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8 de Janeiro: cicatriz dos atos golpistas ameaça Esplanada como espaço democrático
Um ano depois dos ataques aos Três Poderes, segurança reforçada esvazia tradicional ponto de manifestações no Distrito Federal
O jornalista Felipe Igreja, da Rádio CBN, estava almoçando sossegado em casa, na tarde do domingo, 8 de janeiro de 2023, quando a esposa apontou o noticiário da Globo News e disse “Olha, vão te acionar, vão te chamar”. Não deu cinco minutos e o telefone tocou; e Felipe, que estava de folga, foi convocado às pressas para reforçar a cobertura da emissora da onda de vandalismo que, àquela altura, tomava conta da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e se aproximava, de forma ameaçadora e sem controle, da Praça dos Três Poderes, onde ficam o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. “Quando a gente chegou na Esplanada, que a gente viu aquela situação, é difícil dizer um sentimento assim… eu fiquei perplexo, porque nunca tinha visto daquela dimensão, os prédios públicos totalmente tomados, uma grande horda, uma grande confusão, nenhum policiamento, tudo aberto, e as pessoas atacando os prédios, vândalos destruindo tudo…”, resume o repórter.
O fotógrafo Jefferson Rudy, da Agência Senado, foi o primeiro profissional de imagem a conseguir entrar no Congresso Nacional, mas apenas quando boa parte dos vândalos já havia sido retirada pelas forças de segurança. “Quando eu entrei, ainda senti muito cheiro de pólvora, muita fumaça, o olho ardendo… destruição total. Eu nunca tinha visto coisa igual. Em trinta anos de profissão, muitos anos de Correio Braziliense, Folha de São Paulo, cobrindo cidades, o dia a dia, o cotidiano, nunca vi coisa igual. As pessoas estavam ali orquestradas. O meu medo era que o fascismo tomasse conta do nosso país”, conta ele, por áudio do WhatsApp, e, mesmo um ano depois, ainda é possível notar comoção em sua voz.
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Outra a ser uma das primeiras a chegar à sede do parlamento foi Luciana Rodrigues, que, naquele 8 de Janeiro, estava como secretária interina de Comunicação Social do Senado. “Não dá para descrever, as imagens não descrevem o que eu pude presenciar ali. Eu tenho 25 anos de Senado Federal, eu já passei por situações de crise, em que houve manifestações contundentes e quebra de vidraças, mas aquilo que eu vi era um cenário de guerra mesmo. Eram restos de vidro por toda parte, o Salão Azul (onde fica a entrada para o Plenário do Senado), alagado. Mesas da época da monarquia destroçadas, o piso do Salão Negro (onde ocorrem as principais solenidades do Congresso) destruído, as mangueiras de incêndio espalhadas depois que foram usadas pelos vândalos para intimidar a ação da polícia. Absolutamente todos os vidros (do Plenário) quebrados”.
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O depoimento, também ainda bastante consternado de Luciana, chama a atenção para o fato de que o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF, vistos por quase toda a população apenas como centro de poder e decisões, são, além disso, o local de trabalho de milhares de brasileiros que passam ali boa parte de suas vidas. “A minha sensação era de um total inconformismo, tristeza, é você se sentir com a sua própria casa invadida. Acho que não é um drama dizer que a sensação foi a de ser roubada, de ser invadida em seu espaço de trabalho”, resume a jornalista e servidora pública.
Passado um ano daquele que foi, depois do golpe militar de 1964, provavelmente o ataque mais feroz à democracia brasileira, é grande a cicatriz no Estado de Direito, e com as imagens da destruição ainda vivas na memória, alguns temem que os atos criminosos tenham intimidado as pessoas a se manifestar. “Perdemos a Esplanada!”, desabafa a também jornalista Renata Gonzaga, que cobre manifestações no coração da capital do país há mais de 30 anos, desde os caras-pintadas, que ajudaram a derrubar Fernando Collor. “Foi uma mancha na Esplanada, espaço legítimo de manifestação, do morador de Brasília e de qualquer outra parte do país. Em 2023, nós não vimos nenhuma manifestação na Esplanada e eu tenho dúvidas se em breve a Esplanada se tornará palco novamente de alguma manifestação. Eu mesma não me vejo mais me manifestando, expressando minha posição política num lugar que foi manchado, depredado, tomado de assalto por pessoas sem nenhuma consciência democrática”, conclui Renata, que esteve, como cidadã, em manifestações na Esplanada contra o governo de Jair Bolsonaro.
