No estado da COP30, defensores de direitos ambientais e territoriais vivem sob ameaça

No estado da COP30, defensores de direitos ambientais e territoriais vivem sob ameaça

Por Igor Soares ODS 16

Pará figura como o estado onde são cometidas mais violências contra ativistas, segundo relatório Na Linha de Frente

Publicada em 15 de setembro de 2025 - 09:43 • Atualizada em 15 de setembro de 2025 - 10:17

“A nossa ameaça aqui é bem diferente, porque a gente precisa lidar com essas pessoas diariamente. Encontramos essas pessoas em alguns espaços, te encaram. Tem parlamentar que é do agro que faz intimidação na cara dura contigo e manda recado, vão atrás de ti. Aí diz assim: ‘você não vai nos atender, podemos te mandar o grandão aí, que a conversa é mais embaixo’ [sem saber a quem o intimidador se referia]. A gente liga o GPS, compartilha com parente e sai. Eu tenho muito medo porque nos encontramos com os fazendeiros. Eles vão atrás da gente, me procuram, querem falar comigo. A gente não se reúne só. Tem horas que me bate medo, mas depois me bate uma coragem”, conta Miriane Coelho, presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém. Ela é quilombola do território Maria Valentina, no quilombo de Nova Vista do Ituqui.

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O relato da ativista ambiental e territorial do Pará é um retrato dos dados do relatório Na Linha de Frente, das instituições Terra de Direitos e Justiça Global: o levantamento aponta que o estado sede da COP 30 é o que mais registra crimes contra defensores de direitos humanos, ambientais e territoriais do país. Os povos quilombolas e suas lideranças estão entre os ameaçados, enfrentando conflitos como a luta pela regularização fundiária. “O nosso maior desafio é garantir o nosso direito à terra. Há 20 anos que estamos nesse enfrentamento de o governo federal dar as nossas terras, titular as nossas terras. Estamos brigando e fazendo frente ao Incra” [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], conta a ativista quilombola.

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Miriane Coelho acredita que a falta de titulação e demarcação das terras pode contribuir para o aumento da violência contra defensores quilombolas e indígenas. “Só de o governo passar 19 anos para titular uma terra e a falta desse encaminhamento já são uma violência muito séria. Dentro dos nossos territórios existem fazendeiros, que são destruidores, fazem desmatamento”.

Para nós, todo dia é um recomeço de vida. Para a gente que recebe ameaças de morte, é mais um dia de luta, de resistência. Somos nós que guardamos a floresta, mantemos o planeta vivo. Somos os guardiões da floresta

Darlan Neres
Ativista ambiental e territorial e estudante universitário

Em ano de COP30, a segurança dos defensores é essencial para mostrar ao mundo que ocorre no estado, argumenta a líder quilombola. “Nós estamos mais inseguros do que seguros. Estamos vivendo um ano difícil. O governo do Pará se nega a dar a segurança devida”, afirma, lembrando a situação do território Maria Valentina. “Os nossos alunos estão prejudicados sem aula no ensino médio, porque o governo não dá uma resposta para nós. Somos um povo que a gente vai para o diálogo. Somos parceiros, mas quando chega em momentos assim, temos de lutar. O estado tem violado direitos”, frisa a defensora.

Miriane Coelho, presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém, em evento no Pará: “Tem horas que me bate medo, mas depois me bate uma coragem” (Foto: Reprodução)

Apenas no município de Santarém, no oeste do Pará, são 14 territórios quilombolas. “Nós estamos defendendo o que o governo tem feito para violar nossos direitos. Só nós, os povos indígenas e extrativistas que deixamos a floresta em pé, enquanto o agronegócio destrói a floresta. Não existe o estado do Pará como um estado sustentável. Mas espero que, nessa COP30, o mundo veja quem é que protege a Amazônia”, afirma Miriane Coelho.

