Amazônia na encruzilhada

No limiar entre o passado de equívocos e o presente de altos riscos, o futuro da região depende de respeito às leis, proteção dos povos tradicionais e aposta na economia da floresta de pé

Por Elizabeth Oliveira | ODS 13ODS 15 • Publicada em 15 de junho de 2022 - 08:15 • Atualizada em 29 de outubro de 2022 - 11:04

Área desmatada e queimada no município de Trairão, no sudoeste do Pará: soja e gado avançam sobre a floresta (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch – 17/09/2020)

Área desmatada e queimada no município de Trairão, no sudoeste do Pará: soja e gado avançam sobre a floresta (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch – 17/09/2020)

No limiar entre o passado de equívocos e o presente de altos riscos, o futuro da região depende de respeito às leis, proteção dos povos tradicionais e aposta na economia da floresta de pé

Por Elizabeth Oliveira | ODS 13ODS 15 • Publicada em 15 de junho de 2022 - 08:15 • Atualizada em 29 de outubro de 2022 - 11:04

Há 50 anos, quando o mundo se reunia para debater os problemas ambientais globais na Conferência de Estocolmo, o desmatamento da Amazônia era de cerca de meio por cento. Meio século depois, 21% da região que abriga a maior floresta tropical do mundo já foi desmatada. Diante desse histórico, agravado nos últimos anos, o pesquisador Beto Veríssimo, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), alerta que o cenário é de alto risco. “A Amazônia está numa encruzilhada”, afirma ao explicar que a continuidade do panorama atual de degradação tende a levar a floresta a uma situação de colapso irreversível.

Para o pesquisador, evitar essa tendência dependerá do enfrentamento de uma conjunção de fatores como avanço dos crimes ambientais, desmonte de políticas públicas, tentativas de flexibilização da legislação, pressão sob territórios de povos tradicionais e exploração insustentável da natureza, opinião que coincide com a de outras referências no tema consultadas pelo #Colabora.

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Para quem pensa que 21% de desmatamento é pouco diante da resistência de 79% da Amazônia, Veríssimo destaca que a proximidade de 25% de perda da vegetação nativa representaria o “ponto de não retorno” (tipping point, na expressão original em inglês). Isso significa um nível de degradação capaz de modificar as características da floresta tal qual a conhecemos. Seria o colapso de um tripé formado pela presença inigualável de biodiversidade, da capacidade de sequestro de carbono e de oferta hídrica assegurada pelas dinâmicas de evapotranspiração das suas árvores, além de outras funções ecológicas fundamentais ao equilíbrio climático regional, nacional e global.

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Um estudo publicado na revista Nature, em 2021, discute essa problemática que vem sendo alertada por climatologistas nos últimos anos. A publicação também confirma que essa tendência de alto nível de degradação já é uma realidade em trechos da floresta que estão funcionando como fontes de emissão de carbono, em vez de atuarem justamente ao contrário, como sumidouros.

Imagens dos estragos provocados pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Foto Dário Kopenawa
Estragos provocados pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami: futuro da Amazônia depende da proteção aos povos tradicionais (Foto: Dário Kopenawa)

Veríssimo destaca outras contradições amazônicas, como a existência de territórios com altos indicadores de violência e pobreza. O Índice de Progresso Social (IPS) divulgado pelo Imazon, em 2021, ilustra essa realidade, ao evidenciar que os 15 municípios da Amazônia Legal com os piores IPS estão fortemente associados com desmatamento e conflitos fundiários. O pesquisador ressalta, ainda, que a economia regional tem muita ilegalidade e baixa produtividade. Segundo observa, a Amazônia responde, ao mesmo tempo, por 8% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro (por ser exportadora de commodities como alimentos e minerais) e por 50% das emissões de carbono e outros gases de efeito estufa do país, justamente pelas mudanças no uso da terra para o avanço de atividades econômicas de altos impactos ambientais como a agropecuária. “Tem um erro nesse modelo de desenvolvimento”, opina.

Veríssimo afirma que é possível desenvolver economicamente a região sem desmatá-la, embora reconheça que esse processo depende de prioridades governamentais. Ele considera que uma mudança no cenário político-institucional brasileiro vai ser decisiva para o futuro da região e para evitar o “ponto de não retorno” da floresta, embora reitere que não podemos esperar muito tempo para isso. “Não adianta tentar mudar depois. Não se consegue mudar o clima”, alerta.