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Veja o que já enviamosA jornalista exagera um pouco quando diz que “em 2023 nós não vimos nenhuma manifestação na Esplanada”, mas não passa tão longe assim da verdade. Dados obtidos pelo portal Metrópoles, via Lei de Acesso à Informação (LAI), apontam que ocorreram 134 manifestações na Esplanada dos Ministérios de janeiro a novembro de 2023. Só que em 2019 foram 363 protestos, o que representa uma queda de 63%, percentual que pode sofrer pequena alteração quando os números contabilizarem dezembro.
O advogado e analista político Melillo Dinis concorda que as pessoas estão com medo de se manifestar em locais públicos. “Só mesmo quem é manifestante profissional tem coragem de ocupar as ruas da mesma forma que no passado”. Mas para ele esse não é o único motivo. “A rua foi transportada para as redes sociais. A participação, a manifestação no campo das redes sociais e das antissociais, transfere para esse ambiente aquele conjunto de participações típicas do século passado, ou virada para este século. Isso acabou retirando, tanto da esquerda quanto da direita, esse espaço de frequência em campos que eram muito mais duros, porque ir para a rua é muito mais difícil, muito mais complicado do que fazer mobilização nas redes sociais”, argumenta.
Melillo cita como exemplo a explosão nos últimos anos de elementos virtuais de protesto, como abaixo assinado eletrônico e notas de repúdio no mesmo modelo, embora não enxergue muita eficácia nesses novos instrumentos. “As pessoas acreditam que isso traz alguma incidência para fora. Geralmente traz uma incidência para dentro. Ou seja, as pessoas que assim o fazem (que assinam abaixo assinados eletrônicos) tem a característica muito mais de dar identidade a um grupo, a uma proposta, do que mudar a realidade, mudar a posição de um deputado, de um governo, só com a publicação de uma nota”. Segundo o analista político, isso só acontece quando a “grita” vira ampla, geral e irrestrita, alcançando milhões de marcações nas redes sociais.
Medo da rua e concorrência das redes sociais
A opinião de Rudolpho Lago, colunista do Correio da Manhã e um dos mais experientes jornalistas políticos de Brasília, também caminha pelas redes sociais. “Após o advento da era das redes sociais, a esquerda nunca mais demonstrou a mesma capacidade de mobilização que já teve no passado. Os últimos tempos viram surgir uma militância de direita, que parece muito mais capaz de se utilizar dos instrumentos de mobilização via redes sociais, desde as manifestações de 2013. No caso da direita, porém, o propósito daquele ato de 8 de janeiro era golpista. E o golpe não se concretizou”.
Doutor em ciência política pela Universidade de Brasília, Leonardo Barreto considera o 8 de janeiro de 2023 “um vandalismo generalizado que pode ter tido ou não objetivos institucionais indiretos”. Mas não vê atos golpistas. “Não acho que houve tentativa de golpe stricto sensu. Mas um clima de insatisfação do lado perdedor com o resultado que acabou insuflando uma reação muito violenta, cujos líderes não tiveram vontade de coibir. Se havia ou não interesse desses líderes em criar um caos popular para levar a algum tipo de rompimento, aí eu não tenho condições de cravar. Vai caber à Justiça dizer”, afirma.
Tendo ou não sido uma tentativa real de golpe de estado, Luciana Rodrigues identifica estupidez e ignorância política no comando do vandalismo. “O que me deixava mais inconformada era ver que era o povo destruindo a sua própria representação, a incapacidade dessas pessoas que invadiram e cometeram esse crime brutal, a incompreensão delas sobre a representação política, o papel do Congresso Nacional, o quanto eles estavam agindo contra eles mesmos”, comenta a jornalista.
Sylvio Vasconcelos, editor-chefe do portal Congresso em Foco, concorda que, nos quatro anos de governo Bolsonaro, as pessoas de linha progressista ficaram com medo de se manifestar, e lembra o caso acontecido no Paraná em que um homem comemorava o aniversário em casa, com a bandeira do PT, e foi assassinado por um bolsonarista. Mas Sylvio não acha que “perdemos a Esplanada”. “Tanto a Esplanada (equivalente, em termos de local de manifestação, à Avenida Paulista, em São Paulo, e Candelária e Cinelândia, no Rio) quanto os outros espaços públicos, em outras grandes cidades brasileiras, continua aberta a manifestações. O que está ocorrendo é que a extrema direita se organizou nos últimos anos de uma tal forma que tem tido um predomínio na ocupação desses espaços”, explica.