Manter a posse e a proteção das terras, ela conta, requer pensar mecanismos de garantias. “Nós enfrentamos grandes desafios para nos manter no território. Precisamos criar mecanismos de garantias. Temos, há quatro anos, um mecanismo de protocolo de consulta quilombola”. Outra forma de garantir que o território seja preservado é por meio de tombamentos. “Estamos fazendo o tombamento do lago do Humaitá. Estamos fazendo estratégias desafiadoras de proteção para garantir mais um direito”, destaca.

A participação na Cúpula do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) não é garantida para o grupo, afirma a líder quilombola. Ela diz que o deslocamento também atrapalha a participação de determinados grupos no evento. “São cinco dias de barco, dois de ônibus e 1h10 de voo. A nossa participação na COP 30 vai ser invisibilizada. A articulação com o governo do estado está muito difícil para garantir painéis quilombolas. Vamos fazer a nossa manifestação”.

Darlan Neres, integrante do Coletivo de Juventudes Guardiões do Bem perto de sua casa no Pará: ameaças também às famílias de ativistas (Foto: Arquivo Pessoal / Instagram)

Guardião do bem ameaçado

Ativista ambiental e territorial, o jovem Darlon Neres, de 24 anos, também tem atuação na região de Santarém e relata que os ataques são sempre diretos e pessoais, que afetam o convívio familiar e comunitário. “Eu, que sou jovem, jamais imaginei que ia perder a liberdade de andar no meu território e não sentir medo. A gente não sente medo da morte, mas como é que você está sendo planejado para ser silenciado”, pontua o defensor, que já foi ameaçado diversas vezes. “Para nós, todo dia é um recomeço de vida. Para a gente que recebe ameaças de morte, é mais um dia de luta, de resistência. Somos nós que guardamos a floresta, mantemos o planeta vivo. Somos os guardiões da floresta”, acrescenta.

Filho de agricultores familiares, Darlan Neres integra o Coletivo de Juventudes Guardiões do Bem e critica a forma como o programa de proteção de defensores é organizado, argumentando a necessidade de ampliação para alcançar também as famílias, que sofrem igualmente ameaças e violências. “O programa de proteção tem de estar de acordo com o que a gente quer, e não de cima para baixo. Enquanto isso não for pensado, continuaremos tendo a nossa voz silenciada”, afirma Neres.

Nessa época, tentaram me atropelar quando eu saía para a universidade. Umas motos ficavam me monitorando. Quando Bolsonaro era presidente, era muito pior. Ameaças vindo por celular, por rádio. Tive de sair da minha casa várias vezes

Auricélia Arapiun
Líder indígena do Baixo Tapajós, Pará

Para o ambientalista, o evento é uma janela de oportunidade para mostrar ao mundo o que ocorre no Pará. “Não vai resolver nossos problemas históricos, como demarcação de território. É uma oportunidade de falar ao mundo o que está acontecendo aqui. Aquilo que vende na TV, como um Pará sem grilagem de terra, sem desmatamento, não é a realidade. Uma oportunidade de mostrar um estado que viola, que nega, que não respeita as convenções internacionais, que não está ouvindo os povos da floresta”, destaca.

O relatório Na Linha de Frente aponta que 80,9% dos ataques registrados no país visam defensores ambientais e territoriais. O jovem paraense, entretanto, alerta para um número maior, em razão da falta de registro das violências sofridas por todos os defensores. “Essa porcentagem é maior e isso representa o quanto o estado tem falhado na proteção e na consolidação dos territórios. A violência no campo só vai existir por conflito de interesse. O quanto de fiscalização que a gente não tem no território. A secretaria de Meio Ambiente não funciona porque é cooptada por madeireiros. A gente não tem respostas das nossas denúncias… um cenário de que o estado precisa fazer o seu papel”, afirma o ativista, que estuda Jornalismo e Antropologia.

