Fome documentada: série mostra insegurança alimentar na pandemia

A faxineira e catadora Maria da Guia e a neta, Maria Eduarda, no primeiro episódio da série Insegurança à Mesa, gravado em João Pessoa: documentário mostra avanço da fome em diferentes cidades do Brasil (Foto: (Foto: Álvaro Júnior / Visão Mundial)

Episódios no YouTube acompanham, em sete cidades, famílias vulneráveis e o agravamento da situação com o avanço da covid-19

Por Oscar Valporto | ODS 2 • Publicada em 19 de outubro de 2021 - 08:47 • Atualizada em 26 de outubro de 2021 - 10:04

A faxineira e catadora Maria da Guia e a neta, Maria Eduarda, no primeiro episódio da série Insegurança à Mesa, gravado em João Pessoa: documentário mostra avanço da fome em diferentes cidades do Brasil (Foto: (Foto: Álvaro Júnior / Visão Mundial)

Até a chegada da covid-19, a paraibana Maria da Guia, 55 anos, trabalhava como faxineira para sustentar a casa onde mora com outras 10 pessoas – crianças, na maioria – no bairro São José, o mais pobre de João Pessoa. As restrições causadas pelo enfrentamento da pandemia a deixou sem o trabalho de faxina; ela passou a catar objetos recicláveis pelas ruas da capital paraibana e chegou a comer alimentos encontrados no lixo para espantar a fome.

Maria da Guia é o personagem central do primeiro episódio da série documental Insegurança à mesa, produzida pela Visão Mundial – ONG cristã internacional que atua no Brasil desde 1975 – e a ser exibida em seu canal no YouTube, a partir desta terça (19/10): os outros seis episódios mostram a vida de famílias, em outras seis cidades brasileiras que sofrem com a ameaça da fome, agravada durante a pandemia. “Falar sobre fome no Brasil atual é um tema necessário e urgente”, afirma o gerente de Mobilização da Visão Mundial, Kess Jones, que acompanhou parte das filmagens. “O documentário é uma maneira de dar voz a pessoas de diferentes realidades e de diferentes ponto do país que enfrentam o agravamento da segurança alimentar”, acrescenta.

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Os outros episódios foram gravados em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Manaus, Boa Vista e Baía da Traição, pequeno município paraibano com pouco mais de 8 mil habitantes. São cidades onde a Visão Mundial já vem trabalhando para ajudar comunidades pobres durante a disseminação da covid-19. Desde a declaração da pandemia, a ONG garante ter conseguido alcançar diretamente cerca de 2 milhões de pessoas em todo o Brasil; entre elas, mais de 610 mil crianças, foco principal de sua atuação.

Os episódios – todos gravados em julho de 2021 – buscam mostrar a insegurança alimentar e seus impactos em diferentes contextos. No Rio de Janeiro, o documentário acompanha um ex-presidiário que, após cumprir sua pena, busca trabalho para garantir a alimentação de seus filhos. O cenário do episódio de Manaus é uma comunidade ribeirinha, na periferia da capital amazonense, que enfrenta, além da fome, a falta de acesso à água potável e as inundações causadas pelas cheias dos rios. Em Boa Vista, os personagens centrais são os integrantes de uma família de refugiados venezuelanos em situação de insegurança alimentar como centenas de outros compatriotas que buscaram abrigo em Roraima.

‘Insegurança à mesa’ busca enfatizar o impacto deste momento sobre as crianças. “Temos famílias inteiras que perderam totalmente a fonte de renda com o início da pandemia e que hoje, um ano e meio depois, passam por ainda mais dificuldade para conseguirem o mínimo, como o alimento no prato. A fome compromete o desenvolvimento e o futuro de milhões de crianças no Brasil”, destaca Kess Jones, citando pesquisas que mostram esse avanço da insegurança alimentar no Brasil mas também em outros países, naturalmente atingindo sempre as nações mais pobres.

Jones acompanhou a gravação do episódio com Maria da Guia. “João Pessoa é uma cidade razoavelmente próspera que convive com bolsões de miséria. A comunidade São José é vizinha de bairros com condomínios luxuosíssimos. Maria mora numa casa muito pequena, em situação totalmente insalubre: enquanto nós gravávamos, passavam ratos pelo ambiente. É uma família que, muitas vezes, dependia da generosidade dos outros para comer”, conta.

Mas o gerente de Mobilização da Visão Mundial também aponta outra característica desses brasileiros em situação de insegurança alimentar. “Essa família de Maria também, quando tem um pouco, reparte com quem não tem. A gente percebe que, nesses contextos, as pessoas são generosas para repartir. É uma lição de humanidade tremenda”, frisa Kess Jones. Após as gravações, todas as famílias envolvidas receberam cestas básicas doadas pela Visão Mundial e acompanhamento das organizações parceiras na cidade para garantir que a situação delas fosse, de alguma forma, amenizada.

O lançamento da série Insegurança à Mesa no Youtube – na terça, 19/10, a partir das 19h – será seguida de debate sobre segurança alimentar e desenvolvimento infantil com a participação da médica pediatra Ana Escobar. Ao mesmo tempo, a Visão Mundial e a União BR, movimento de voluntários fundado no início da pandemia e hoje presente em 24 estados com ações para minimizar o efeito da pandemia, deflagram uma campanha para arrecadar 7 mil cestas básicas – mil para cada município onde a série foi gravada. A União BR, que apoiou a produção dos documentários, já garantiu as primeiras cestas. “Já conseguimos arrecadar as mil cestas iniciais, e incentivamos as pessoas, empresas e marcas a fazerem o mesmo. A união de esforços nesse combate à fome precisa ser de todos”, destaca Gabriella Marques, responsável por operações no movimento.

Avanço mundial da fome

O agravamento da insegurança alimentar durante a pandemia é uma preocupação mundial. Elaborado por agências da ONU, o relatório ‘O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021’ estima que até 811 milhões de pessoas estavam desnutridas em 2020, o que representa um aumento de mais de 160 milhões de pessoas em comparação com 2019. O relatório também aponta que, de forma geral, 30% da população global – mais de 2,3 bilhões de pessoas – não teve acesso a uma alimentação adequada durante o ano de 2020.

Recente estudo da World Vision mostrou que os preços dos alimentos no varejo aumentaram em quase todos os países, mas o impacto disso foi muito maior nos países pobres, onde os custos dos alimentos representam parcela maior dos orçamentos familiares. O índice de aumento foi significativa maior em países pobres – Líbano (48%), Síria (29,2%), Venezuela (29%), Uganda (21%), Iêmen (18,5%), Sudão (17%), Guatemala (16,8%), Afeganistão (10,7%) – do que nos países ricos (2,9% no Reino Unido, 3,6% nos EUA e 4,8% no Japão e Canadá).

O estudo alerta ainda que, com a crise econômica causada pela pandemia, há menos dinheiro para comprar alimentos e, ao mesmo tempo, os alimentos estão ficando mais caros e menos disponíveis devido às interrupções na cadeia de suprimentos “Esta tempestade perfeita de aumento dos preços dos alimentos e redução da renda já está contribuindo para o aumento da fome global. Até 161 milhões de pessoas enfrentaram a fome em 2020 em comparação com o ano anterior – um aumento de 25% em relação a 2019.3 Mais preocupante, mais de 41 milhões de pessoas estão atualmente sofrendo de níveis emergenciais de insegurança alimentar e / ou condições semelhantes à fome”, destaca o documento da World Vision.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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