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Terras indígenas entram na rota do tráfico internacional de drogas na Amazônia

Facções ocupam territórios, atraem jovens indígenas para o crime e passam a promover também desmatamento, grilagem e garimpo ilegal

(Wérica Lima, Nicoly Ambrosio e Elaíze Farias* – Tabatinga/AM e Manaus/AM) – Nas paredes de uma escola abandonada, as pichações com a sigla C.V., riscadas com tinta, são um aviso: o tráfico domina aqui. Em 2024, conforme apurado pela Amazônia Real, ao menos quatro jovens da etnia Tikuna foram assassinados por envolvimento com o tráfico de drogas na Terra Indígena (TI) Tukuna Umariaçu, em Tabatinga, no Alto Solimões. A violência não para por aí.
Um professor indígena Tikuna relata, com olhos marejados e titubeio na fala, que perdeu seu irmão para o suicídio após ele ter se tornado usuário de drogas. Outros dois alunos também se suicidaram, o que o educador atribui aos produtos ilícitos que os rodeiam e à falta de políticas públicas. “As nossas crianças esquecem a sala de aula. As drogas consumiram os alunos e eles estão diminuindo”, desabafa. “Meu irmão se envolveu com o consumo de droga, começou também a beber cachaça e foi ficando sem psicológico. Ele pegou e se enforcou; é assim que acontece com os nossos alunos por falta de segurança”, relata o professor.
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Conforme pontua, não há nenhum tipo de assistência psicológica permanente e eficaz na TI; apenas em alguns momentos, como após a morte dos jovens, servidores da saúde chegam a visitar os familiares para prestar apoio – e depois não retornam mais. “Nossa área de saúde nunca fez reunião com os alunos, eles nunca dão orientação psicológica, a escola não tem assistência. Eu nunca vi eles fazendo uma reunião assim de conscientização”, afirma.
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Veja o que já enviamosEnquanto o narcotráfico se apodera do território, os recursos educacionais ficam mais escassos e difíceis de serem acessados pelos alunos. Para os indígenas que precisam sair do território para estudar, por exemplo, é preciso desembolsar, no mínimo, R$ 15 reais todos os dias para pagar o “tuc tuc”, um tipo de transporte local que consiste em uma moto com uma carroceria e cobertura.
“O tráfico tem causado a perda da identidade cultural, pois muitos jovens abandonam as práticas tradicionais para se envolverem com atividades criminosas. Ingressam para se tornarem integrantes dos traficantes, comercializando os produtos na aldeia. Os traficantes fornecem a droga e, os indígenas, informações aos chefes”, conta uma fonte indígena.
O narcotráfico tem se intensificando nas últimas décadas, tornando-se uma das principais ameaças às populações indígenas e ribeirinhas. São vinculados a atividades de garimpo, de desmatamento, de roubo de madeira. Essas florestas densas e porosas facilitam as rotas do tráfico de drogas, especialmente cocaína, proveniente do Peru, da Bolívia. As facções estão fazendo essa disputa do controle interterritorial.
Na região do Alto Solimões, existe um poder capaz de ditar o que pode e o que não pode ao seu redor. O Comando Vermelho, facção criminosa que se originou no Rio de Janeiro e uma das primeiras a se expandir para o Norte do País, comanda o narcotráfico transnacional. Sem se importar com a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o crime avança com sua ocupação ilegal, ameaça os povos indígenas e desintegra a maior força protetora do meio ambiente.
Na TI Umariaçu, o povo Tikuna, autodenominado Magüta, as lideranças sentem-se vulneráveis sem qualquer fiscalização para conter os invasores. Desimpedido, o tráfico compra terras indígenas a preço de banana. É uma posse sem papel, mas que existe de fato e se espraia velozmente.
O dinheiro sujo do tráfico está refazendo o mapa da Amazônia. Nas terras dos Tikuna, um loteamento ilegal surge onde antes havia castanheiras. Por R$ 2 mil – menos que o preço de um celular –, traficantes peruanos compram pedaços da floresta, enquanto religiosos corruptos promovem loteamentos irregulares, conforme apurou a Amazônia Real. Em troca, oferecem cestas básicas e promessas de proteção. É uma febre de grilagem: o verde virou commodity nas mãos do crime.
