#RioéRua – a segunda revolta da vacina

O castelo mourisco da Fiocruz em Manguinhos: monumento à ciência desenvolvido por Oswaldo Cruz e um legado para o Rio (Foto: Leonardo Oliveira/Fiocruz)

Com a ciência sob ataque em meio ao desastre sanitário da covid-19, é hora da cidade e do país reverenciarem Oswaldo Cruz e seu legado

Por Oscar Valporto | ODS 11ODS 3 • Publicada em 14 de setembro de 2020 - 09:53 • Atualizada em 19 de setembro de 2020 - 11:56

O castelo mourisco da Fiocruz em Manguinhos: monumento à ciência desenvolvido por Oswaldo Cruz e um legado para o Rio (Foto: Leonardo Oliveira/Fiocruz)

Seis meses sem aglomeração, sem roda de samba, sem churrasco com os amigos, sem conversa fiada no balcão do boteco. Tudo isso já seria suficientemente ruim, se a situação não fosse trágica: mais de 130 mil mortos e acima de quatro milhões de infectados pelo vírus. Para os brasileiros, as melhores notícias nesses dias são dos avanços da ciência em direção a uma vacina contra a covid-19 já que a maioria está conformada com o fracasso do país em qualquer contenção da pandemia, um desserviço à nação liderado pelo terror das emas do Alvorada. Mas, na semana passada, em mais um ataque à saúde de seus compatriotas, o ignorante inquilino do Planalto deu uma ajudinha ao movimento anti-vacina, uma das pragas modernas, alimentada pelas mentiras e desinformação das redes sociais. “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, disse o ex-capitão.

Mesmo que não estivéssemos em emergência sanitária, declarada oficialmente pelo próprio governo, a declaração já seria gravíssima: no ano passado, pela primeira vez (pelo menos, desde 1994, quando há dados registrados no Ministério da Saúde), o Brasil não conseguiu alcançar a meta de vacinar 95% do público-alvo em nenhuma das 15 vacinas do calendário público. Desde 2016, os índices de cobertura vacinal vêm caindo e o país registrou o reaparecimento de surtos de doenças que estavam praticamente erradicadas no país como o sarampo e a febre amarela. É um fenômeno mundial: surtos de sarampo pipocaram em países europeus; nos Estados Unidos, onde a doença chegou a ser considerada eliminada em 2000, o estado de Nova York chegou a decretar, em 2019, vacinação obrigatória nos bairros mais afetados.

Já contei aqui neste #RIoéRua sobre a Revolta da Vacina de 1904 – movimento contra a iniciativa de Oswaldo Cruz de obrigar a população a se vacinar contra a varíola aqui no Rio de Janeiro, capital federal até 1960. Nunca ficou claro como o governo pretendia aplicar a lei, revogada menos de um mês após a promulgação como conseqüência da revolta. Mesmo assim, foi mantida a exigência de atestado de vacinação exigência para contratação em empresas públicas e privadas, matrícula em escolas públicas, hospedagem em hotéis, alistamento militar. Muita gente começou a se vacinar, apesar das resistências persistirem. Em 1904, aproximadamente 3500 pessoas morreram de varíola no Rio de Janeiro; em 1906, foram apenas nove. Mas, em 1908, houve novo surto de varíola na cidade, com mais de seis mil mortos. Desta vez, a vacina pegou: cariocas fizeram fila para ser vacinados na Policlínica de Botafogo, um dos lugares onde Oswaldo Cruz desenvolvia suas pesquisas, que até hoje funciona, ao lado do Morro dos Pasmado.

