As mentiras da Dona Barata e o teto de gastos

Arte Claudio Duarte

O que uma cantiga de roda muito antiga pode nos ensinar sobre responsabilidade social

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 1ODS 2 • Publicada em 22 de novembro de 2022 - 09:26 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 14:48

Arte Claudio Duarte

“A barata diz que tem sete saias de filó. É mentira da barata, ela tem é uma só. Ra, ra, ra, ro, ro, ró, ela tem é uma só!”. Hoje, passando por uma praça perto de casa ouvi, mais uma vez, essa tradicional cantiga de roda. Um grupo de crianças pequenas cantava e ria das agruras da barata. A música é muito antiga e o autor desconhecido, mas o tema segue sendo mais atual do que nunca. Afinal de contas, que sociedade consumista é essa que obriga uma pobre barata a inventar que tem sete saias de filó só para ficar bem na fita? Uma versão da canção, cantada na minha infância, era ainda mais cruel: “A barata diz que tem sete saias de balão. É mentira, ela não tem nem dinheiro pro sabão. Ra, ra, ra, ro, ro, ró, nem dinheiro pro sabão”.

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Confesso que nunca entendi direito o que eram as “saias de balão”, mas a família da barata não ter dinheiro nem para comprar sabão me deixava triste. No tempo em que eu brincava de roda numa vila do Engenho Novo, subúrbio da Central, ninguém falava muito em teto de gastos e responsabilidade fiscal. Mas havia a história de um bolo hipotético. Um homem com rosto bolachudo dizia na televisão que era preciso esperar o bolo crescer antes de dividir. Eu entendia isso. Afinal de contas, além de ter dinheiro para o sabão, minha mãe fazia bolo de vez em quando e, realmente, era preciso esperar ele crescer e esfriar antes de comer. Mas não demorava tanto tempo.  Já se passaram mais de 50 anos e nada de o bolo crescer e ser dividido: “A barata diz que tem um sapato de veludo. É mentira da barata, o pé dela é peludo. Ra, ra, ra, ru, ru, ru, o pé dela é peludo!”.

Há duas semanas venho lendo nos jornais declarações apavoradas de economistas e analistas sobre um furo no teto de gastos. Dizem que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e a equipe de transição do novo governo dão sinais de irresponsabilidade fiscal. Fui reler as entrevistas do Lula e do Geraldo Alckmin para ver se achava sinais claros de irresponsabilidade. Não encontrei. Eles realmente falam em furar o teto para garantir os R$ 600 do Bolsa Família e o adicional de R$ 150 para famílias com crianças de até 6 anos de idade. Não me parece irresponsável, muito pelo contrário. Sobre a questão fiscal, até onde entendi, há um conjunto de propostas sendo analisadas pela equipe de transição que, diga-se de passagem, é composta por figuras respeitadas no cenário econômico, de diferentes correntes de pensamento. Nenhuma delas que possa ser classificada como irresponsável. Além disso, nos seus dois primeiros governos, Lula mostrou que não era afeito a gastar mais do que arrecadava. De lá para cá, o que mudou foi a vida da “blattodea”, nome científico da barata: “A barata diz que tem uma cama de marfim. É mentira da barata, ela tem é de capim. Ra, ra, ra, rim, rim, rim, ela tem é de capim”.

O que o presidente Lula vem fazendo, com alguma ênfase, verdade, é deixar claro que as prioridades mudaram. No fundo, no fundo, Lula está sendo responsável por cumprir com algum rigor os acordos assumidos pelo Brasil e mais 194 países, em 2015. Pouca gente lembra disso, mas o país assinou um compromisso formal, referendado pelo Congresso, de pôr em prática, até 2030, os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). E os dois primeiros objetivos são, exatamente, erradicar a pobreza (ODS 1) e erradicar a fome (ODS 2). O documento não fala em pedir uma quentinha no restaurante e levar para o mendigo na praça. Nem recomenda juntar as moedas que balançam no bolso na classe média e entregar para uma criança descalça. O texto exige a erradicação da pobreza e da fome, no Brasil e no mundo. É possível? Não sei. Mas alguém se comprometeu com isso. Assim como a Agenda 2030 prevê que, daqui a 8 anos, todos os brasileiros tenham acesso a saúde e educação de qualidade (ODS 3 e 4). Repetindo: saúde e educação de qualidade para TODOS e não apenas para quem pode pagar um plano de saúde: “A barata diz que tem um anel de formatura. É mentira da barata, ela tem é casca dura. Ra, ra, ra, ru, ru, ru, ela tem é casca dura”.

Um dado curioso é que na lista dos ODS, composta por 17 objetivos gerais e 165 metas específicas, não há menção a teto de gastos, alertas sobre o crescimento do bolo ou qualquer coisa dessa ordem. O mais próximo que se chega disso são os ODS 8 e 12. O primeiro fala em trabalho digno e crescimento sustentável. O segundo trata de assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis. Talvez seja só uma questão de ponto de vista, como muitas vezes acontece. Há quem acredite que a “Cuca vem pegar”. Há quem pense que “A barata diz que tem” é só uma cantiga de roda: “A barata diz que tem o cabelo cacheado. É mentira da barata, ele tem coco raspado. Ra, ra, ra, ro, ro, ró, ela tem coco raspado”. Quem sabe?

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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