A Amazônia Real ouviu relatos de indígenas sobre a influência, o poder e a interferência na vida das populações na Região Norte. Por motivo de segurança, essas pessoas não serão identificadas nesta reportagem.

A cooptação de indígenas
A atual movimentação fundiária do crime está diretamente relacionada com o aliciamento nas aldeias. “O recrutamento de jovens indígenas para o tráfico de drogas tem crescido, agravando problemas de violência, insegurança e desestruturação social”, relata uma fonte indígena.
O ingresso de jovens no submundo do crime se dá em muitos casos de maneira forçada. Facções como o Comando Vermelho são truculentas e meticulosas. Mas algumas lideranças indígenas, aliciadas e atraídas pelos traficantes, têm facilitado o ingresso de não-indígenas no território. “Infelizmente, alguns líderes indígenas acabam sendo cooptados pelo tráfico devido à falta de alternativas econômicas e à pressão dos grupos criminosos. No entanto, a maioria da comunidade resiste a essas influências e luta pela preservação de seu território”, diz a mesma fonte.
Estar em uma região de fronteira porosa, sem fiscalização adequada, contribuiu para essa expansão do narcotráfico. O território indígena fica no meio do caminho de uma rota estratégica para o transporte de drogas e mão de obra. Para facilitar a operação, o tráfico abre pistas clandestinas ou se valem das construídas ilegalmente pelo garimpo e derrubam árvores para plantio de coca.
Nos limites do aeroporto de Tabatinga, esta é uma situação visível por todos. Alguns terrenos adquiridos para expansão urbana encontram-se a apenas 30 metros da TI Umariaçu. Na parte brasileira, ainda não há extensas áreas impactadas ambientalmente pelo narcotráfico. Mas em território peruano, próximo à fronteira, áreas controladas pelo tráfico têm mais sinais de desmatamento. O medo é que a situação mais agravante se expanda para o solo brasileiro. “O tráfico de drogas tem provocado aberturas de pistas clandestinas de pouso, além do uso indiscriminado de produtos químicos tóxicos no processamento da pasta base de coca”, afirma um indígena.
“Do lado colombiano, os moradores têm seus roçados de coca em comunidade peruana e também existem parentes do lado brasileiro que fazem esse tipo de plantação no lado peruano. Muitas vezes eles [indígenas brasileiros] convocam os jovens para prestar serviço de colheitas. Os jovens são humilhados, os donos passam aos trabalhadores um valor equivalente ao peso total da saca. Como muitos não têm esse costume, acabam não sendo pagos direito por mão de obra que eles fazem”, explica um indígena familiarizado com essa abordagem.

O narcotráfico e os crimes ambientais
Aiala Colares Couto, quilombola e doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica que entre os Estados da região amazônica, o Acre se tornou uma importante rota de cocaína que sai da Bolívia. “É isso que está fazendo com que tenha hoje a entrada de facções criminosas em territórios indígenas. Há uma necessidade de o Estado criar mecanismos estratégicos de proteção desses territórios, considerando que as reservas indígenas são áreas territoriais que têm um tamanho bastante expressivo”, diz o pesquisador, notando que a extensão territorial da Amazônia é um dos fatores de vulnerabilidade.
Em aldeias do povo Jaminawa, divisa com o Amazonas e na fronteira do estado do Acre com o Peru e a Bolívia, as lideranças estão em alerta, temendo que as facções que controlam a cidade acreana de Assis Brasil consigam se consolidar nas comunidades. “Nós, lideranças, estamos com essa preocupação de conversar com os jovens para que isso não aconteça. Enquanto lideranças de base e mais velhos, nos preocupamos e temos que estar combatendo esse problema para não nos prejudicar no futuro”, conta uma liderança Jaminawa.
“Recentemente um parente atirou em outro parente na aldeia. As facções estão na cidade e agora o problema da violência das facções criminosas chegou ao nosso território. Pode até chegar mais forte para nós”, afirma. E a aposta do narcotráfico é nessa desintegração das comunidades indígenas. Pesquisadores já alertam para esse movimento das facções, que se aproveitam da ausência do Estado para transformar florestas e rios amazônicos em rotas estratégicas para o tráfico de drogas e contrabando.
