ODS 1
Indígenas no Governo Lula: mais homicídios, mais suicídios e aumento da mortalidade infantil
Relatório do Cimi indica que, apesar de pequena queda no número de conflitos territoriais e invasões, a violência contra indígenas segue crescendo
Apesar de registrar pequena redução do número de conflitos territoriais e de invasões e exploração de recursos, os indígenas continuaram sendo alvos de violência no primeiro ano do novo Governo Lula. O número de assassinatos de indígenas no ano passado chegou a 208, de acordo com o relatório ‘Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023’, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – um aumento de 15,5% em relação aos 180 homicídios em 2022, último ano do Governo Bolsonaro. “O primeiro ano do novo governo federal foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes”, destaca a publicação anual do Cimi, lançada nesta segunda-feira (22/07), na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Leu essa? Governo Bolsonaro teve 795 assassinatos de indígenas; aumento de 54%
No total, no capítulo de Violência contra a Pessoa, o relatório do Cimi apontou 404 ocorrências, número um pouco menor que as 416 de 2022: foram registrados, em 2023, casos de abuso de poder (15); ameaça de morte (17); ameaças várias (40); homicídio culposo (17); lesões corporais (18); racismo e discriminação étnico-cultural (38); tentativa de assassinato (35); e violência sexual (23), além dos casos de assassinato (208). O documento de 253 páginas também indicou a ocorrência de 180 suicídios de indígenas em 2023, significativo aumento de 56% em relação aos 115 registrados em 2022.
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Veja o que já enviamosO relatório destaca que o ano de 2023 começou com grandes expectativas em relação à política indigenista do Governo Lula, após quatro anos de uma gestão abertamente anti-indígena e que anunciou – e cumpriu – que não demarcaria “um centímetro de terras indígenas” durante o mandato. “A criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a nomeação de lideranças indígenas para a chefia da nova pasta, da Funai – renomeada como Fundação Nacional dos Povos Indígenas – e da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) complementaram o ambiente de esperanças renovadas”, ressalta o relatório.
A publicação do Cimi, entretanto, destaca a frustração das expectativas. “Sem demora, contudo, a realidade política se impôs. O Congresso Nacional atuou para esvaziar o MPI e atacar os direitos indígenas especialmente por meio da aprovação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, transformado, no final do ano, na Lei 14.701/2023”, para restabelecer a tese do marco temporal, considerada inconstitucional pelo STF. “O ambiente institucional de ataque aos direitos indígenas foi espelhado, nas diversas regiões do país, pela continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e pela manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade na infância entre estes povos”, frisa o relatório.
No lançamento em Brasília, o cardeal Leonardo Ulrich Steiner, presidente do Cimi e arcebispo de Manaus, criticou o Legislativo. “O Congresso Nacional perdeu o horizonte da ética, perdeu a moral. Querem impor aos povos indígenas leis que não condizem com a justiça. A verdadeira justiça não condiz com as leis aprovadas pelo Congresso”, afirmou o presidente do Cimi, acrescentando que, além das autoridades do Executivo, do Judiciário e do Legislativo, vai levar o relatório também ao Papa Francisco. “Esse lançamento vem no momento de acirramento da violência contra os povos indígenas. acirramento da violência com a nova lei aprovada pelo Congresso e com o impasse da STF”, acrescentou o secretário-geral do Cimi, Luís Ventura.
Coordenadora do trabalho, a antropóloga Lucia Helena Rangel destacou os principais pontos do relatório. “Temos uma situação muito delicada porque a violência contra os povos indígenas só aumenta, nunca diminui. Antes, tínhamos um governo federal contra indígenas, incitando invasão de terras e violência. Hoje temos um governo que não faz isso. Mas tem um Congresso que faz isso. A cada lei contra os povos indígenas e seus dirigentes, a violência aumenta nos territórios”, afirmou.