Desde 1988, o Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (Prodes) produz as taxas anuais de desmatamento, por meio de análises de imagens de satélites. Desde 2004, quando foram desmatados 27.772 quilômetros quadrados, a maior taxa do século, o governo brasileiro enfrentou grandes pressões nacionais e internacionais. Foi quando se lançou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia legal (PPCDAm) e, em 2005, se criou o Grupo Permanente de Trabalho Interministerial (GPTI) para definir ações estratégicas para a região. Até 2012, quando se atingiu o menor nível histórico, com 4.571 quilômetros quadrados desmatados, foram alcançados avanços gradativos.

A partir de 2012, as estatísticas passaram a oscilar, até que mais de 7 mil quilômetros quadrados foram desmatados em 2016, um marco preocupante. Desde 2018, tem se confirmado uma tendência de alta, agravada a partir de 2019, superando 10 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa desmatada. Já em 2021, foram derrubados mais de 13 mil quilômetros quadrados de floresta (recorde nesta década).

Modelo de desenvolvimento equivocado favorece a expansão do crime organizado

Para Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, o governo do presidente Jair Bolsonaro “trouxe de volta uma visão desenvolvimentista equivocada de 50 anos que só levará ao aumento da pobreza, da degradação ambiental e do caos social na Amazônia”.

Diante de inúmeras fragilidades institucionais, a ex-presidente do Ibama ressalta que a região está tomada por quadrilhas que se retroalimentam do garimpo ilegal, do tráfico de drogas, do roubo de madeira e de outras atividades ilegais. “É uma mistura de ilícitos. O quadro é assustador”, opina. Esse cenário é ilustrado por estudos como “Cartografias das Violências na Região Amazônica”, repercutido pelo #Colabora em 2021, ao ser lançado.

A especialista considera que a troca de governo precisará retomar ações governamentais bem sucedidas e abandonadas no atual cenário político-institucional como o PPCDAm. Mas pondera que esse instrumento de política pública precisará incorporar um componente de enfrentamento do crime organizado, já que em 2004, quando foi lançado, o quadro de violência não se comparava ao atual cenário na região. “O próximo governo vai ter que mostrar força com megaoperações para a desocupação de territórios tradicionais como a Terra Indígena Yanomami, invadida por mais de 20 mil garimpeiros. Esse será um grande desafio”, analisa.

A gente está tentando segurar esses problemas que os não indígenas estão gerando e a biodiversidade está sofrendo também. A Mãe Terra está sofrendo com a violação da natureza e os crimes ambientais. Esse é o resultado da colonização que está matando a Amazônia

Dário Kopenawa
Vice-presidente da Associação Hutukara Yanomami

Ao comentar sobre a militarização das instituições governamentais e a proposição de iniciativas como o “Projeto de Nação: o Brasil em 2035”, lançado em maio pelo Instituto General Villas Boas, com a presença do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, Suely destaca a importância de os militares se concentrarem nas ações de defesa, suas principais competências. Em contrapartida, reitera, “devem deixar que as áreas que têm conhecimento científico sobre a Amazônia possam atuar em benefício do desenvolvimento sustentável da região”.

Enquanto o Projeto de Nação dos militares prevê inclusive a flexibilização da legislação ambiental para favorecer o avanço de obras de infraestrutura e a expansão da produção de commodities, na Amazônia, as 73 organizações da sociedade que integram o Observatório do Clima lançaram, também em maio, o primeiro volume da estratégia Brasil 2045 – Construindo uma potência ambiental. O documento apresenta 74 medidas e 62 ações emergenciais para que o próximo governo possa reconstruir as capacidades estatais com foco em agendas centrais como clima, biodiversidade, dentre outros temas que devem ser tratados como prioritários.

O segundo volume do documento Brasil 2045, será entregue após as próximas eleições, para a equipe do governo vencedor do pleito. Como parte das recomendações deverão ser listados os decretos, as instruções normativas e as portarias que precisarão ser revogados pelo sucessor do presidente Jair Bolsonaro.

Oito áreas prioritárias para a reconstrução da agenda ambiental brasileira

  1. Política climática e acordos internacionais;
  2. Prevenção e controle do desmatamento;
  3. Bioeconomia e atividades agrossilvopastoris;
  4. Justiça climática;
  5. Energia;
  6. Biodiversidade e áreas costeiras;
  7. Indústria e gestão urbana;
  8. Governança e financiamento da política ambiental nacional.

“Sem os povos indígenas, a Amazônia já estaria morta há muito tempo”, afirma Dário Kopenawa

Para Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, filho mais velho do xamã e líder indígena reconhecido mundialmente, Davi Kopenawa, é impossível pensar no presente e no futuro da Amazônia sem resgatar o passado de colonização europeia no Brasil. Em 522 anos de luta e resistência dos povos originários do país, ele destaca que a região se tornou uma das principais provedoras nacionais de commodities agropecuárias e minerais para o mundo e o seu futuro dependerá de mudanças nesse modelo predatório de desenvolvimento econômico.