Quando há uma denúncia, há uma retaliação, e geralmente a pessoa que denuncia é assassinada. Como a gente não tem um programa de proteção que seja eficaz para proteger a vida dessas pessoas que fazem denúncia, elas se negam a falar
O CV e o PCC são como serpentes que engolem culturas e derrubam árvores. Na Amazônia, as florestas removeram 340 milhões de dióxido de carbono (CO2) da atmosfera, o equivalente às emissões anuais de combustíveis fósseis do Reino Unido, indicou uma análise do World Resources Institute. Um estudo científico da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) indicou que a taxa de desmatamento dentro das florestas indígenas onde a propriedade da terra foi assegurada é 2,8 vezes menor do que fora dessas áreas na Bolívia, 2,5 vezes menor no Brasil e 2 vezes menor na Colômbia. O último levantamento do MapBiomas mostrou que apenas 1% da vegetação perdida entre 1985 e 2023 ocorreu em terras indígenas ante os 28% em áreas privadas, o que explica por que se tornaram alvo cobiçado pelo crime organizado.
Paula**, indígena do Amazonas que atualmente faz pesquisa acadêmica sobre violência aos povos indígenas, é originária de um território atualmente com forte presença de traficantes, onde há registro de aliciamentos de jovens e conflitos internos. Ela relata que já foi ameaçada e sua família, que permanece no território, é constantemente visada.
“O narcotráfico tem se intensificando nas últimas décadas, tornando-se uma das principais ameaças às populações indígenas e ribeirinhas. São vinculados a atividades de garimpo, de desmatamento, de roubo de madeira. Essas florestas densas e porosas facilitam as rotas do tráfico de drogas, especialmente cocaína, proveniente do Peru, da Bolívia. As facções estão fazendo essa disputa do controle interterritorial.”
Segundo Paula**, o crescimento do narcotráfico ainda não é devidamente acompanhado pelas autoridades brasileiras. Ela alerta que é preciso que as autoridades mudem as suas perspectivas em seus esforços para erradicar o crime organizado e o narcotráfico, hoje concentrado nas terras onde há pouca presença do Estado, como é o caso dos territórios indígenas. “Não há preocupação do Estado brasileiro nesse assunto. Talvez ocorra quando algo de muito grave acontecer com os povos indígenas. Não existe uma ação direta. Uma aplicabilidade das leis, uma repressão. Isso deixa as comunidades à mercê do crime organizado”, diz.
A pesquisadora destaca que o tráfico já avançou tanto que os pontos de trânsito de drogas na Amazônia já não são meras vias de escoamento ou rotas. Agora existem plantios de coca em alguns dos territórios indígenas. Ela mencionou onde isto vem acontecendo, mas pediu para a reportagem não revelar o nome. “Isso está acontecendo em nosso território. Quem denuncia pode ser assassinado ou sofrer algum tipo de ameaça. De algum modo, as atividades são ligadas a uma capturação [aliciamento] dos próprios indígenas para o tráfico. Eles [indígenas] agem como guias ou intermediários dessa logística criminosa. E mesmo assim eles [traficantes] continuam invadindo nossos territórios. Eles expulsam, eles ameaçam, põem regras dessa condição e ao mesmo tempo em que o Estado se torna ausente”.
A pesquisadora ressalta que a retomada dos grandes empreendimentos na Amazônia, com construções de rodovias ou pavimentação das já existentes (como a BR-319) vai facilitar o escoamento do narcotráfico e aumentar a pressão da organização criminosa nas cidades e comunidades ribeirinhas e indígenas. “A rota do tráfico é feita a partir dos rios. Com os efeitos climáticos recentes, eles [criminosos] já não estão conseguindo fazer os escoamentos. Estão fazendo as rotas pelas estradas. Com a logística do PAC 2, vai ficar mais fácil a vida dessa gente. É tráfico internacional que está sendo implantado na Amazônia, junto com garimpo do ouro, e das invasões e extração de madeira. É tudo um organismo só”, acrescenta.