Violência contra a Pessoa
De acordo com dados do do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, e de informações obtidas junto à Sesai via Lei de Acesso à Informação (LAI), foram assassinados 208 indígenas – 179 homens e 29 mulheres. Os estados com maior número de homicídios, repetindo anos anteriores, foram Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36). Chamam a atenção as ocorrências de assassinato nos estados do Rio Grande do Sul – 16, um recorde – e no Maranhão – 10, repetindo as marcas de anos particularmente violentos como 2019 e 2021.
O relatório destaca que, em Mato Grosso do Sul, forças policiais são acusadas de atuarem como escoltas privadas de fazendeiros, compartilhando informações e dando suporte a ataques de seguranças privados contra comunidades Guarani e Kaiowá. Além de despejos ilegais e ataques violentos contra acampamentos indígenas, também foram registradas prisões arbitrárias de indígenas na região.
Há duas semanas, pelo menos dois indígenas foram baleados no Mato Grosso do Sul quando os Guarani-Kaiowá foram alvos de tiros de fazendeiros nos municípios de Douradina e Caarapó. Neste sábado (20/01), homens armados desembarcaram na região de Douradina, perto da Terra Indígena Lagoa Rica Panambi. No mesmo dia, duas retomadas na Terra Indígena (TI) Dourados Amambai Peguá I, em Caarapó, passaram a ser sobrevoadas por drones e cercadas por caminhonetes. Também no fim de semana, o povo Kaingang voltou a ser atacado nas proximidades de Pontão, no Rio Grande do Sul: homens encapuzados desceram de veículos e atiraram contra os indígenas e incendiaram uma maloca.
De acordo com o documento do Cimi, milícias privadas são investigadas pelo assassinato a tiros dos jovens Pataxó Samuel Cristiano do Amor Divino, de 23 anos, e Nauí Pataxó, de 16, no extremo sul da Bahia. Eles viviam numa retomada da TI Barra Velha do Monte Pascoal e foram executados quando saíram para comprar alimentos nas proximidades, em janeiro de 2023. “O povo Pataxó luta há anos pela demarcação de suas terras nesta região. Os conflitos seguiram sem resolução ao longo de 2023 devido à falta de avanço nos procedimentos demarcatórios e motivaram medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)”, ressalta o relatório.
O Cimi lembra ainda que, apesar das operações no primeiro semestre do ano na TI Yanomami, os indígenas da etnia continuaram sob ataques de garimpeiros em Roraima e no Amazonas ao longo de 2023, “Assassinatos, ações armadas, violências sexuais e aliciamento de indígenas para o garimpo, com fomento de conflitos internos, integraram o trágico quadro da continuidade das violências neste território”, ressalta o relatório, que também lembra assassinatos de indígenas do povo Guajajara no Maranhão e os os casos de violência armada contra indígenas dos povos Tembé e Turiwara, no nordeste do Pará, em conflito com grandes empresas ligadas à monocultura e à produção de óleo de dendê.
Terras ameaçadas
No capítulo ‘Violência contra o Patrimônio’, o levantamento do Cimi apontou uma pequena redução no número de conflitos territoriais: foram 150 em 2023 em comparação com os 158 de 2022. No caso de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, registrou-se queda um pouco maior: de 309 casos em 2022 para 276, 10,7% de diminuição. Se por um lado os dados refletem a retomada das operações de fiscalização ambiental, por outro, a maior parte dos relatos indica a continuidade das ações de invasores, a desestruturação dos órgãos responsáveis por estas tarefas e a falta de uma política permanente de proteção aos territórios indígenas”, aponta o relatório do Cimi.
O documento destaca ainda que foram priorizadas operações de retirada de invasores apenas “num pequeno conjunto de territórios, em especial das sete TIs contempladas pelas decisões do STF no âmbito da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709”. Mesmo nestes casos, contudo, os dados e relatos indicam que as ações não deram conta de garantir a retirada completa dos invasores.
