São os robôs, estúpido!

O ex-funcionário da Yacows Hans River do Rio Nascimento depõe na CPMI das Fake News. Foto Jane de Araújo/Agência Senado

Ataques contra a jornalista Patrícia Campos Mello mostram, mais uma vez, como as mulheres são o alvo preferencial da trollagem da direita

Por Carla Rodrigues | ODS 16 • Publicada em 2 de fevereiro de 2020 - 20:10 • Atualizada em 12 de março de 2020 - 10:57

O ex-funcionário da Yacows Hans River do Rio Nascimento depõe na CPMI das Fake News. Foto Jane de Araújo/Agência Senado

Esta não é a primeira vez, e infelizmente não será a última, que grupos de extrema-direita alternativa – a chamada alt-right, um trocadilho infame com “all right” – se valem de estratégias de difamação, virulência, sexismo e misoginia contra uma mulher que ocupa um cargo público. Os recentes ataques contra a jornalista Patrícia Campos Mello – repórter da Folha de S. Paulo que durante as eleições, ano passado, denunciou o esquema de disparos em massa de fake news – são tão infames como outras peças de baixo calão distribuídas pelos apoiadores de  Jair  Bolsonaro desde a disputa eleitoral. A ação contra  Patrícia segue à risca o manual estratégico da alt-right, muito bem explicado em artigo recente do filósofo Rodrigo Nunes.

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Em seguida às afirmações difamatórias de um ex-funcionário da Yacows Hans River do Rio Nascimento – cujo teor não repito aqui para não incorrer no equívoco de, mesmo ao fazer uma crítica, reproduzir seus insultos – na CPMI das Fake News,  acontece o disparo em massa de inúmeras imagens que expõem Patrícia ao ridículo. Reportagem do Intercept mostra que grande parte dos grupos que distribuíram essas imagens foram criados pelos filhos do presidente da República, Carlos e Eduardo Bolsonaro. A ombusman da Folha de S. Paulo, Flavia Lima, em seu artigo de domingo, trouxe dados exclusivos da consultoria Bites mostrando que, no campo governista, sete deputados produziram 60 posts de ataque a Patrícia. Das 60 publicações, 23 partiram da conta de Eduardo Bolsonaro que, sozinho, conseguiu 50% das 759.422 interações contrárias à jornalista.

Essa estratégia de trollagem está sustentada em pelo menos quatro linhas de ação. A primeira, ganhar visibilidade na grande imprensa para algum tipo de ofensa muito grave, aberrante, que tenha repercussão imediata no noticiário. Foi o que fez Hans River ao ofender e difamar Patrícia em seu depoimento na CPMI, com  imediata veiculação na imprensa.  Produz-se um escândalo que servirá de ponto de partida para as duas próximas linhas de ação: a distribuição de memes ofensivos, todos marcados por um tipo de humor grosseiro que conquista rápida adesão; e a ação de robôs que farão a distribuição massiva desse material. O que foi notícia torna-se conteúdo para a trollagem, que busca obter reações fortes contra seu alvo e tem como principal objetivo expor o inimigo ao ridículo.

A jornalista Patrícia Campos Mello, alvo de agressões covardes. Foto Xinhua/LI Xin/AFP

Mas é preciso ainda  um quarto fator para que o esquema aberração + manchete + trollagem funcione. Esse elemento é a fraqueza institucional para lidar com esse tipo de violência. Primeiro, porque é difícil caracterizá-la, rastreá-la. Esse é exatamente um dos grandes méritos da reportagem de Patrícia: identificar o esquema de ataques em massa, dos quais agora ela também está sendo alvo.  Além disso, o recurso à institucionalidade é fraco diante da força dos robôs e da fácil adesão popular ao tipo de peças que são distribuídas, muitas carregadas de uma suposta ambiguidade entre humor e violência. O primeiro a se manifestar contra os insultos a Patrícia foi o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que publicou no Twitter uma nota de repúdio à atitude Hans River: “Dar falso testemunho numa comissão do Congresso é crime. Atacar a imprensa com acusações falsas de caráter sexual é baixaria com características de difamação. Falso testemunho, difamação e sexismo têm de ser punidos no rigor da lei.”

Haveria muito a dizer sobre a reação de Maia, mas vou me limitar aqui a indicar o ocultamento de que se trata não apenas de um ataque genérico à imprensa, mas de uma calúnia contra uma mulher, prática recorrente nas hostes bolsonaristas, e o vazio da expressão “rigor da lei” a que Maia se refere. Mesmo que venha a funcionar a favor de Patrícia, contra Hans River, jamais apagará da internet todas as imagens torpes que estão sendo distribuídas pelos robôs.  Interessa destacar, ainda, que mesmo a reação de Maia também vem sendo consumida pelas trollagens, inclusive com a replicação de imagens difamatórias contra Patrícia e com acusações de que ele apoia uma jornalista cujo objetivo seria derrubar o presidente da República.

