Durante mais um episódio de violência doméstica, Marijane Floriano, uma mulher negra de 53 anos, decidiu agir. Com um golpe de defesa que aprendera semanas antes, “eu quebrei a perna do pai das minhas filhas”, conta. “O movimento salvou a minha vida. Após várias marcas pelo corpo que ele deixou, eu consegui sair dessa situação me defendendo.”
Foram as aulas de autodefesa feminina do Empodere-se, projeto criado em Campinas, no interior de São Paulo, pela advogada e ex-investigadora da Polícia Civil Amanda Lemes, de 39 anos, que ensinou Marijane — e milhares de mulheres — a se proteger.
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Durante um plantão policial, Amanda recebeu uma mulher que já tinha tomado todas as medidas jurídicas cabíveis, mas continuava sofrendo violência física e sexual. Não sabendo mais como ajudar, a investigadora chamou a vítima em uma sala e ensinou golpes de autodefesa.
Pensar é reconhecer o ambiente e validar o incômodo. Usar a voz é colocar limites, denunciar, pedir ajuda. Sair é recusar permanecer em situações de risco. Lutar é reagir — física, política e juridicamente — quando necessário. E contar é compartilhar saberes entre mulheres, quebrar o silêncio
Semanas depois, a mesma mulher “conseguiu se livrar do agressor [durante uma tentativa de estupro] e voltou para me contar. Percebi que havia ali algo importante. Foi o ponto de virada”, lembra. Assim, o Empodere-se nasceu. Não só para ensinar mulheres técnicas de luta, mas a reconhecer violências, se proteger e reagir, com estratégias físicas, emocionais, jurídicas e coletivas.
A violência doméstica e familiar contra a mulher não é novidade. Em 2024, todos os dias, ao menos quatro mulheres morreram vítimas de feminicídio no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Dados atualizados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, do Senado Federal, apontam que no primeiro semestre de 2025 foram registrados 33.999 estupros contra mulheres no país, uma média de 187 casos por dia.
O ciclo da violência
Marijane, por exemplo, foi vítima da violência de gênero muito antes de imobilizar o ex-companheiro: aos 12 anos, foi violentada por dois vizinhos enquanto sua mãe trabalhava. Engravidou aos 14 e, aos 15, casou com um homem que “algumas das vezes me bateu, outras pediu para o irmão me segurar para me bater.”
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Veja o que já enviamosApós a separação, entrou em um segundo relacionamento violento em que, mesmo ferida física e psicologicamente, “pensava ser normal; ele me bater e no outro dia me pedir desculpa e falar que me amava”. A normalização do abuso acontecia também por pressões sociais: “Como que eu vou falar para minha vizinha, que comentava que eu sou um casal perfeito, que meu marido me bate?”, desabafa.
Vivia, sem saber, o ciclo da violência, um padrão de comportamento com três fases: tensão (onde o estresse e a irritação aumentam), agressão (com a explosão da violência física, psicológica, sexual ou patrimonial) e Lua de Mel (onde o agressor demonstra arrependimento, promete mudar e se torna carinhoso, buscando reatar o relacionamento).
Foi no Empodere-se, já adulta, enquanto ajudava outras mulheres, que compreendeu e nomeou as violências de que foi — e ainda era — vítima. Durante a formação como monitora do projeto, quando “tinha uma psicóloga e assistente social que me ouvia; no meio do curso, eu consegui sair desse abuso.”
A transformação foi profunda e multifatorial: “Hoje eu sou um radar. Se alguém falou alguma coisa que está fora do contexto, já fico atenta”. Marijane voltou a estudar pelo EJA (educação de Jovens e Adultos), é líder comunitária na região em que mora, mãe, avó, arrimo familiar, sobrevivente da violência doméstica e instrutora. “Eu sou grata em ser a mulher que eu sou.”
“Quem aqui já aprendeu a dar um soco?”
A reportagem do Colabora acompanhou um workshop ministrado pelo Empodere-se em uma empresa privada, em Santos, no litoral paulista. Diante de cerca de 200 mulheres, Amanda fez uma pergunta simples: “Quem aqui já aprendeu a dar um soco?”. Somente cinco mãos se levantaram em meio à multidão. Enquanto meninos crescem aprendendo a lutar, às meninas é ensinado que o corpo feminino não deve ocupar espaço, não deve reagir, não deve se impor fisicamente.
O curso começa desconstruindo essa ideia. Autodefesa feminina não é sobre agressão, mas sobre autonomia e consciência corporal. Inspirada nas sufragistas — mulheres que lutaram pelo direito ao voto feminino entre o fim do século XIX e o início do século XX, sendo a primeira onda do movimento feminista — que treinavam jiu-jitsu como forma de resistência política, Amanda criou cinco princípios fundamentais: pensar, usar a voz, correr, lutar e contar.
“Pensar é reconhecer o ambiente e validar o incômodo. Usar a voz é colocar limites, denunciar, pedir ajuda. Sair é recusar permanecer em situações de risco. Lutar é reagir — física, política e juridicamente — quando necessário. E contar é compartilhar saberes entre mulheres, quebrar o silêncio”, explica.