Neres relata que já recebeu ameaças por diversos meios, como algumas pela internet e outras pessoalmente: a forma como esses crimes acontecem vem mudando ao longo do tempo. Ele relembra um episódio em que foi obrigado a sair da região do Lago Grande, onde mora. “Uma das grandes ameaças que eu sofri foi quando eles estavam me procurando com a minha foto em vários lugares, perguntando onde eu morava. Foi nesse momento em que tive de sair do meu território, ficar em outro lugar para a ameaça não se concretizar”.

Auricélia Arapiun em evento em Belém: lideranças indígenas ameaçadas no Pará (Foto: Bruno Peres/Ascom SG-PR – 05/08/2023)

Líder indígena obrigada a deixar sua casa

Liderança indígena do Baixo Tapajós, no Pará, Auricélia Arapiun começou sua militância ainda muito jovem. Mas foi na universidade, em 2018, que intensificou a luta por direitos indígenas – na mesma época, também começou a sofrer ameaças. Ela conta que chegou a ser suspensa e a enfrentar inquéritos policiais. Em 2021, passou a ser ameaçada após lutar contra a exploração madeireira no território dos tapajós. “Nessa época, tentaram me atropelar quando eu saía para a universidade. Umas motos ficavam me monitorando. Quando Bolsonaro era presidente, era muito pior. Ameaças vindo por celular, por rádio. Tive de sair da minha casa várias vezes”, relata, contando que ouvia ‘Vou acertar uma bala no miolo dela’.

Auricélia, estudante de Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará, integrante do conselho deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e coordenadora do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (CG-PNGATI), se recusou a fazer parte do programa de proteção por enxergar falhas na iniciativa governamental. “Já fiz várias denúncias. Eu não confio na polícia. Eu já vi defensores de direitos humanos que têm de ficar com a polícia, têm que ficar pedindo autorização para sair, têm de fazer relatório. Isso tudo, para mim, é uma forma de punição. Não é uma forma de proteção”. Além disso, ressalta, a proteção não se estende a parentes ou propriamente ao território. “Meu território continua ameaçado, meus parentes que estão no território e que fazem enfrentamento também continuam ameaçados. Tem que ser o coletivo. Nós somos coletivos, não somos individuais”.

Na sua avaliação, a COP30 é uma oportunidade de trazer visibilidade ao que chama de “contradição”. “É uma oportunidade de denunciar, de constranger o Congresso Nacional e expor toda a contradição para quem não mora no estado do Pará: fazer uma COP na Amazônia, em Belém passando por cima dos direitos das pessoas, dos impactos da COP”, acentua. Os caminhos para enfrentar os problemas de segurança contra defensores perpassam, de acordo com Auricélia Arapiun, por proteger e demarcar territórios indígenas. “O principal violador é o Congresso Nacional. Depois do marco temporal, diversas lideranças indígenas tiveram suas vidas ceifadas”, afirma.

As pessoas não estão protegidas nem dentro de casa. Em vários casos, o violador é um agente do estado; às vezes, já está dentro dos territórios. O Estado falha em garantir a segurança para essas comunidades e também falha em políticas que são mais estruturais

Gláucia Marinho
Diretora-executiva da ONG Justiça Global

Assim como para Darlon Neres, para a líder indígena, o número de ataques registrados contra defensores pode ser maior do que o registrado pelo relatório da Terra de Direitos e da Justiça Global. “Com a aprovação da lei da devastação, os números são maiores e já deveriam ser um alerta”, acrescenta, destacando que, entre os conflitos territoriais mais presentes no Estado, estão os provocados pelo garimpo ilegal e o agronegócio. “Sofremos com impactos disso [garimpo ilegal], como contaminação fluvial; com o agronegócio, com a mineração também. Os nossos territórios estão mapeados pela mineração. E, agora, o mercado de carbono”, pontua.