Mulheres jornalistas reagiram aos insultos com a publicação de um manifesto em solidariedade à Patrícia, assim como a Folha de S. Paulo e a Abraji se manifestaram. Todas as reações de solidariedade, tão louváveis quanto necessárias, esbarram em pelo menos dois obstáculos. O primeiro: para repudiar as acusações feitas contra ela, as notas tornam-se mais um instrumento de divulgá-las, repeti-las, reproduzi-las. O segundo problema é o fato de que, sem robôs, os posicionamentos institucionais terão disseminação restrita e pouca efetividade no enfrentamento da trollagem.

Apesar de todas essas dificuldades, grupos de mulheres, feministas organizadas, instituições de defesas de direitos humanos, enfim, todas e todos que estão sendo direta ou indiretamente atacadas e atacados pelas trollagens bolsonaristas sabem que não é possível ficar indiferente às inúmeras formas de violência a que estamos sendo submetidas. Não sabemos, ainda, como agir sem sermos devoradas pelas nossas próprias ações, pelo menos por um motivo: estamos cometendo pelo menos um grande erro ao jogar na defensiva ou apelar para nossa superioridade moral.

Os robôs

No final dos anos 1970, quando o país começou o longo processo de redemocratização depois da ditadura civil-militar instaurada em 1964, os movimentos sociais e políticos que haviam sido calados e perseguidos durante o período de repressão voltaram a se organizar. Um dos momentos de impulso para essa organização foi a Assembleia Nacional Constituinte, durante a qual grupos de mulheres, indígenas, população negra, trabalhadores da área de saúde e educação se fizeram presentes a fim de reconquistar ou ampliar direitos. Era uma aposta na institucionalidade e na democracia, que se valeu do que vou chamar aqui de “tecnologia de mobilização social”: a combinação entre lobby parlamentar, manifestação nas ruas, ocupação de espaço na grande imprensa, fosse com artigos de opinião, fossem com entrevistas ou mesmo atos que provocassem repercussão na mídia.

Vieram os 1990 e a internet chegou ao Brasil como uma promessa de democratização da informação. Foi usada para mobilização de atividades da Conferência Rio-92 e, dali em diante, teve grande importância na comunicação horizontal e global entre os movimentos sociais organizados. Nós, feministas, por exemplo, estivemos atuantes em conferências internacionais como Cairo-95 e Beijing-95, para citar apenas as mais importantes, nos valendo de uma rede ainda incipiente, mas que se prometia inovadora. Naquele momento, a rede carregava uma aposta na democratização e na formação de comunidades, uma das origens de sua concepção. O sociólogo espanhol Manuel Castells, por exemplo, foi um dos primeiros a perceber que a criação da internet é resultado da convergência de diferentes interesses, que incluem, além da conhecida importância do Departamento de Estado Americano e do massivo investimento de capital, as bases de pesquisas universitárias que apostaram na formação de comunidades virtuais e contribuíram para uma configuração livre da rede.

Mas justo por se propor a ser um ambiente de liberdade, aos poucos, o campo da direita já havia se apropriado dessas ferramentas de “tecnologia de mobilização social”: foram feitos investimentos em treinamento de comunicação, qualificação de quadros para atuação na grande imprensa, lobby parlamentar associado à estratégias de ocupação de rua e também nas redes de comunicação. Em escalas maiores, canais de rádio e TV ligados a grupos religiosos se expandiram no país, criando ambientes de circulação de informação e de enfrentamento da chamada “guerra cultural”.  A disputa pelo campo discursivo, embora nunca tenha sido equilibrada, era, no entanto, uma briga entre seres humanos, mesmo que, à direita, com mais capacidade de investimento.

Até que, 15 anos atrás, plataformas como Facebook (2004) e Twitter (2006) começaram a criar ambientes de interação fechados a seus usuários e geridos por algoritmos. Nasce o que especialistas estão chamando de governamentalidade algorítmica, assim descrita pelo pesquisador Edson Teles (Unifesp): “Define-se a autonomia das máquinas por sua capacidade de autoconhecimento, pela dinâmica de ajuste próprio diante do imprevisto, otimização com autoprevenção, reparação do mau funcionamento e capacidade de adaptação ao ambiente e seus processos.”