Atuação das facções
A terceira edição do estudo Cartografias da Violência na Amazônia, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (c), aponta que a expansão das facções criminosas vindas do Sudeste do país, como CV e PCC, e suas alianças ou disputas com grupos locais avança velozmente. O levantamento constatou a presença destes grupos em ao menos 260 municípios da Amazônia Legal, que inclui Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Roraima, Rondônia, Tocantins e Maranhão.
O Comando Vermelho detém o monopólio de poder em 130 municípios, vários deles localizados nas fronteiras com a Bolívia, o Peru e a Colômbia. A presença das organizações criminosas de base prisional tem uma atuação específica na Amazônia Legal, que vai além do controle de rotas estratégicas de narcotráfico. As redes criminosas decidiram expandir seus negócios e sua dominação territorial e uma forma foi adentrar nos conflitos fundiários, entre eles a grilagem de terras.
Todos os 22 municípios do Acre estão sob influência de grupos criminosos, com o CV exercendo domínio em 18 deles. Antigas facções existentes no Estado, como a Ifara, foram incorporadas a outras, dentre elas o B13 e o PCC, que são aliadas no Estado. Atualmente, quatro cidades possuem a presença de mais de uma facção: Brasiléia, Epitaciolândia, Rio Branco e Sena Madureira, em que CV compete com o B13.
O intenso processo de expansão e hegemonia do CV no Acre chegou à região do Vale do rio Juruá, onde o crime organizado amplia o escoamento de drogas trazidas do Peru. Essa dinâmica atravessa comunidades e povos da calha do rio, com práticas de comercialização semelhantes ao sistema de aviamento. Neste caso, troca-se drogas por produtos extraídos da floresta, como pescado, caça e outros animais.
Além da região do Vale do rio Juruá, que permite acesso fluvial até o rio Solimões e à cidade de Manaus, no Amazonas, o CV buscava expandir sua influência para o Peru, mirando no controle das zonas produtoras da cocaína em Pucallpa, Ucayali, Madre de Dios e no chamado Vraem (Vale dos rios Apurímac, Ene e Mantaro).
Informações do final de 2023 indicam que membros do CV foram expulsos por grupos criminosos peruanos, mas há evidências de que a facção conseguiu estabelecer domínio sobre o cultivo de coca em Ucayali, uma região majoritariamente habitada por indígenas e que, desde 2019, registra um expressivo crescimento na área plantada. O grupo se instala nas aldeias, impõe seu poder sobre a comunidade e, além do plantio da coca, já produz a pasta base da cocaína dentro do território indígena.
Desafios e negligência do Estado
A historiadora indígena Soleane Manchineri, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Acre, observa que denúncias de territórios em Sena Madureira e Assis Brasil foram feitas por lideranças, mas que há negligência e impotência do Estado para atender às necessidades das comunidades. “Se tem uma denúncia, é necessário investigar. A gente não tem policiais dentro dos territórios indígenas e, quando a gente faz algum tipo de solicitação, não pode porque não é competência da Polícia Militar nem da Polícia Civil”, ressalta.
A ouvidora reforça a importância de voltar a ser discutido dentro do movimento indígena, a questão da presença de facções criminosas nos territórios, mas que as comunidades precisam ser respaldadas pela Secretaria de Segurança Pública, pelo Governo do Estado e pela Defensoria Pública, para que as lideranças não sejam ameaçadas por conta dessas denúncias. “Quando há uma denúncia, há uma retaliação, e geralmente a pessoa que denuncia é assassinada. Como a gente não tem um programa de proteção que seja eficaz para proteger a vida dessas pessoas que fazem denúncia, elas se negam a falar”, conta Soleane.
