflexões. Vê-la superar dificuldades de uma vida como “meeira”, vencer o machismo muito presente no interior, encheu o coração de esperança de que, quem sabe, um dia a água vai chegar para aquelas pessoas e vai de fato mudar vidas.

A dinâmica de vida de quem vive em um sítio, apenas tendo como vizinhos seus parentes, é bem diferente da forma de vida de uma vila. No campo a vida é livre, na vila é seca. Seca por natureza. Seca de chão de pedra. Seca pelo sol que castiga de verdade. E, agora, ter ao redor pessoas novas, com demandas e costumes diferentes, é muito complexo.

Ao mesmo tempo, enxergar o potencial da coletividade, literalmente, em forma de cooperativas, é de encher os olhos! Ver de perto um barreiro cavado com as mãos de uma família para criação experimental de tilápias é entender tantos potenciais apagados até então. Esfrega na cara de quem não acredita que dias melhores podem estar por vir.

São tantos exemplos que é impossível listar em poucas linhas, é pretensioso demais resumir aquelas vidas nas minhas palavras.

Entender um pouquinho sobre a maior obra para o povo já vista nesse velho Brasil é revigorante. Faz até os mais incrédulos imaginarem que pode ser diferente e que, se depender daqueles sertanejos, o Brasil pode se curar de tantas feridas.

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