A  autonomia das máquinas abriu espaço para a ação dos robôs que, neste momento, por exemplo, estão espalhando imagens difamatórias da jornalista Patrícia Campos Mello. Enquanto a alt right avança nas trollagens virtuais, o que nomeei de  “tecnologias de mobilização social” fracassam em responder, em parte porque ainda atuam com métodos que ou dependem da ação de seres humanos ou de instituições que são, elas também, alvo do escárnio da alt-right e estão impotentes diante do amplo alcance difamatório dos robôs. O ataque contra Patrícia tem ainda uma particularidade: vem se somar aos inúmeros outros modos de aniquilar a imprensa, como Agostinho Vieira tão bem descreve aqui. Embora sob fogo cerrado por parte do presidente e de seus filhos, a imprensa também é parte, voluntária ou não, do esquema de trollagem que estou tentando descrever, na medida em que muitas vezes a trollagem só funciona se for para repercutir algo que virou manchete no noticiário. “O jogo não depende apenas da soberania que o troll tem sobre o próprio discurso, sua capacidade de operar numa zona de indistinção entre seriedade e brincadeira. Ele também depende de uma classe política, imprensa, operadores do mercado etc, dispostos a permitir ou mesmo incentivar que os agitadores sigam jogando”, descreve Rodrigo Nunes, indicando o tamanho da dificuldade de interromper o processo.

O deputado Eduardo Bolsonaro na CPMI das Fake News. Ele foi um dos responsáveis por espalhar notícias falsas no plenário e nas redes sociais. Foto Jane Araújo/Agência Senado

Mulheres e feministas como alvo

Nesse sentido, posso argumentar que dois tipos de ataque são os mais bem sucedidos: a jornalistas, porque a grande imprensa tratará de se defender e, com isso, fomentar a cadeia alimentar da  trollagem (a postagem resposta de Patrícia em seu twitter, por exemplo); e a trollagem contra grupos muito bem organizados. É neste ponto que as feministas podem ser um alvo tão interessante ao bolsonarismo. Pesquisas realizadas por Pablo Ortellado (USP/Monitor do Debate Político no Meio Digital) durante as eleições de 2018 mostraram que o anti-feminismo era um dos argumentos mais disseminados nos sites de apoio a Bolsonaro. Nas entrevistas feitas nas manifestações de rua, o mesmo perfil se confirmou: as feministas foram muitas vezes identificadas, mais do que o petismo, o grande inimigo a ser combatido, porque a nós são atribuídas todas as transformações culturais que ameaçam a ordem, a família e a moral.

No mesmo 11 de fevereiro em que Hans River usou seu depoimento na CPMI das Fake News para difamar Patrícia Campos Mello, a jovem senadora do PSL por Mato Grosso,  perguntou ao Ministro da Educação, no Senado Federal,  se a  implementação do modelo de disciplina das escolas cívico-militares poderia ser aplicado às universidades para coibir atos culturais e de protestos nas universidades. Para justificar o recurso a uma lógica disciplinar extrema,  afirmou que havia visto fotos de “ mulheres seminuas com axilas peludas nos banheiros de universidades”. Durante a campanha eleitoral, essas imagens foram usadas para desacreditar movimentos feministas e caracterizar universidades públicas como lugar de baderna.

O discurso traz de volta à cena política digital e presencial os discurso e imagens das feministas sujas, cabeludas, diabólicas que passou a circular ad  nauseam  na internet e circuitos dark social nas  eleições presidenciais, à medida que o #EleNão ganhava intensidade e escala até culminar nos atos públicos de 29 de setembro de 2018.  Na ocasião,  Isabel Kalil  considerou  esse ataques virtuais como um dos fatores que explicaria o expressivo crescimento de 21% para 27% no apoio das mulheres a JMB registrado  pelo Datafolha em outubro de 2018.

Na percepção da pesquisadora Sonia Corrêa, os dois episódios do dia 11 de fevereiro, quando lidos em conjunto,  sugerem que está sendo reativado a misoginia extrema e antifeminismo radical que alimentou o crescimento da candidatura de JMB, constituindo um dos elementos que explica sua vitória. Essa ressurgência, incluindo o recurso à agressão digital,  trollagem e robôs, contrasta com a tônica discursiva adotada pelas autoridades governamentais em relação às mulheres ao longo de 2019. Sua melhor ilustração, lembra ela, são as falas da Ministra Damares Alves, que abomina gênero desde sempre, mas já declarou ser a “mulher mais empoderada do Brasil”  e fez acenos aos feminismos  em torno às pautas de violência “contra as mulheres” (não de gênero”), creches e conciliação entre trabalho e família. “A pergunta que não quer calar, portanto, é: o que mais se anuncia nesse recrudescimento da masculinidade tóxica e do antifeminismo extremo na condições atuais da conjuntura nacional?”, diz Sonia.  Há quase dois anos, em março de 2018, a execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) sinalizava que o abismo viria. De lá para cá, o assassinato que implicou a família Bolsonaro segue impune e a violência contra as mulheres não encontra limites. Patrícia Campos Mello é, para nossa indignação, só mais uma da série.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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