Dario Kopenawa: "A sociedade brasileira tem que parar de desmatar e queimar a floresta". Foto Arquivo Pessoal
Dario Kopenawa: “A sociedade brasileira tem que parar de desmatar e queimar a floresta”. Foto Arquivo Pessoal

“Pensando sobre passado e presente, podemos dizer que sem os povos indígenas a Amazônia já estaria morta há muito tempo. Estamos dentro da floresta. Por isso ela ainda está viva. Nós lutamos pela sua proteção. Sem os indígenas a Amazônia já estaria toda queimada e derrubada pelos fazendeiros e madeireiros. Mas os povos originários estão lá e a Amazônia resiste”, afirma o líder Yanomami.

Além do preconceito e da incompreensão, segundo Dário, os povos originários da Amazônia enfrentam hoje muitas ameaças decorrentes do processo de exploração dos territórios indígenas. “A gente está tentando segurar esses problemas que os não indígenas estão gerando e a biodiversidade está sofrendo também. A Mãe Terra está sofrendo com a violação da natureza e os crimes ambientais. Esse é o resultado da colonização que está matando a Amazônia”, reitera.

Sobre o futuro, Dário não tem dúvidas. “A sociedade brasileira tem que respeitar a legislação ambiental e a Constituição. Tem que parar de desmatar e queimar a floresta. Tem que haver um consenso entre as comunidades indígenas e não indígenas para cuidar da Amazônia. Precisamos nos unir e entrar em consenso”, defende. Sem isso, ele não enxerga a possibilidade de provisão de serviços ambientais prestados pela floresta como água limpa, ar puro, equilíbrio climático e proteção da biodiversidade entre tantos outros bens comuns. Os efeitos da crise climáticas na região, segundo ele, são perceptíveis. “Ou chove muito ou chove pouco”, observa ao destacar que incêndios e desmatamento estão contribuindo para agravar o cenário.

Retirada de garimpeiros invasores da Terra Yanomami é crucial

Ao completar recentemente 30 anos de demarcação com grande celebração por essa conquista histórica, o garimpo ilegal representa o principal problema enfrentado na Terra Yanomami. O líder indígena explica que junto com esse movimento que reúne mais de 20 mil garimpeiros vieram ameaças de morte, desmatamento e contaminação dos rios por mercúrio. Os impactos são graves na saúde da população, sobretudo de crianças e idosos, e se somam a outros fatores preocupantes como alcoolismo, prostituição, abuso sexual e uso de drogas.

De acordo com o relatório Yanomami sob ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo, lançado em abril, o garimpo ilegal na Terra Yanomami cresceu 3.350% de 2016 a 2020. Nesse contexto de conturbações, “cresceu todo tipo de conflitos e violação de direitos do povo Yanomami e o aumento de doenças como malária, diarreia, tuberculose, câncer e desnutrição”, denuncia o líder indígena.

Segundo o relatório, 273 comunidades Yanomami estão afetadas pelo garimpo ilegal, envolvendo 16.000 pessoas, 56% da população total. A maior Terra Indígena do Brasil (tem 96.650 quilômetros quadrados) conta com 350 comunidades, com uma população de aproximadamente 29 mil pessoas, distribuída entre os estados do Amazonas e de Roraima.

Dário destaca que todas as autoridades já foram acionadas, dentre as quais, o Ministério da Justiça, a Funai e o Ministério Público Federal. Ele recorda que o Supremo Tribunal Federal já acionou o governo federal para promover a retirada dos invasores do território, mas até agora isso não aconteceu, com exceção de algumas intervenções pontuais, insuficientes para resolver o problema. “Enquanto não acontecer uma grande operação para a desintrusão, o garimpo ilegal não vai acabar.”

Por conta da própria mobilização da organização indígena e de um trabalho em redes de parcerias, têm sido realizados sobrevoos na Terra Yanomami para monitoramento do processo de ocupação ilegal dos garimpeiros, com mapeamento da extensão dos territórios invadidos e documentação por meio de fotos e produção de relatórios. “Fazemos isso para mostrar ao governo e à sociedade o que está acontecendo. Infelizmente, muita gente está apoiando os garimpeiros e isso é grave porque o garimpo só traz impactos negativos para a floresta e para os povos indígenas. Nós somos contra essa atividade que também é proibida pela legislação brasileira.”

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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