De acordo com a atualização da base de dados do Cimi em 2023, do total de 1.381 terras e demandas territoriais indígenas existentes no Brasil, a maioria (62%) segue com pendências administrativas para sua regularização: são 850 terras indígenas com pendências, atualmente, e em 563 ainda não houve qualquer providência do Estado para a demarcação. O relatório aponta que a constituição ou reestruturação de Grupos Técnicos (GTs) para a identificação e delimitação de terras indígenas, sob responsabilidade da Funai, é um indicativo da disposição do órgão em dar andamento à primeira etapa na regularização de demandas territoriais represadas. “Contudo, os trabalhos avançam a passos lentos: apenas três relatórios de identificação e delimitação foram concluídos e publicados pela Funai em 2023”, frisa o texto.
Para o Cimi, a indefinição sobre o marco temporal torna impossível uma previsão sobre o cumprimento dos prazos estabelecidos nas portarias da Funai e o governo federal está utilizando a aprovação da Lei 14.701/2023 (a lei do marco temporal, contestada no STF) como justificativa para não avançar nos procedimentos demarcatórios. “A morosidade e a ausência de uma sinalização clara do governo federal em defesa dos territórios indígenas tiveram influência direta no alto número de conflitos registrados”, critica o relatório. “Oito terras indígenas foram homologadas no primeiro ano do novo governo, um número aquém das expectativas, mesmo sendo maior que o dos últimos anos. Os parcos avanços nas demarcações refletiram-se na intensificação de conflitos, com diversos casos de intimidações, ameaças e ataques violentos contra indígenas, especialmente em estados como Bahia, Mato Grosso do Sul e Paraná”, acrescenta o texto.
Representantes de povos indígenas desses estados estiveram presentes ao lançamento do relatório. “Nós fizemos a retomada do nosso território porque o governo não faz a demarcação das nossas terras. Se as autoridades não tomarem providências, vão assistir a um massacre. Porque os indígenas vão resistir”, disse Vilma Vera, liderança Avá-Guarani do tekoha Y’Hovy, na TI Tekoha Guasu Guavirá, no oeste do Paraná. “A justiça brasileira ignora os direitos indígenas; só reconhece os direitos dos proprietários. Viemos pedir socorro: parem de nos matar, de nos julgar, de nos chamar de invasores. Para fazendeiros e ruralistas, vidas dos indígenas não valem um centavo”, acrescentou.
Sobrevivente de um ataque de pistoleiros, Nailton Muniz, Pataxó Hã-Hã-Hãe, cacique na Terra Indígena (TI) Caramuru – Catarina Paraguassu, no sudoeste da Bahia, disse que os indígenas precisam se reunir. “Os fazendeiros estão unidos para nos destruir. O mundo da justiça está contra nós. Há uma campanha contra o nosso povo, uma campanha de extermínio. Nós precisamos estar juntos nessa luta. A violência contra os indígenas está cada vez maior”, afirmou o cacique. “É com autodemarcação que nós vamos resolver”, acrescentou.
Saúde ameaçada
Segundo os dados levantados junto ao SIM e obtidos junto à Sesai, foram registradas 1040 mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos de idade em 2023 – aumento de 24,5% em relação às 835 mortes de 2023. Também neste caso, os mesmos estados dos anos anteriores registraram o maior número de ocorrências: Amazonas (295 mortes nessa faixa etária), Roraima (179 casos), e Mato Grosso, (124). O relatório ressalta que a maior parte dos óbitos infantis teve “causas consideradas evitáveis por meio de ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequado”: as principais causas de mortes foram gripe e pneumonia (141), diarreia, gastroenterite e doenças infecciosas intestinais (88) e desnutrição (57).
Os dados sobre mortalidade infantil fazem parte do capítulo ‘Violência por Omissão do Poder Público’ que registra ainda casos de desassistência geral (66 casos); desassistência na área de educação (61); desassistência na área de saúde (100); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (6); e morte por desassistência à saúde (111). “Destacam-se, neste contexto, a falta generalizada de infraestrutura escolar em aldeias de todo o país e de infraestrutura, pessoal e transporte para o atendimento à saúde nas comunidades indígenas. A falta de saneamento básico e de água potável foram agravadas pela crise climática, que provocou enchentes pelo país e severa estiagem na região amazônica, aprofundando a vulnerabilidade de diversas comunidades”, aponta o relatório.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade