ODS 1
#RioéRua: a vingança do Morro do Castelo
Documentário “O desmonte do Monte” guia andança pelo passado carioca. Demolição do Morro do Castelo atingiu 460 imóveis.
Desde que voltei ao Rio, depois de oito anos de Bahia, trabalho basicamente no Castelo, um sub-bairro do Centro, em área roubada à Baía de Guanabara, com a terra retirada do desmonte do Morro do Castelo. Quando foi aberta no começo do século 20, a Avenida Beira Mar, por onde caminho diariamente, ficava mesmo no aterro construído então à beira-mar – hoje é preciso subir nos andares mais altos para ver as águas da baía. Mas voltei a pensar nisso tudo porque está em cartaz, em circuito alternativo, “O desmonte do Monte”, documentário de Sinai Sganzerla, que reconta o bota-abaixo do Castelo, morro onde a história urbana do Rio de Janeiro começou em 1565: no alto, ficavam, além da fortaleza militar, o castelo que deu nome ao morro, a Casa do Governador, a Cadeia, a sede da Câmara, Igreja de São Sebastião, padroeiro, e a Igreja e Colégio dos Jesuítas, aliados de Estácio de Sá, fundador da cidade, contra os franceses.
Por quase 200 anos, o Morro do Castelo foi o centro do poder do Rio de Janeiro: ficavam ali os poderosos do estado e da igreja. Em 1743, foi construída a Casa dos Governadores, hoje o conhecido Paço Imperial, que passou a ser residência e local de trabalho do então Conde de Bobadella, último governador da ainda capitania, antes de o Rio virar capital da colônia. Em 1759, a Ordem dos Jesuítas foi expulsa de Portugal e suas colônias, Brasil, inclusive. No Império, foi deixando de ser nobre. Em 1811, temporais de verão provocaram deslizamentos e dezenas de vítimas. Quem podia deixou o Castelo. Boa parte da fortaleza foi derrubada para evitar novos deslizamentos. O morro foi se tornando moradia de trabalhadores, escravos libertos, lavadeiras, gente modesta, como mostra o filme de Sinai Sganzerla com impressionante pesquisa pictográfica.
O desmonte do monte começou com a abertura, na administração Pereira Passos, em 1904, da Avenida Central – depois Rio Branco – que roubou a parte com acesso pela antiga Ladeira do Seminário: neste trecho, foram construídos os prédios da Biblioteca Nacional, da Escola Nacional de Belas Artes (hoje Museu de Belas Artes) e do Supremo Tribunal Federal (hoje Centro Cultural da Justiça Federal). O documentário se detém ali para contar a impressionante história dos subterrâneos do Morro do Castelo, que eu já conhecida das crônicas/reportagens de Lima Barreto, e a lenda do tesouro dos jesuítas. As escavações da obra descobriram um túnel e salas de alvenaria. A lenda do tesouro – que teria sido deixado pelos jesuítas no subterrâneos do Castelo – ganhou força. A rede de galerias subterrâneas existia, mas não há registro de tesouro.
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Veja o que já enviamosSem esse atrativo, o Morro do Castelo voltou a ser encarado pelas autoridades como um estorvo social, cheio de moradias populares, e higiênico, considerado prejudicial à saúde dos cariocas porque dificultava a circulação dos ventos e impedia o livre escoamento das águas, desde o tempo de Dom João VI. EM 1920, o prefeito Carlos Sampaio decidiu botar abaixo o morro inteiro. O arrasamento do Castelo começou com escavadeiras e terminou a golpes de jatos d’água. A demolição do Morro do Castelo atingiu 460 imóveis – a desapropriação ocorreu sem qualquer reclamação – e removidos quase 5 mil moradores das vilas, casarões e cortiços. Para destruir um pedaço da história da cidade, Carlos Sampaio deixou a prefeitura falida.
Agora, um século depois, é impossível imaginar a cidade com o Morro do Castelo. Em uma das suas encostas, de frente para o mar, ficava a Igreja de Santa Luzia, durante muito tempo isolada da cidade pelo morro. Hoje, já não há sinal de mar ou morro em volta da igreja. No final do século XIX, a partir da Santa Luzia, o acesso mais próximo para o Morro do Castelo, era seguindo a praia de Santa Luzia, passando pelo Hospital da Santa Casa, que ainda existe, e subindo a Ladeira da Misericórdia – que mantém, em seus restantes 30 metros, calçamento semelhante ao da época do desmonte, único vestígio do Castelo no Século XXI. Na vizinha Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso, estão três retábulos e um púlpito da antiga igreja do Colégio dos Jesuítas. A subida principal, porém, era perto da Igreja de São José ao lado da então Câmara dos Deputados – o Palácio Tiradentes, hoje sede da Assembleia Legislativa.
As igrejas e a ladeira são o que restam para lembrar do Morro do Castelo numa caminhada pelo Centro do Rio – muito melhor é ver o filme de Sinai Sganzerla que entra em sua terceira semana agora em cinco salas ( Cândido Mendes, Museu da República, Cine Santa, Barra Point, Estação Net Rio); eram três no lançamento. O desmonte do monte não ajudou em nada o Centro do Rio: a Esplanada do Castelo reúne aqueles edifícios sem graça dos ministérios da Fazenda e do Trabalho, os prédios sempre vergonhosamente luxuosos do Judiciário e uma enorme área abandonada como se a história carioca se vingasse da barbaridade feita contra o morro onde a cidade começou.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade
Na Esplanada do Castelo e nos aterros construídos na sequência foi realizado nas décadas seguintes talvez o primeiro laboratório da arquitetura modernista no mundo – uma Brasília avant la lettre. Destacam-se o icônico Palácio Gustavo Capanema, mas também as belas sedes do IRB e da ABL (o Petit Trianon e o Edifício Austregésilo de Athayde), o Aeroporto Santos Dumont,… O ideal seria que o desmonte nunca tivesse ocorrido (pelo apagamento da memória do local e a remoção dos moradores), mas me parece que o conjunto construído no lugar foi na verdade uma substituição muito interessante do ponto de vista arquitetônico e urbanístico. As demolições de morros e aterramentos sucessivos no Centro do Rio foram fundamentais para a sobrevivência econômica da região. Do contrário, sem que o capital imobiliário pudesse criar novas frentes no Centro, o núcleo econômico da cidade teria provavelmente migrado de maneira definitiva para a Zona Sul, em processo semelhante ao que aconteceu na história recente de São Paulo (abandono do Centrão em favor da Avenida Paulista e subsequente expansão para oeste/sudoeste). Pode ser feita uma crítica pertinente à ocupação da Esplanada no que diz respeito à falta de uso misto do solo, que contribuiu para a consolidação do Centro como bairro de trabalho, consequentemente vazio durante a noite e nos fins de semana. Mas esperar que os modernistas tivessem pensado nisso talvez seja anacrônico. Enfim!
Muitos boas suas cronicas sobre a cidade, parabens
Malu Heilborn
Muito interessante, eu não desprezo o desmonte, se bem que provavelmente eu não o faria, mas o quê mais me entristece é saber que tudo que foi feito no Centro serviu para o seu esvaziamento, vale lembrar que até Pereira passos o Centro é o bairro mais povoado do Rio, o primeiro prédio residencial de luxo foi na cinelândia, e afastar a praia do centro colaborou que a elite também se afastasse.
Gostei mt do texto.Adoro td sobre o Rio Antigo.
Adorei essa parte: “os prédios sempre vergonhosamente luxuosos do Judiciário”. Realmente, o que mais atrasa essa país é essa categoria que nada produz, a não ser contendas calculadas.
Mas pra mim, paulista, o Rio é maravilhoso, mesmo hoje, tão abandonado à própria sorte. Como o carioca vota mal, caraca!
Disse tudo, Amigo Bandeirante !!!