Falhas e omissões
No dia a dia da Esplanada e da Praça dos Três Poderes, o 8 de Janeiro levou o Estado a redobrar os cuidados com a segurança nos prédios públicos. “Para entrar ficou mais difícil. No Congresso, por exemplo, os jornalistas tinham entrada mais franca, apenas com a identificação funcional e a credencial. Hoje tem que passar no raio X, tirar a mochila, computador”, observa Felipe Igreja, ressaltando que as medidas não têm atrapalhado o trabalho da imprensa. Em locais como o Senado e a Câmara dos Deputados, o raio X e o detector de metais são utilizados até mesmo em servidores identificados com o crachá funcional.
A segurança que atualmente sobra foi a mesma que faltou no dia do ataque dos vândalos. A atuação (ou omissão) das forças de segurança naquele episódio é alvo de investigações e inquéritos e, claro, de críticas contundentes de especialistas do setor, entre eles quem já comandou operações consideradas exitosas em situações de protestos que juntavam, inclusive, lados opostos. “Talvez tenha sido a ação (a de 8 de Janeiro) de descoordenação melhor executada na história da República do Brasil, talvez tenha sido premeditada. O MPF (Ministério Público Federal) e a PF (Polícia Federal) estão concluindo as investigações. Vamos aguardar. As decisões do STF estão em curso”, lembra a psicóloga e socióloga Márcia de Alencar, secretária de Segurança do Distrito Federal à época do impeachment de Dilma Rousseff, quando a Esplanada dos Ministérios foi dividida em dois lados: à esquerda, quem apoiava a presidente; e, à direita, quem pedia a sua saída. Contidos por muros, os dois grupos eram separados por um corredor onde se locomovia somente quem estava envolvido na operação.
Para a ex-secretária, o que houve no 8 de Janeiro, quando a Esplanada foi tomada por cerca de cinco mil pessoas, quantidade muito inferior a 2016 (ano do impeachment), “foi uma verdadeira sequência de falhas operacionais, com uma omissão absoluta das lideranças governamentais e comandos do Governo do Distrito Federal, desde os níveis estratégicos, táticos e operacionais das instituições do DF, que não consideraram os alertas da Polícia Federal e do MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública) junto aos dirigentes da capital da República. Logo o DF, o qual só justifica a própria existência para assegurar a segurança e proteção dos Três Poderes da República, suas respectivas autoridades e as embaixadas e seus embaixadores”.
Márcia de Alencar lembra que no mês anterior, em dezembro de 2022, houve dois avisos de que havia ameaça real de baderna e atentados em Brasília. No primeiro, um grupo inconformado com o resultado da eleição presidencial incendiou carros e ônibus na zona central da cidade, no dia da diplomação, pela Justiça Eleitoral, do presidente eleito. Posteriormente, dois homens foram presos e confessaram ter planejado um atentado com um caminhão taque ao Aeroporto de Brasília. Os dois estavam no acampamento em frente ao Quartel General do Exército, na capital federal, de onde saíram os vândalos de oito de janeiro.
A ex-secretária, que acompanhou CPI dos Atos Antidemocráticos na Câmara Legislativa do Distrito Federal e a CPI mista (deputados e senadores) de 8 de Janeiro, no Congresso Nacional, enumerou vários fatores que considera estranhos e que antecederam o ataque de vandalismo às instituições, entre eles a mudança do comando da secretaria de Segurança do DF no dia dois de janeiro, um dia após a bem sucedida e pacífica Operação da Posse Presidencial, e as férias não oficiais antecipadas do recém-empossado secretário, que viajou em seis de janeiro, dois dias antes dos ataques. O secretário era Anderson Torres, que pouco antes ocupava o cargo de ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Ele foi preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF, logo em seguida ao 8 de Janeiro. Também foram parar na prisão sete oficiais da Polícia Militar do DF, entre eles o comandante-geral e o subcomandante-geral da força, resultado da investigação sobre sua “omissão” e tentativa de “golpe” durante os ataques, conforme a Procuradoria-Geral da República. Essa mesma omissão já havia provocado o afastamento, por noventa dias, do próprio governador Ibaneis Rocha, apoiador de Bolsonaro. A ordem, dada ainda durante o 8 de janeiro, também foi de Alexandre de Moraes.