A grilagem financia a extração ilegal de ouro, que financia o tráfico de droga e armas. E estas atividades financiam a grilagem. Tem um sistema financeiro que está sendo construído para que um apoie o outro
O PCC tem financiado o garimpo ilegal e a lavagem de recursos advindos do ouro. A logística do garimpo na TI Yanomami, que depende de aviões e helicópteros para transporte de insumos, garimpeiros e ouro, é outro fator que gera uma natural proximidade com o narcotráfico. Em novembro de 2024, a Polícia Federal encerrou um inquérito que apontou a existência de crime organizado na região de Atalaia do Norte, alvo constante de invasões, pesca e caça predatórias
Há alguns anos as comunidades indígenas denunciam a presença crescente de facções criminosas em seus territórios, mas pouco foi feito pelo poder público estadual e federal para conter essa ameaça. No Acre, em 2019, os povos Huni Kuin (chamados também de Kaxinawá) denunciaram à Polícia Civil e à Funai que jovens da etnia, de 13 a 18 anos, eram aliciados pelo tráfico de drogas realizado por organizações como Comando Vermelho e Bonde dos 13, uma facção local. As aldeias ficam na Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, no município de Feijó, na fronteira do Acre com o sul do Peru.
Na época, a agência Amazônia Real procurou a polícia, mas a instituição disse ter dificuldade de investigar o caso devido ao deslocamento pela via fluvial, porque faltavam embarcações e combustível. Em 2021, a agência publicou em primeira mão que uma equipe de agentes da Polícia Federal foi recebida a bala no rio Uraricoera, um dia após garimpeiros integrantes do PCC atacarem também a tiros indígenas Yanomami. Informes recentes recebidos pela reportagem revelaram como está sendo tensa a relação de traficantes ligados à facção criminosa de São Paulo dentro dos garimpos de extração ilegal de ouro na TI Yanomami, em Roraima.
Rios de cocaína
O estudo “Landing on Water: Air Interdiction, Drug-Trafficking Displacement, and Violence in the Brazilian Amazon” (Aterrizando na Água: Interdição Aérea, Tráfico de Drogas e Violência na Amazônia Brasileira) identificou os rios Abuna, Acre, Amazonas, Caquetá, Envira, Içá, Japurá, Javari, Juruá, Madeira, Mamoré, Negro, Purus, Tarauacá, Uaupés e Xiê, como rotas do tráfico de drogas entre Brasil, Bolívia, Colômbia e Peru.
A cada quatro mortes na região, uma teve o dedo do tráfico, entre 2005 e 2020, em 67 cidades da região oeste da Amazônia, banhadas pelos “rios de cocaína”. São cidades com menos de 100 mil habitantes, como Eireunepé, no Amazonas, e Cruzeiro do Sul, no Acre, que estão afastadas dos grandes centros urbanos e das principais rotas rodoviárias, o que torna menos provável que as mortes estejam ligadas a disputas por terra ou desmatamento ilegal.
A Amazônia está sendo capturada por um crime organizado, abastecido e bem estruturado. Isso está nos relatórios da PF, de instituições mais especializadas. Somos uma instituição científica com muita ação no campo e a gente vem escutando relatos crescentes dos dados que mostram esse crescente de ilicitude na região
De acordo com o estudo desenvolvido por pesquisadores do Insper e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e publicado pelo Institute of Labor Economics da Alemanha, a violência nessas cidades está ligada à intensificação do uso de embarcações no transporte de entorpecentes após 2004. Naquele ano, o governo federal implementou a Lei do Abate, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que permitiu à Força Aérea Brasileira abater aeronaves suspeitas de transportar drogas.
A política que derruba aviões de traficantes tornou o transporte de cocaína por aviões mais arriscado e caro. Porém, a migração para os rios amazônicos expôs as comunidades ribeirinhas ao avanço do crime organizado e da violência.
Um indígena de Rondônia expressa sua preocupação com o quadro atual em sua terra: “Procuramos a Funai e até agora não me responderam. A situação está complicada. Eles (os traficantes) ameaçam os professores e alunos. Escrevem o nome da facção nas portas das casas. Nós nunca fizemos nada, é muito difícil. As mulheres e crianças têm medo de tomar banho no rio porque estão vendo homens encapuzados rondando”, relata.

Comunidades desamparadas
Na TI Tukuna Umariaçu, aqueles que resistem buscam formas de denúncia às autoridades e fortalecimento das lideranças. Porém, segundo os entrevistados, não há providências urgentes por parte da Funai e do governo federal. “As ações do poder público têm sido insuficientes. As comunidades indígenas continuam desamparadas, sem apoio real para enfrentar o problema,” afirma um indígena Tikuna.
