ODS 1
Jornada por um mundo de burocracia e ausência de humanidade
Diário da viagem com os voluntários que levam ajuda humanitária aos refugiados na Bósnia mostra a dureza de famílias desamparadas e tratadas com brutalidade pelas autoridades
Diário da viagem com os voluntários que levam ajuda humanitária aos refugiados na Bósnia mostra a dureza de famílias desamparadas e tratadas com brutalidade pelas autoridades
(Enviada especial a Sarajevo). A reportagem do #Colabora acompanhou a organização não governamental italiana Protection4Kids em missão humanitária à Bósnia e Herzegovina. Três dias de jornada para levar alimentos, roupas e bens de primeira necessidade a dois campos de refugiados: Hadžići e Bihać. Em Hadžići, onde está a menina afegã Sakine, fomos autorizados a entrar; no campo de Bihać, não. A entrada foi negada por “questões de segurança”, pois era domingo e havia menos guardas no campo, segundo informou funcionário da Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência ligada à Organização das Nações Unidas (ONU).
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Às 5h de uma sexta-feira de fevereiro de 2021, eu e Cristian Bernardi, meu companheiro de viagem, fomos os primeiros a chegar na Praça Giorgione, próxima ao castelo da cidade de Castelfranco, na região do Vêneto, norte da Itália. Aqui é a sede da ONG formada por jovens voluntários e sonhadores.
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Antes de cair na estrada, no dia anterior à jornada, tivemos que fazer o teste de covid-19. Fizemos outro uma semana após ter voltado para casa.
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Veja o que já enviamosEram nove veículos no total, sendo sete furgões e dois carros que carregavam cerca de quatro toneladas de bens de primeira necessidade e muito afeto. Partimos em comitiva, em fila, com os veículos identificados com o logotipo da associação. Em cada um, duas pessoas e um rádio para nos comunicarmos.
De Castelfranco a Sarajevo, nossa primeira etapa, são cerca de 800 quilômetros. Nos cálculos que haviam feito, deveríamos chegar por volta das 17h na capital bósnia. Mas não tinham posto na conta do tempo as horas perdidas nas filas das fronteiras e a enorme burocracia das alfândegas. Na realidade, usam a burocracia como desculpa para dificultar a chegada da ajuda humanitária.
Já na primeira fronteira com a Eslovênia, após terem passado todos os caminhões que estavam à nossa frente, os policiais pararam três veículos da comitiva e os mandaram pesar. Dois haviam superado o limite. Após os voluntários terem descarregado e levado a mercadoria para o galpão de uma associação amiga em Trieste, pudemos prosseguir com a jornada. A passagem pela Eslovênia não trouxe outros percalços a não ser a fila para sair do país.
Foi na Croácia que vimos o que as autoridades podem fazer com a desculpa da burocracia. Estávamos para deixar o país, ficamos cerca de uma hora na fila da fronteira e no momento em que chegamos para apresentar os documentos, nos mandaram pesar os veículos novamente. Fizemos a volta e fomos encarar a enorme fila dos caminhões. Após quase duas horas na espera, enfim chegou nossa vez. Enquanto o primeiro furgão estava se direcionando para ser pesado, sem nenhuma explicação, fomos informados que deveríamos voltar para a fila dos carros. Isso sem que nenhum dos nossos veículos tivesse sido, efetivamente, pesado. Outras horas perdidas naquela fila que se juntaram ao nervosismo e preocupação, pois ainda faltavam várias horas de estrada até a capital.
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A entrada na Bósnia não foi diferente. Após passar a fronteira, fomos acompanhados pela polícia até a alfândega para liberar a mercadoria. Outras três horas de espera. Era quase 2h da manhã quando, finalmente, não havia mais fronteiras até Sarajevo. Chegamos ao hotel às 5h, mortos de cansaço, mas felizes.
Poucas horas de sono e partimos em direção a Hadžići. Fomos avisados de que não poderíamos tirar fotos e vídeos por questão de segurança. O campo ficava na periferia da cidade, cercado por um bosque. Ao entrarmos, nos deparamos com vários contêineres e poucas pessoas em circulação. Culpa do tremendo frio que fazia.
