Um strike no próprio pé

A medalha de Martin. Vitória no jogo de boliche no aniversário de um amigo

Como estragar sua paternidade com apenas uma frase

Por Leo Aversa | ODS 4 • Publicada em 14 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 14 de março de 2016 - 11:07

A medalha de Martin. Vitória no jogo de boliche no aniversário de um amigo
A medalha de Martin. Vitória no jogo de boliche no aniversário de um amigo
A medalha de Martin. Vitória no jogo de boliche no aniversário de um amigo

Martín chega em casa transbordando de orgulho. Ganhou uma prova de boliche no aniversário do amigo. Tem troféu e medalha, que vem correndo mostrar.

Desde o dia que nasceu tenho a preocupação de não estragar tudo. Tento tomar cuidado com o que eu digo e o que faço na frente dele. “Olha o exemplo!”.  Melhor segurar a onda do que depois ter que pagar psicanálise por dez anos. Então nada de críticas e nada de palavrões. Só incentivos e versos parnasianos.

Faço a maior festa, sempre com o cuidado de explicar que o importante é competir, não vencer. Dou abraço, beijo, prometo jogar com ele no fim de semana. O menino não cabe em si. Paro tudo e peço pra ele contar cada detalhe da prova.

O malandrinho percebe que está no centro da ribalta, então a narrativa ganha tons épicos. Os pinos se multiplicam, a bola ganha um peso descomunal, a pista de agiganta. Martín tem seis anos mas já notou que a versão vale tanto ou mais que o fato.

– E quantos pontos voce fez?

– 99

– Caramba! Então a bola não foi nenhuma vez para a canaleta?

– Que canaleta?

A mãe explica que o boliche para crianças não tem canaleta.

Para quem nunca jogou: o objetivo do boliche é derrubar um conjunto de pinos no final da pista. De cada lado tem uma canaleta. Se você errar o arremesso a bola cai dentro de uma dessas canaletas e não derruba nada.

Eu, irresponsável, bruto, grosseiro, displicente e descuidado, falo precisamente o que não devia.

– Mas sem canaleta é muito fácil!

A última coisa que vejo antes da saraivada de xingamentos da mãe é o Martín indo pro quarto. Pronto, todo aquele cuidado desaparece num comentário. A auto-confiança do garoto escorre pela canaleta e os meus méritos como pai caem como pinos de boliche. Terei que pagar o tal psicanalista por dez anos. Era uma questão de tempo.

Ainda tento argumentar com a mãe que na minha casa palavras de incentivo eram consideradas muletas para fracos, quando não ofensas pessoais “…e mesmo assim sobrevivi…”, digo sem muita convicção. Escuto um previsível “deu no que deu!” É sempre melhor ficar calado, nunca aprendo.

Vou lá no quarto tentar remediar a situação.

– Com ou sem canaleta, o importante é que você venceu! Você foi melhor que os outros! Tirou o primeiro lugar! Chegou na frente!

Me entusiasmo com a minha própria voz. Sempre que isso acontece algo de muito ruim está a caminho

– Você derrotou os seus adversários! Foi vitorioso! Deixou todo mundo pra trás!

– Mas você disse que o importante era competir, não ganhar…

Strike.

– Que merda! Não acerto uma! Puta que pariu!

Serão vinte anos de psicanálise.

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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