Ônibus superlotado com passagem cara: está previsto nos contratos

Ônibus lotado em Brasília: análise de contratos mostra que problemas como superlotação e alto custo das passagens começa na licitação (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Estudos de três institutos revelam que falhas desde os editais de licitação levam a sistema de transporte ruim, desconfortável, desigual e poluente

Por Oscar Valporto | ODS 11ODS 9 • Publicada em 24 de agosto de 2020 - 09:33 • Atualizada em 28 de agosto de 2020 - 11:20

Ônibus lotado em Brasília: análise de contratos mostra que problemas como superlotação e alto custo das passagens começa na licitação (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Ônibus superlotados, em condições precárias de manutenção, passagens caras, horários imprevisíveis, frota antiga, áreas abandonadas pelo sistema: os passageiros dos ônibus nas grandes cidades brasileiras colecionam queixas sobre a falta de conforto e de segurança. “As muitas falhas do transporte coletivo rodoviária começam pelas muitas falhas nas licitações das linhas de ônibus”, constatou Rafael Calabria, coordenador de Mobilidade do Idec (Instituto de Brasileiro de Defesa do Consumidor) no webinar de lançamento de estudos para analisar as características da contratação do serviço de transporte público por ônibus nas 12 capitais mais populosas do Brasil.  “Os trabalhos mostram claramente as fragilidades dos contratos que são a base para o serviço ruim oferecido aos usuários”, acrescentou Calabaria, que coordenou o debate.

Os estudos foram desenvolvidos pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) e o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (ICS). Foram analisados os contratos de licitação em capitais de estados das cinco regiões do país:  Recife (PE), Fortaleza (CE) e Salvador (BA), no Nordeste; Manaus (AM) e Belém (PA), no Norte; Goiânia (GO) e Brasília (DF), no Centro-Oeste; São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG), no Sudeste; e Porto Alegre (RS) e Curitiba (PR) na Região Sul. “Todos os problemas de desconforto que os usuários sofrem diariamente começam nos contratos, que não preveem qualquer garantia de oferecimento de um serviço de qualidade”, afirmou Kelly Fernandes, analista do Programa de Mobilidade Urbana do Idec, lembrando que o direito ao transporte está previsto na Constituição e é fundamental para o acesso a outros direitos: à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer.

Nos estudos, foram avaliados 34 itens dos editais de licitação. As falhas mais importantes detectadas estão relacionadas à remuneração e ao financiamento do sistema de ônibus, à duração dos contratos, ao controle de poluentes, ao monitoramento da qualidade do serviço, à falta de transparência e às exigências sobre garagens. “Precisam ser inseridos novos parâmetros nessas concessões que resultem em sistemas mais eficientes, limpos e inclusivos. Os contratos não podem ser mais um obstáculo nesse processo. Eles precisam na verdade incentivar isso “, destacou Beatriz Rodrigues, coordenadora de Transporte Público do ITDP, durante o webinar.

Tabela sobre remuneração e financiamento em 12 capitais: a quantidade de passageiros transportada é a principal - por vezes, única - fonte de receita (Arte: Idec)
Tabela sobre remuneração e financiamento em 12 capitais: a quantidade de passageiros transportada é a principal – por vezes, única – fonte de receita (Arte: Idec)

Em todas as capitais – com exceção de São Paulo, com contrato assinado no ano passado – , a fórmula das prefeituras para remunerar as empresas concessionárias pela operação dos serviços de ônibus tem como fator principal a quantidade de passageiros transportada. “Esse modelo de remuneração incentiva as empresas a transportarem o máximo de passageiros por veículo e, a reduzir sempre que possível, o número de veículos em para garantir maior lucro. O resultado desta equação previsto no contrato de licitação é a circulação de ônibus superlotados e também a falta de veículos em áreas menos lucrativas”, enfatizou Kelly Rodrigues. “Agora na pandemia ficou evidente que este formato é absolutamente insustentável. Com a queda da demanda, muitas empresas de ônibus viram sua receita diminuir brutalmente”, explicou Rafael Calabria, coordenador de Mobilidade do Idec.  “As cidades brasileiras não têm contratos que estejam preparados para lidar com eventuais crises. Nenhum dos contratos apresentam cláusulas que permitam o poder público renegociar os termos perante a cenários de crise”, acrescentou Kelly.

Os estudos também apontaram o financiamento centrado unicamente na tarifa como outro incentivo à cobrança de uma passagem cara por serviço ruim aos usuários. Segundo os três instituitos, existem outras maneiras de financiar o sistema como, por exemplo, com recursos públicos (subsídios); explorações comerciais e publicitária em veículos, pontos e terminais; e tributação ou recursos de outros setores, como taxação sobre a gasolina ou estacionamento em vias públicas. “Esse tipo de financiamento gera um ciclo vicioso que resulta em baixa qualidade e alto preço da tarifa. O transporte público deve ser financiado pelo transporte individual e essa gestão precisa ser feita pelo Poder Público”, frisou Beatriz Rodrigues, do ITDP.