Prédio da Policlínica de Botafogo: há mais de 100 anos, fila para vacina depois de nova epidemia de varíola (Foto: Reprodução/Google Street View)
Prédio da Policlínica de Botafogo: há mais de 100 anos, fila para vacina depois de nova epidemia de varíola (Foto: Reprodução/Google Street View)

A varíola foi o último grande desafio de Oswaldo Cruz na chefia do Departamento Geral de Saúde Pública (correspondente ao Ministério da Saúde), que assumiu em 1903, com apenas 31 anos. Formado pela Faculdade Nacional de Medicina, com especialização em infectologia e sorologia no famoso Instituto Pasteur em Paris, ele recebeu como missão enfrentar as maiores pragas da saúde no então Distrito Federal: a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, doenças em proporções endêmicas que assolavam o Rio de Janeiro, causadas pelo péssimo saneamento da cidade. <

A febre amarela foi praticamente erradicada após Oswaldo Cruz promover o extermínio, de casa em casa, aos mosquitos transmissores numa época quando muitos duvidavam que o insetos eram responsáveis pela doença. As mortes na cidade passaram de pouco mais de mil, em 1902, para zero em 1909. Antes da varíola, o DGSP combateu com sucesso a peste bubônica: promoveu vacinação, sem polêmica, nas áreas mais infectadas, tratou os doentes com soro fabricado no Instituto Manguinhos – o futuro Instituto Oswaldo Cruz – e botou a população para caçar ratos. O governo pagava pelos ratos capturados. Em um ano, o número de casos caiu drasticamente.

Casa de Oswaldo Cruz, em estilo neomourisco, na praia de Botafogo: ponto de encontro de cientistas (Reprodução)
Casa de Oswaldo Cruz, em estilo neomourisco, na praia de Botafogo: ponto de encontro de cientistas (Reprodução)

O Rio de Janeiro deve, portanto, muito à ciência e a Oswaldo Cruz: jamais seria Cidade Maravilhosa se continuasse um epicentro de doenças, apelidada de “túmulo dos estrangeiros”. Foi o sanitarista quem transformou o modesto Instituto Federal de Sorologia no internacionalmente conhecido Instituto Oswaldo Cruz; foi ele o responsável pela construção  do Pavilhão Mourisco, joia da arquitetura carioca, projeto do arquiteto português Luiz Moraes. O mesmo Moraes fez o projeto da ampla casa onde Cruz morava com a família – mulher e cinco filhos – na Praia de Botafogo, perto da esquina com a Rua São Clemente, no mesmo estilo mourisco. Era um local de encontro de cientistas que tinha até um laboratório de fotografia, hobby do cientista.

Com Oswaldo Cruz à frente da DGSP, o projeto científico do instituto – criado em 1900 na antiga Fazenda Manguinhos – ganhou corpo, as construções dos novos pavilhões foram acelerados e o castelo, imaginado com um palácio para a ciência, começou a ser erguido. Oswaldo Cruz deixou o departamento em 1909, após viajar por todo o país para orientar no enfrentamento de doenças e estabelecer regras sanitárias. Ficou apenas como diretor já então Instituto Oswaldo Cruz, como havia sido batizado no ano anterior: antes de deixar o cargo, em 1915, teve tempo para ajudar no combate à malária e à febre amarela na Amazônia e reforçar as pesquisas no instituto para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos.

O Rio de Janeiro homenageou Oswaldo Cruz de muitas formas: em 1917, após sua morte precoce aos 44 anos, a modesta estação Rio das Pedras, bem perto de Madureira, foi batizada com seu nome. Em pouco tempo, todo o bairro em volta passou a se chamar Oswaldo Cruz – ali, nasceu a Portela e uma linhagem de bambas que também ajudam a perpetuar o nome do cientista. Também pouco depois de sua morte, a então principal conexão entre as praias do Flamengo e de Botafogo também foi batizada de Oswaldo Cruz e, assim, ruas em todas as capitais do país, hospitais em todas as regiões, escolas por toda parte.

Mais do que nunca esse Brasil, vítima de um desastre sanitário de ainda incalculável, precisa reverenciar Oswaldo Cruz – – e a ciência, as vacinas, a Fiocruz, o SUS. A vacina contra a covid-19 vai chegar, mais cedo – tomara – ou mais tarde. Nestes tempos estranhos, poderemos ver os terraplanistas, os negacionistas da emergência climática, os haters das redes sociais e os bolsonaristas em geral  promoverem uma segunda revolta da vacina. É melhor a gente já ir se preparando

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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