O ano de 2024 chega ao fim entrando para história como o primeiro em que o aquecimento global de 1,5º C – limite climático estabelecido pelos países no Acordo de Paris – foi ultrapassado em seus 12 meses, de acordo com dados do Copernicus, observatório europeu do clima, com as medições dos 11 primeiros meses. No Brasil, a crise climática mostrou sua faceta mais ameaçadora em 2024: maior desastre climático do Rio Grande do Sul, com quase 200 mortos; seca recorde em todo o país; e, como consequência, o maior número de queimadas e incêndios na Amazônia em 17 anos, além de recordes de fogo no Cerrado e no Pantanal.
O aumento de 1,5º C (um e meio grau Celsius) na temperatura do planeta acima da média pré-industrial era o limite – calculado por cientistas e formalizado por 195 países na 21ª Conferência das Partes (COP21), realizada em Paris – a ser mantido para evitar que os impactos climáticos ficassem muito mais graves e a adaptação muito mais difícil. E 2024 ultrapassou esse limite ao superar o que, no começo do ano, parecia difícil: ser ainda mais quente que 2023, que havia sido, por larga margem, o ano mais quente da história desde o início das medições globais com termômetros, em 1880.
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Veja o que já enviamosCientistas apontam que ainda é cedo para estabelecer que o aquecimento de 2024 é consistente; se a temperatura média da Terra já alcançou este novo patamar e não voltará a cair. Para climatologistas e meteorologistas, eventos sazonais podem fazer que a temperatura média diminua em 2025, mas esta é uma aposta que ninguém quer fazer após o recorde de 2024 e sua lista de catástrofes climáticas: em abril, incêndios florestais na região de Valparaíso, no Chile, mataram quase 140 pessoas; em junho, o calor extremo matou mais de 500 pessoas em peregrinação a Meca; em setembro, o furacão Helene avançou, de maneira incomum, para o centro-sul dos EUA, deixando 230 mortos, principalmente na Carolina do Norte; em outubro, mais de 200 pessoas morreram na região de Valência, na Espanha, quando choveu mais em oito horas do que em 20 meses.
Tragédia climática no Sul
Entre 28 de abril e 7 de maio, o Rio Grande do Sul foi atingido pelas chuvas mais volumosas já registradas no estado. Em alguns municípios gaúchos, as precipitações chegaram a até 700 milímetros em menos de uma semana, um terço do esperado para o ano inteiro. Em extensão, foi a maior enchente da história do Brasil: 85% das 487 cidades gaúchas foram atingidas; no total, as enchentes afetaram 2,4 milhões de pessoas no estado.
O número oficial de vítimas fatais chegou a 183 – o último corpo foi encontrado em agosto, três meses depois das enchentes. Mas ainda há 27 desaparecidos. Os órgãos de socorro atenderam ainda a mais de 800 feridos. No auge dos temporais, cerca de 80 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e recolhidas a abrigos. No fim do ano, 1.328 pessoas ainda seguem desabrigadas em Porto Alegre, Canoas, Lajeado, Canela, Encantado, Cruzeiro do Sul, São Jerônimo, Arroio do Meio e outros municípios; a maioria segue sem perspectiva de ter novamente um teto.
As enchentes no Rio Grande do Sul mostraram a urgência da discussão da justiça climática. Os mais vulneráveis foram os mais afetados pelas chuvas. Em municípios do Vale do Taquari, comunidades às margens dos rios sofreram com a terceira enchente desde 2023: bairros inteiros serão mudados de lugar. Refugiados de outros países que moram no estado foram hostilizados em abrigos.
O desastre climático também serviu de alerta para o despreparo de gestores para lidar com situações extremas. Alertas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e diversos especialistas indicaram, com uma semana de antecedência que chuvas volumosas atingiram o Rio Grande do Sul, mas, ainda assim, municípios e o governo estadual só perceberam a gravidade depois do desastre começar.