Perguntada sobre como as organizações indígenas têm atuado na defesa coletiva dos territórios diante do avanço de grandes empreendimentos, garimpo e grilagem, Auricélia Arapiun garante que por meio das ações na Justiça. “Apesar de o governo ter criado o Ministério dos Povos Indígenas, tenho visto todo o esforço do movimento indígena para enfrentar e defender os povos. A advocacia indígena tem atuado no judiciário, há uma incidência jurídica. Além disso, a comunicação indígena é um marco para denúncia”, completa.

Região Norte concentra casos de violência

Dos 486 casos de violência contra defensores e defensoras, entre 2023 e 2024, a Região Norte figura com 167 casos (34,4%), liderando o ranking. O estado do Pará, por sua vez, está na 1º posição, com 103 casos registrados. Desses, 94% foram contra pessoas que atuam na defesa do meio ambiente e dos territórios. Por outro lado, a comparação entre 2023 e 2024 mostra que houve uma redução nos números gerais no país, passando de 298 casos em 2023 para 188 em 2024.

Glaucia Marinho, diretora executiva da Justiça Global, afirma que, mesmo com a diminuição, o número ainda é alto. “A média é histórica e continua a mesma. Tivemos diminuição em casos de ameaças. Na primeira edição, em comparação, a gente teve quase 50% dos casos de ameaça, mas agora uma queda de 36%”, ressalta ela, sinalizando que “a violência às vezes sequer é documentada”.

Para Marinho, é importante fortalecer o programa de proteção dos defensores, comunicadores e ambientalistas. “No Pará, se tem notícia de que informações confidenciais foram vazadas. A gente precisa de um compromisso de fortalecer programas e produzir dados. A justiça do Pará precisa tratar com mais celeridade os episódios de violência”, critica.

Em relação à COP30, a diretora da Justiça Global alerta que o governo e a sociedade civil precisam garantir a participação de todos na conferência do clima. “Para além da COP, acontecerá a Cúpula dos Povos, onde movimentos sociais e ativistas vão se reunir para pensar uma política ambiental que respeite os povos e os direitos da natureza e que leve em conta a vida acima do lucro”.

O que torna o Pará o epicentro dos conflitos e violência contra defensores, ela pontua, é a concentração fundiária. Além disso, há outros problemas. “A grilagem, a falta de demarcação de terras indígenas e quilombolas. É uma fragilidade. É preciso rever o modelo explorador. Precisamos repensar a exploração da mineração e do petróleo”, aponta.

O relatório indica que a criminalização das lideranças aumentou, passando de 9,1% para 24,7% dos casos. De acordo com a coordenadora da Justiça Global, os dados revelam um problema no Legislativo e no Judiciário. “Em vez de garantir direitos, também atuam para minar mobilizações populares. É muito triste quando você tem uma liderança ou defensor detida ou sofre criminalização. É uma forma de silenciar não só uma comunidade, mas um ecossistema inteiro”.

O levantamento aponta que 78% dos assassinatos no país foram cometidos com armas de fogo e, muitas vezes, dentro dos territórios ou casas das vítimas. “As pessoas não estão protegidas nem dentro de casa. Em vários casos, o violador é um agente do estado; às vezes, já está dentro dos territórios. O Estado falha em garantir a segurança para essas comunidades e também falha em políticas que são mais estruturais”, acrescenta.

Glaucia Marinho acredita que o Estado brasileiro deve assumir um compromisso de prever mais recursos para a política nacional de proteção de defensores de direitos humanos, ambientais e territoriais. “Não se pode tolerar mais no Brasil qualquer tipo de violência contra defensores. Não são todos os estados que contam com programa de defensores de direitos humanos. Precisamos avançar em políticas públicas de proteção que garantam a vida.”

Igor Soares

Igor Soares é jornalista formado pela UFRJ. Atualmente, atua como repórter freelancer do #Colabora, do Rio On Watch e da Folha de S. Paulo. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos, segurança pública, economia e política, com passagem pelas redações do Estadão, da Agência Estado e do Portal iG.

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