Diante de um volume de chuva que atingiu 472,4 mm em 96 horas, um deslizamento de terra no Morro do Cechella matou mãe e filha na quarta-feira, 1° de maio, em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul. Liane Ulguin da Rocha, 45 anos, e Emily Ulguin da Rocha, 17 anos, moravam em uma casa no bairro Itararé. Após a tragédia, a população do local foi evacuada pela prefeitura por conta do risco de novos deslizamentos e da continuidade das chuvas, previstas muito antes do deslizamento.
Alertas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e diversos especialistas já indicavam, desde o final de semana, que altos volumes de chuvas atingiram o estado, mesmo assim, municípios e o governo estadual só perceberam a gravidade depois do desastre começar. “Os modelos meteorológicos já apontavam um evento que poderia produzir chuvas superiores a 250 milímetros em dois ou três dias, então isso já era suficiente para fazer mobilizações e colocar a cidade em alerta para a previsão desse fenômeno”, aponta Vagner Anabor, professor de Meteorologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Até o início desta sexta-feira, 31 mortes já haviam sido confirmadas em diferentes cidades do Rio Grande do Sul. Outras 74 pessoas seguiam desaparecidas, o número de desalojados e desabrigados já ultrapassa 24 mil e o total de afetados passa de 350 mil. O desastre meteorológico desta semana superou, inclusive, as enchentes que atingiram o Vale do Taquari em setembro do ano passado, isso porque, desta vez, foram diversas regiões e cidades afetadas – 235 – segundo o boletim da Defesa Civil do RS no começo desta sexta-feira (03/05).
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Veja o que já enviamos“Estamos atravessando o que deverá ser o maior desastre da história do nosso estado. E nós estamos com muita dificuldade nos resgates”, afirmou o governador Eduardo Leite na noite de terça-feira. Com as cheias e enxurradas, diversas pontes e rodovias foram danificadas e bloqueadas, o que deixou comunidades ilhadas. A situação levou o governo estadual a decretar situação de calamidade pública e motivou visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao estado.
De acordo com Vagner Anabor, o alto volume de chuvas foi causado por conta de uma frente fria estacionária que se formou sobre o Rio Grande do Sul. A combinação desse sistema atmosférico com o ar quente e úmido levou a dias consecutivos de muita precipitação. “Isso acabou gerando esses volumes acumulados localmente, que foram bastante significativos, superaram os 500 milímetros em várias cidades”, explica o meteorologista. Esses fenômenos naturais também sofrem influência do El Niño, também natural, e das mudanças climáticas, essas causadas pela ação humana.
Na segunda-feira, 29 de abril, o Inmet já havia emitido alerta laranja para o risco de tempestades severas em quase todo o estado. No dia seguinte, o instituto atualizou o nível do alerta para vermelho, que representa grande perigo. Na visão do professor da UFSM, existe um descompasso entre as previsões feitas por meteorologistas, baseadas em modelos climáticos cada vez mais precisos, e a cultura de recepção a esses alertas, tanto por parte das pessoas em geral, e principalmente pelo poder público.
“O que nós vemos de forma recorrente nos relatos dos salvados é que eles não esperavam que isso fosse acontecer, de uma forma ou de outra, essas pessoas desacreditaram. Não é que eles não tinham a informação, eles desacreditaram, não tiveram a percepção da gravidade do fenômeno, mas isso não é por culpa dessas pessoas; é por falta da criação de uma cultura de proteção e mitigação de desastres”, complementa Vagner Anabor. O especialista cita a necessidade de educação para enfrentamento de desastres climáticos, cada vez mais frequentes no Rio Grande do Sul.
Na visão de Abner de Freitas, pesquisador da área epidemiologia dos desastres, a resposta dos órgãos públicos ao atual desastre mostra avanços “pela magnitude do que estamos vivendo”. Ele compara o episódio com um evento meteorológico semelhante ocorrido na Europa em 2021 e que causou 243 mortes. Segundo Abner, é importante diferenciar desastres climáticos (como secas e queimadas), de desastres meteorológicos (tempestades) e hidrológicos (enchentes), bem como contextualizar estes fenômenos como parte de uma nova realidade.
De acordo com o mestre em Gestão de Saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a tendência é de que desastres passem a interromper as atividades e rotinas das pessoas com maior frequência. “Precisamos trabalhar com educação comunitária para que a população saiba o que fazer nos desastres; assim quando não é possível impedir a sua ocorrência, saber o que fazer pode aumentar a sua chance de sobrevivência”, explica o pesquisador.
Falta de cultura, políticas e investimentos na prevenção à desastres
Além de cultura para lidar com eventos extremos, o Rio Grande do Sul carece de estruturas e políticas voltadas ao tema, a exemplo de um plano de ação climática, em fase de elaboração desde outubro de 2023, depois de projetos anteriores serem engavetados, como mostrou levantamento da Agência Pública. Já com relação aos investimentos, o governo gaúcho aprovou um orçamento de apenas R$115 milhões para enfrentar eventos climáticos, como chuvas extremas e enchentes, diante de um total de R$83 bilhões. Consulta feita pela reportagem do #Colabora mostra que até abril deste ano, o Estado orçou apenas R$600 mil em ações para mitigar as mudanças climáticas.
Antes, no episódio do desastre do Vale do Taquari, o governador Eduardo Leite chegou a fazer críticas ao trabalho de meteorologistas, por supostamente não preverem o volume das chuvas que atingiu a região na época – declaração contestada por especialistas. Junto com as políticas de ação climática e os investimentos, outra lacuna estrutural mencionada pelo professor Vagner Anabor é a falta de um centro estadual de meteorologia.
“O Rio Grande do Sul é o único estado da região sul que não possui um sistema próprio de meteorologia e terceiriza esse serviço para uma empresa privada”, descreve o docente da UFSM. O especialista vai além e aponta a possibilidade de consórcios intermunicipais também contratarem profissionais da área, o que poderia melhorar a eficiência da gestão das informações meteorológicas.
Nível recorde dos rios preocupa
Antônio Remonti nasceu e cresceu em Lajeado, onde mora com a família e atua como advogado. Apesar de não ter sido afetado diretamente pela enchente, ele aponta que mesmo morando em um bairro mais alto da cidade, a água alcançou parte da rua de sua casa. “É muito maior que em setembro”, destaca ele, fazendo referência ao desastre que matou mais de 50 pessoas na região. Na madrugada desta quinta-feira, 2, o Rio Taquari alcançou 31,8 metros, o maior nível da história e superando os 29m45cm em 2023.
A situação preocupa ainda mais por conta do rompimento de parte da estrutura da barragem 14 de Julho, que fica entre os municípios de Cotiporã e Bento Gonçalves (RS), na serra gaúcha. Isso porque as águas da região escorrem para a bacia do Rio Taquari-Antas. Em todo o estado, ao menos 19 barragens estão em estado de alerta ou atenção por conta das enchentes e, na capital Porto Alegre, a estimativa é de que o Guaíba atinja marcas históricas.
O governo do Rio Grande do Sul reativou a chave PIX usada no ano passado para doações às vítimas das enchentes do Vale do Taquari. Os valores doados serão revertidos em apoio humanitário para as pessoas atingidas pelo desastre em diversas regiões do Estado. As doações podem ser feitas para a conta SOS Rio Grande do Sul, por meio da chave PIX (CNPJ: 92.958.800/0001-38).