Cientistas apontam que as tempestades inéditas no Rio Grande do Sul foram motivadas por uma combinação de quatro fatores ligados à crise climática: um bloqueio atmosférico atípico, que se formou por conta da onda de calor no centro do país e manteve esse sistema que causou as chuvas “estacionado” sobre o Rio Grande do Sul; a chegada rápida de um sistema de baixa pressão; o El Niño, fenômeno caracterizado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico; e a elevação anormal da temperatura das águas do Atlântico Sul, associado ao aquecimento global.
Seca histórica, número recorde de queimadas
Essa violenta onda de calor em pleno outono foi apenas um dos episódios de altas temperaturas extremas no país: a crise climática trouxe ondas de calor em quase todos os meses de 2024, de acordo com Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis). Associada às altas temperaturas, uma seca extrema atingiu a maioria dos estados brasileiros. De acordo com dados do Cemaden, (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), o Brasil está enfrentando a pior seca em 70 anos; desde 1950, não se registrava uma situação tão grave no país.
Com a crise climática, a seca em 2024 foi particularmente severa na Amazônia, repetindo a situação de estiagem extrema de 2023. Os rios da Amazônia começaram, inclusive, a secar mais cedo. No primeiro semestre, choveu menos que o esperado em toda a região. De acordo com o Cemaden, regiões da Amazônia enfrentaram a pior seca desde o começo da série histórica, em 1950: norte do Acre, grande parte de Rondônia, a maior parte da Amazônia Matogrossense, o oeste do Amazonas e o sul do Pará.
Seis rios da Amazônia atingiram mínimas históricas com a seca extrema de 2024: Rio Negro, em Manaus e outros pontos; Rio Solimões, em Tabatinga, Boa Fé e Coari Amazonas; Rio Madeira, na região de Porto Velho e Humaitá, Rondônia; Rio Tapajós, na região de Itaituba, no Pará; Rio Xingu, em Pedra do Ó, Pará; e Rio Acre, no Acre. A seca extrema também atingiu pelo menos 42 territórios indígenas na Amazônia, de acordo com levantamento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) – outros mais de 100 também foram impactados pela pior estiagem na região.
Atrás da seca extrema, veio o aumento do número de queimadas. Dados do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que, em 2024, a Amazônia teve o maior número de focos de calor dos últimos 17 anos. Até o início de dezembro foram 137.538, o que inclui queimadas e incêndios florestais. O período só não foi pior do que em 2007, quando foram registrados 186.480 focos. Em relação a 2023, houve aumento de 43%; em todo o ano passado, foram 98.646 focos de incêndio. Os chamados rios voadores, que normalmente transportam umidade para o centro-sul, tornaram-se corredores de fumaça tóxica.
A fumaça dos incêndios na Amazônia não cobriu apenas cidades da região (como Manaus, Porto Velho e Belém), mas alcançou até Brasília e São Paulo, estado que também registrou recorde de queimadas. E a Amazônia não foi o único bioma a sofrer com o aumento das queimadas – apesar da queda no desmatamento. O Cerrado, com 80,5 mil focos de incêndio, e a Mata Atlântica, com 21 mil, registram crescimento significativo no número de queimadas (62,6%, no Cerrado, e 86,2%, na Mata Atlântica. O Pantanal, onde os rios também tiveram baixas históricas, registrou alarmantes 14,4 mil incêndios, um aumento de 133% – os focos de calor mais do que duplicaram na região.
O Rio Grande do Sul submerso e quase todo o resto do Brasil em chamas – ou enfrentando uma seca histórica. A crise climática é o novo normal: e o país precisa ir se adaptando a essa realidade. Cada retrospectiva anual tende a ser um inventário de catástrofes climáticas – só podemos torcer que 2025 seja um pouco menos quente e mais ameno que 2024. Mas serão necessárias mudanças históricas para a redução das emissões de gases, que evitem a escalada do aquecimento do planeta.