Controle sobre manifestações
Proposital ou não, o fracasso da operação de segurança no dia dos atentados fez com que o Governo do Distrito Federal apertasse o laço ao longo de 2023 no controle de manifestações. Para Cleber Soares, diretor do Sindicato dos Professores da Rede Pública do Distrito Federal e dirigente local da Central Única dos Trabalhadores (CUT-DF), o 8 de Janeiro significou uma oportunidade para o governo local incutir medo na população de se manifestar e buscar a desmobilização dos movimentos sociais e sindicais. De acordo com ele, foi uma justificativa, por parte do governo de Ibaneis Rocha, de uma prática que nos últimos anos vinha se concretizando, que era, segundo Cléber, impedir que as manifestações dos movimentos sociais e de trabalhadores pudessem fazer assembleias e outros atos na Praça do Buriti, que reúne os três poderes locais e fica no Eixo Monumental, pouco acima da Esplanada dos Ministérios.
Ele acusa o governo local “de colocar medo nos trabalhadores e trabalhadoras de participar das ações, das manifestações, das assembleias”. O sindicalista dá como exemplo uma caminhada que os professores fizeram durante uma greve no ano passado (2023). “Muita gente não foi, com medo da reação da Polícia. O governador Ibaneis sempre mobilizou, e continua mobilizando, um contingente inexplicável e desnecessário de policiais com o intuito de amedrontar a categoria, quando, inexplicavelmente, aquele povo que desceu a Esplanada (no 8 de Janeiro) não sofreu qualquer tipo de retaliação, não havia contingente suficiente para contenção”.
Rodrigo Rodrigues, presidente da CUT no DF, conta que é praticamente proibido fazer manifestação com carro de som na Esplanada sem que se tenha uma autorização expressa da segurança pública. “Do contrário, ameaçam multar ou apreender o veículo e prender o próprio motorista. Precisa de comunicação prévia e planejamento da manifestação”, conta o sindicalista, acrescentando que outras exigências foram intensificadas, “Uma delas é a proibição de carregar faixas e bandeiras com hastes, o que dificulta o aspecto visual das manifestações, com a alegação de que as hastes oferecem risco de segurança. Não há muita clareza, e nem há intenção da própria segurança pública em transmitir clareza sobre quais são os limites. Eles alegam alguns decretos, que a gente nunca consegue ter acesso à integralidade desses decretos, se eles têm validade ou não. E quem acaba julgando e tomando a decisão se pode ou não pode haver manifestação é o policial que está na rua acompanhando a manifestação e ele tem todo o poder de decisão sobre que rumo a manifestação pode ou não tomar, diante daquilo que ele julga”, critica o presidente da CUT regional.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública enviou uma nota por intermédio da assessoria de comunicação social informando que um decreto local criou a “Área de Segurança Especial (ASE) na região central de Brasília. Esta medida estipula que qualquer reunião ou manifestação a ser realizada nessa localidade deve ser previamente comunicada e registrada junto à Secretaria de Segurança, mediante procedimento presencial ou online”. Na nota, é frisado “que o Distrito Federal possui experiência na realização de grandes eventos, destacando-se pela eficiência no planejamento estratégico, na capacidade de mobilização de recursos e na coordenação logística, o que garante a segurança pública para cada ocasião”. A nota acrescenta que existe um centro integrado de operações de Brasília e por ele “realiza o acompanhamento de todos os atos ou eventos, mesmo na ausência de comunicação prévia. Esse monitoramento é feito de maneira integrada entre as forças de segurança do DF e outros trinta órgãos, além de instituições e agências governamentais locais e federais, com suporte de câmeras de videomonitoramento, em tempo real”.
O analista político Melilo Diniz chama atenção para o caráter democrático do projeto de Brasília, feito pelo urbanista Lúcio Costa. “Brasília foi uma cidade pensada para receber manifestações, ao contrário de outras capitais como Londres, Paris, Roma e Buenos Aires. A escala chamada Monumental (onde está a Esplanada e a Praça dos Três Poderes) permite o controle das manifestações, se forem bem planejadas”, observa Melilo.
Durante 2023, Felipe Igreja voltou à Esplanada para cobrir outros protestos. Otimista, acha que o local “continua sendo um palco para mobilizações, manifestações, o que é diferente de bagunça, vandalismo, terrorismo”. Ele diz que não tem medo desse tipo de cobertura jornalística, mas admite: “É claro que a gente vai com certo cuidado. Não pode acontecer nunca mais aquele ataque à democracia “, adverte o jornalista, como se ilustrasse, em uma frase, a cicatriz que o vandalismo deixou e a vigilância da qual a sociedade não pode nunca abrir mão.
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Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br