Se nas cidades o tráfico se manifesta em tiroteios, nas florestas ele assume outra face: o silêncio imposto às comunidades indígenas. “A presença do poder público é frágil e, em muitos casos, ineficaz. Há relatos de corrupção envolvendo agentes de segurança e representantes políticos locais,” comenta o entrevistado da Amazônia Real.
Como agravante, a fonte denuncia o envolvimento de políticos antindígenas. “Alguns políticos da região têm se aproximado de lideranças locais oferecendo vantagens pessoais em troca de apoio para seus projetos. Isso gera divisões dentro da própria comunidade,” diz.
Para a fonte, há uma pressão para que os territórios sejam cedidos para interesses maiores que atuam sob a região. “Muitos desses políticos visam, a longo prazo, enfraquecer a autonomia indígena sobre suas terras, tornando-as áreas abertas para exploração econômica, principalmente para o agronegócio e a expansão urbana descontrolada”, conclui.

Crimes organizados e interlaçados
Referência em estudos sobre desmatamento, clima e impactos de ilícitos ambientais na Amazônia, o pesquisador Paulo Moutinho ressalta que o crime organizado se fortaleceu nos últimos dez anos na Amazônia, intensificando vínculos com crimes ambientais e contribuindo para a degradação florestal. Muitos desses crimes organizados têm origem no tráfico de drogas, em grande escala e estruturas organizadas.
“A grilagem financia a extração ilegal de ouro, que financia o tráfico de droga e armas. E estas atividades financiam a grilagem. Tem um sistema financeiro que está sendo construído para que um apoie o outro”, diz Paulo Moutinho, cofundador e membro do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam).
Ele afirma que o tráfico de drogas e armas pressiona a floresta, contribuindo com extração ilegal de madeira, exploração ilegal de ouro, abertura de estradas e pistas de pouso clandestinas. Cada pista de aviões aberta pelo CV equivale a 10 campos de futebol de floresta morta. “A Amazônia está sendo capturada por um crime organizado, abastecido e bem estruturado. Isso está nos relatórios da PF, de instituições mais especializadas. Somos uma instituição científica com muita ação no campo e a gente vem escutando relatos crescentes dos dados que mostram esse crescente de ilicitude na região”, relata.
Moutinho destaca que 50% do desmatamento na Amazônia ocorre em terras públicas. Destas, 30% são em áreas públicas ainda não destinadas. “Essa grilagem gera recursos. Quem financia a grilagem? A grilagem é cara na Amazônia. Se você derrubar um hectare de floresta, você gasta entre 2 mil a 3 mil reais por hectare. Não é o pequeno produtor, o indígena, o extrativista, que tem esse recurso para fazer esse desmatamento. É aí que entram outros pilares do crime organizado”, diz o pesquisador.
“A Amazônia começa a ficar refém de um crime que vem se instalando nos últimos anos. E que precisa ter uma atuação firme dos Estados e da federação. Caso contrário você vai começar a ter áreas da Amazônia onde o Estado não tem condições de coordenar qualquer coisa”, alerta. Em outras palavras, a única saída é combater a rede do crime organizado, mas em ações de grande escala e prolongadas. Do contrário, o assalto à floresta pode se tornar irreversível.
O que não dizem as autoridades
A Amazônia Real procurou repetidas vezes a Funai para saber que medidas e programas têm desenvolvido contra o aumento de facções e tráfico de drogas nas terras indígenas, mas o órgão indigenista não respondeu.
A agência solicitou entrevistas com delegados da Polícia Federal e pediu informações sobre ações de combate e investigações sobre o tema desta reportagem, mas não foi atendida.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também não atendeu aos pedidos de entrevistas com seus coordenadores.
*Wérica Lima é formada em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Nilton Lins e estudante de Ciências Biológicas no Instituto Federal do Amazonas (IFAM); Nicoly Ambrosio é jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente residente na cidade de Manaus; e Elaíze Farias é cofundadora e editora de conteúdo da Amazônia Real
**Nome fictício para garantir a segurança da entrevistada
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