Análise da duração dos contratos nas capitais: longa duração reduz concorrência e prejudica qualidade do serviço (Arte: Idec)
Análise da duração dos contratos nas capitais: longa duração reduz concorrência e prejudica qualidade do serviço (Arte: Idec)

A longa duração dos contratos é outro obstáculo para a prestação de um serviço de qualidade. Entre as 12 cidades avaliadas, nove apresentam extensão superior a 15 anos, sendo que em Salvador chega a 25 anos e no Rio de Janeiro e em Goiânia são potencialmente prorrogáveis até depois de 2045.   ” Esse contratos muito longos dificultam que sejam feitas alterações para atender a novas exigências ambientais e tecnológicas ou mesmo a necessidade mudanças estruturais nos padrões de mobilidade. Contratos também prejudicam a participação de novas empresas no mercado; as mesmas empresas acabam se perpetuando. Isso reduz a concorrência e a competitividade e, consequentemente, a oferta de um serviço melhor com custo menor”, argumentou o coordenador da área de Emissões do Iema, David Tsai.

Análise do monitoramento do sistema em 12 capitais: especialistas cobram transparência (Arte: Idec)
Análise do monitoramento do sistema em 12 capitais: especialistas cobram transparência (Arte: Idec)

Tsai destacou outro problema nos contratos: a falta de acesso a informações contratuais, dados operacionais e de custo, e de mecanismos que favoreçam a participação e o controle social. Apenas na metade das cidades analisadas, foram encontrados todos os documentos abertos. Nas outras seis, estavam disponíveis somente documentos parciais;  dados complementares precisaram ser requeridos diretamente aos representantes dos municípios ou via Lei de Acesso à Informação. “A transparência é essencial para garantir o acompanhamento e monitoramento das ações, tanto por parte dos gestores, como por parte da sociedade civil”, explicou o coordenador do Iema.

Análise da idade da frota prevista nas licitações: empecilho para veículos menos poluentes (Arte: Idec)Análise do monitoramento do sistema em 12 capitais: especialistas cobram transparência (Arte: Idec)
Análise da idade da frota prevista nas licitações: empecilho para veículos menos poluentes (Arte: Idec)

Os três estudos apontam ainda que 10 capitais preveem o uso de ônibus menos poluentes, estimulando o uso de motores mais modernos e combustíveis renováveis de origem vegetal (biodiesel). Entretanto, destas cidades, somente Goiânia e São Paulo estabeleceram metas claras de redução de emissão por ônibus nos editais de licitação, determinando os tipos de gases que deveriam ser monitorados. “Os editais precisam garantir oportunidades que viabilizem a redução dos impactos negativos dos transportes à saúde das pessoas e ao meio ambiente. A incorporação de veículos elétricos nas frotas, por exemplo, é um caminho que vai ao encontro da discussão sobre qualidade do ar”, afirmou Beatriz Rodrigues, do ITDP Brasil.

Os especialistas destacam outra questão crucial nas licitações para as falhas no sistema: a exigência de que as empresas sejam proprietárias de garagem para poder concorrer. “Esse critério prejudica muito a competitividade, que deveria ser o objetivo principal da licitação para garantir a escolha das propostas com melhor oferta de serviço e menor custo”, argumentou Rodrigo Calabria.  O prazo para aquisição de garagens, o volume de recursos e a disponibilidade de terrenos impedem a participação de mais empresas e restringe a concorrência. Na maioria das cidades analisadas, o edital exige que já na proposta comercial ou técnica a empresa interessada apresente o compromisso de disponibilidade de imóvel.

Rodrigo Calabria, David Tsai, Kelly Fernandes, Silvana Zioni e Beatriz Rodrigues no webinar: especialistas apontam falhas nos contratos (Foto: Reprodução)
Rodrigo Calabria, David Tsai, Kelly Fernandes, Silvana Zioni e Beatriz Rodrigues no webinar: especialistas apontam falhas nos contratos (Foto: Reprodução)

Convidada para o webinar, a urbanista Silvana Zioni, professora da Universidade Federal do ABC, destacou que a crise gerada pela pandemia serviu para “revelar com clareza o contexto estrutural problemático” do transporte público urbano no país. “O Poder Público precisa assumir, verdadeiramente, a gestão e o planejamento do sistema de transporte. No Brasil, até hoje, o transporte público vem sendo administrado sob a lógica privada – o que é natural porque as autoridades públicas simplesmente transferiram a gestão para as empresas”, afirmou a urbanista e professora, para quem a discussão imposta pela pandemia deve apontar para um novo modelo. “O sistema de transporte, a circulação urbana em geral, deve servir para aumentar as oportunidades e reduzir as desigualdades”, frisou Silvana Zioni.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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