Fomos levados por funcionários da OIM até o final do campo, onde havia um pequeno espaço para receber a mercadoria. Foram descarregados três furgões e meio. A ordem era somente descarregar e ir embora. Mas aos poucos o pátio vazio foi se enchendo de seres humanos que pareciam sair de suas tumbas ao deixarem os contêineres.
Mesmo diante da pandemia, poucos usavam máscaras de proteção, dando a entender que é o cotidiano dali. Aliás, os únicos que tinham o equipamento eram os voluntários da ONG e os funcionários da OIM.
Enquanto alguns dos imigrantes foram ajudar a guardar as caixas, outros começaram a falar. Queriam mostrar tudo, as condições precárias em que vivem. Levaram-me até os banheiros e abriram um por um para que visse com meus olhos onde tomavam banho, quando a água quente chegava, e faziam suas necessidades. Após alguns minutos, um funcionário do campo se aproximou e pediu para que ficasse com a comitiva e não saísse caminhando sozinha.
De repente, surgiu em minha frente a pequena Sakine, de 8 anos. Fiquei parada olhando para seus pezinhos nus, não consegui pensar em outra coisa a não ser o frio que estava sentindo aquela guriazinha. Eu tinha luvas, mas minhas mãos estavam doendo. Eu me senti culpada por quase chorar de tanta dor que estava sentindo nas mãos. Enquanto conversava com alguns refugiados e colhia testemunhos para a reportagem, lembrei que na minha mochila havia dois bonequinhos de plástico de minhas filhas. Dei-os a Sakine. Ela abriu um sorriso e meu coração arrebentou naquele instante. Foi difícil conter o choro.
Meia hora depois de termos deixado o campo em direção a Bihać, a segunda etapa da jornada, paramos para abastecer. No posto havia um pequeno bar onde entramos para um café. Vários voluntários choravam calados, de maneira contida. Era a primeira missão humanitária para alguns deles.
Chegamos a Bihać por volta da meia-noite e, por coincidência, encontramos o policial da fronteira hospedado no mesmo hotel em que dormiríamos naquela noite.
No dia seguinte descubro que o campo de Hadžići é considerado um dos “melhores” do país, apesar da precariedade medonha. Fiquei imaginando como seriam os outros e se, na realidade, foi por esse motivo que proibiram a entrada no campo de Bihac.
Ainda havia três furgões para descarregar. Fomos encaminhados a um enorme galpão na periferia da cidade, completamente lotado de todo tipo de bens. De fraldas a comida e roupas, havia de tudo. Segundo Ajdin Moranjkic, assistente da OIM, “aquilo tudo bastava para abastecer por três ou quatro meses os campos de refugiados oficiais da redondeza”.
Foi em Bihać que nos deparamos com o Dom, esgoto a céu aberto onde vivem cerca de 200 pessoas. Aliás, sobrevivem. Vários imigrantes estavam com febre e precisavam de cuidado médico. Estão ali, abandonados à própria sorte. Esperando a neve derreter para se jogarem no game da vida.
“Foi uma experiência chocante para todos nós”, diz Annachiara Sarto, a jovem diretora de Protection4Kids. “No campo auto-organizado (Dom) as pessoas vivem em estado de indigência, à margem de tudo, em meio ao lixo, queimam plástico e amianto para se esquentar, o que produz fumaça terrível e tóxica. Tivemos que jogar fora as máscaras que estávamos usando porque o cheiro ficou impregnado, e alguns do nosso grupo tiveram conjuntivite. Esses refugiados precisam urgentemente de assistência médica, têm febre de 40 graus Celsius constantemente, a pele destruída pelo frio e as mãos com cortes infeccionados e com pus”.
Diante da crise humanitária dos imigrantes encontrada no país, a ONG Protection4Kids resolveu fazer outra jornada para a Bósnia o quanto antes. “A ideia era voltar no fim de abril, mas estamos estudando a situação porque os casos de covid-19 estão piorando e agora na Bósnia é prevista uma quarentena de duas semanas antes de poder circular pelo país. E temos o fator do 1º de maio, Dia dos Trabalhadores, quando se espera um aumento dos casos e, em consequência, maiores restrições relacionadas às normas de combate ao coronavírus”, explica Sarto. “No entanto, a campanha para arrecadação de fundos já está no ar. Ela é essencial para alugarmos os furgões e organizarmos a viagem”, finaliza a jovem italiana.
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Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.