Quando você passa por um abuso que é de alguém muito de perto, muito íntimo, você sente a destruição, você sente a morte de perto. Eu sempre falei que eu me sentia estando viva, mas estando morta emocionalmente
Nas oficinas, ela ensina técnicas simples e realistas — como o uso de objetos do dia a dia, pontos de vulnerabilidade e táticas de escape. Mostra os movimentos com a ajuda de voluntárias, e as mulheres da plateia os repetem. E o fazem enquanto lembram, assim como nós que escrevemos esta reportagem, das violências que sofreram. “A mulher precisa se tornar um risco para o agressor. É isso que pode salvar sua vida”, resume.
Um momento alto da palestra acontece com uma provocação de Amanda: “quantas aqui são mães?”. Desta vez, dezenas erguem os braços. A ex-investigadora continua: “se uma situação violenta acontecesse com seus filhos, o que fariam?”. As respostas, que vêm em burburinhos entre as participantes, são resumidas em: ação. Ao que Amanda continua: “Se quando a violência acontece com filhos reagimos, porque quando é contra nós, paralisamos?”.
Ela mesma responde: “porque só protegemos aquilo que amamos” — e não fomos ensinadas a nos amar.
“Um grito, daqui a pouquinho é um tapa”
Gabriela Roberta, de 51 anos, líder comunitária, instrutora do Empodere-se e sobrevivente da violência doméstica, conheceu o programa através de sua ex-cunhada e aceitou participar de um curso de autodefesa no bairro Santa Lúcia, em Campinas, “achando que fossem aulas técnicas de luta”. O que encontrou foi muito mais: um ano de formação sobre todos os tipos de violência contra a mulher.
Os abusos que Gabriela sofreu começaram na infância, em casa, pelo próprio pai. “Quando você passa por um abuso que é de alguém muito de perto, muito íntimo, você sente a destruição, você sente a morte de perto”, revela. “Eu sempre falei que eu me sentia estando viva, mas estando morta emocionalmente.”
A autodefesa não é uma luta de jiu-jitsu. É usar o pensamento para evitar situações, identificar e prevenir riscos, usar a voz, o corpo, agir coletivamente
Se o curso a ajudou a compreender e ressignificar as violências sofridas na infância, também impactou a vida adulta. Durante o projeto, Gabriela descobriu ter sido vítima do estupro marital. “Me pegou de surpresa. Porque, na verdade, eu nem sabia dessa violência. E milhares de mulheres passam por isso”, conta. “É muito comum fazer algo para agradar e às vezes não está afim. E isso é uma violência.”
A força do coletivo feminino foi fundamental. “Quando você olha 40, 50 mulheres ali passando quase pelas mesmo tipo de violência que é sua, você se sente forte, acolhida e vista”, descreve Gabriela. “Quantos sábados, quantas vezes no curso todas choravam por causa de uma? A dor de uma era a dor de todas.”
Após as aulas, quando chegou em casa e o marido gritou, ela reagiu: “Pega tuas coisas e vai embora de casa.” Estabeleceu limites claros: “Um grito, daqui a pouquinho é um tapa. Daqui a pouquinho é um empurrão. O grito é uma violência.”
Da delegacia à política pública nacional
Foi no cargo de investigadora que Amanda percebeu um padrão: “A Lei Maria da Penha é eficaz, mas há casos em que as medidas legais não bastam. Algumas mulheres estavam prestes a morrer, mesmo com todos os boletins de ocorrência e medidas protetivas em dia”. A constatação a levou a deixar a delegacia para se dedicar integralmente ao projeto.
A aposta deu resultado. Em 2023, o Empodere-se foi contemplado em um edital do Ministério das Mulheres do Governo Federal, e 40 mulheres da periferia de Campinas receberam formação como multiplicadoras. O convite foi além: o ministério convidou Amanda a coordenar um grupo de trabalho para desenhar o Programa Nacional de Autodefesa Feminina, que pretende alcançar 27 estados, 13 mil multiplicadoras e mais de 600 mil mulheres no primeiro ano.
Para Estela Bezerra, secretária nacional de Enfrentamento à Violência Contra Mulheres (SENEV) do Ministério das Mulheres, o combate à violência de gênero precisa não é só punitivo, mas também preventivo: “Precisamos ensinar desde cedo para que meninos e meninas entendam o que é violência de gênero. Muitas mulheres só percebem que estão em situação de violência no momento em que levam o primeiro tapa.”
Por isso, entre as ações preventivas do ministério, Bezerra destaca exatamente o programa de autodefesa desenvolvido pelo Empodere-se. “A autodefesa não é uma luta de jiu-jitsu. É usar o pensamento para evitar situações, identificar e prevenir riscos, usar a voz, o corpo, agir coletivamente”, explica a secretária.
O projeto já começou a formar mulheres no Rio de Janeiro e deve beneficiar 15 mil participantes em uma primeira etapa, com previsão de ampliação em 2026. Uma estratégia que, segundo o Ministério das Mulheres, pode colocar o Brasil na vanguarda mundial de uma política pública inovadora de prevenção à violência de gênero. “Nós estamos construindo algo histórico. O Brasil pode puxar uma nova onda feminista, baseada na autodefesa e na união entre mulheres”, conclui Amanda.