‘É preciso romper amarras e enfrentar as ruas sem salto alto’, diz gestor de museu

Manifestantes protestam no Rio de Janeiro após o incêndio do Museu Nacional (Foto: AFP PHOTO / Daniel Ramalho)

Responsável pela Casa da Marquesa de Santos, Douglas Fasolato analisa as dificuldades das instituições em dialogar com patrocinadores privados e com o público

Por Fernanda Baldioti | ODS 9 • Publicada em 4 de setembro de 2018 - 10:25 • Atualizada em 4 de setembro de 2018 - 15:39

Manifestantes protestam no Rio de Janeiro após o incêndio do Museu Nacional (Foto: AFP PHOTO / Daniel Ramalho)
Manifestantes protestam no Rio de Janeiro após o incêndio do Museu Nacional (Foto: AFP PHOTO / Daniel Ramalho
Manifestantes protestam no Rio de Janeiro após o incêndio do Museu Nacional (Foto: AFP PHOTO / Daniel Ramalho)

Algumas horas após o incêndio que devastou o Museu Nacional, começaram a circular nos grupos de WhatsApp uma mensagem que questionava a distribuição de recursos para a cultura no país. O texto mostrava, por exemplo, que o Ministério da Cultura (MinC) autorizou a captação de R$ 1,5 milhão para a realização de um filme sobre a vida do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. Enquanto isso, o Museu Nacional, que é ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, estava sobrevivendo, nos últimos anos, com um orçamento de R$ 300 mil anuais. A questão é bem mais complexa do que parece no calor da emoção da devastação de um acervo de 20 milhões de peças. Como mostrou a Agência Lupa, dos 14 projetos mencionados nas mensagens instantâneas que se espalharam, oito jamais conseguiram arrecadar verba alguma, como é o caso do filme sobre a história do petista. O próprio Museu Nacional chegou a inscrever alguns projetos na lei de incentivo federal, mas, desde 2010, só conseguiu captar R$ 1,07 milhão para criar uma exposição permanente para apresentar o acervo de mineralogia, como também revela a Agência Lupa.

Temos que seduzir, despertar desejos e fazer com que as pessoas se reconheçam nas narrativas dos espaços

Em outros posts que também viralizaram nas redes, textos questionavam a falta de interesse do público nos museus tradicionais e o pouco investimento das empresas privadas na área. Especialista no setor, Douglas Fasolato, que é gestor da Casa da Marquesa de Santos, ex-diretor superintendente da Fundação Museu Mariano Procópio, e integrante da ONG Rede Brasileira de Jardins e Paisagens, conversou com o #Colabora sobre essas questões. Confira a seguir:

#COLABORA: Os museus podem captar recursos via leis de incentivo, como Rouanet, ISS e ICMS. Por que não o fazem?

Douglas Fasolato: Os museus podem captar das mais variadas formas, tantos os museus públicos como os privados, inclusive os geridos por organizações sociais ou associações de amigos. Os museus podem e devem usar todos os instrumentos possíveis, inclusive os financiamentos colaborativos.  Existem experiências com sucesso, além dos pequenos projetos e pessoais. Mas ainda é preciso romper amarras, sair dos lugares estabelecidos e sacralizados e enfrentar as ruas, sem salto alto.

#COLABORA: Pelo seu profundo conhecimento dos museus da cidade e do país, uma tragédia como esta pode se repetir? Quais são os principais gargalos de manutenção desses espaços?

Douglas Fasolato: Uma tragédia como essa pode se repetir em qualquer espaço cultural. E vem se repetindo. Existe uma geração que não esquece o incêndio do MAM. Outros são ainda presentes no Rio, como a Capela da Reitoria e da Faculdade de Arquitetura da UFRJ, que por pouco não consome o Museu Dom João VI. Em São Paulo, estão reconstruindo o Museu da Língua Portuguesa. O fogo também vitimou a Cinemateca, o Memorial da América Latina e do Liceu de Artes Ofícios, em São Paulo. E também em museus em cidades de vários continentes, de Nova Iorque a Moscou. O problema é que observamos uma comoção e assistimos a depoimentos de indignação e propostas cheias de boas intenções, mas, passado algum tempo, tudo volta ao mesmo lugar. Às vezes, planos de riscos são desenvolvidos e aprovados, mas nem sempre são colocados em prática, tanto pela falta de recursos como de pessoal.  Estamos falando apenas de incêndios, mas existe uma série de outros riscos potenciais aos espaços culturais. Percebemos que esse risco existe tanto para as antigas estruturas como as modernas.  A tecnologia com equipamentos de última geração é realmente importantíssima, embora não sejam garantias senão houver equipes bem treinadas, que são fundamentais para as ações a fim de executá-las e tomadas de decisões com conhecimento.

#COLABORA: A gente fala muito da questão da falta de investimento público. Mas e a iniciativa privada? Os empresários também têm sua parcela de culpa? Há pouco investimento privado nos museus?

A maioria dos museus tem enorme dificuldade de dialogar com os patrocinadores privados e, sobretudo, de encontrar projetos afinados com suas propostas culturais

Douglas Fasolato: É uma discussão que precisa ser refletida com cuidado para entender as causas que levam um patrocinador preferir um projeto em relação ao outro. Isso passa pela legislação de incentivo à Cultura, que precisa ser aprimorada para priorizar as áreas de atuação e geográfica das propostas, que em parcialmente foi melhorada, mas longe do ideal e desejado, de forma que os recursos possam alavancar áreas que deveriam ser consideradas prioritárias aos interesses definidos pelas políticas sociais.  Vivemos entre os modelos norte-americano e francês de patrocínio, mas estamos ainda mais longe do valor que as instituições são percebidas e valorizadas. Se faltam recursos nos orçamentos públicos, a maioria dos museus tem enorme dificuldade de dialogar com os patrocinadores privados e, sobretudo, de encontrar projetos afinados com suas propostas culturais. Ambos, museus e patrocinadores, precisam se conhecer e encontrar para realizarem um “casamento feliz”.

 

O fogo continuou por horas no Museu Nacional,na Quinta da Boa Vista, com um prejuízo ainda incalculado. Foto Francisco Proner Ramos/AGIF
O fogo continuou por horas no Museu Nacional,na Quinta da Boa Vista, com um prejuízo ainda incalculado. Foto Francisco Proner Ramos/AGIF

#COLABORA: E nós como sociedade? A Folha de S. Paulo mostrou que o número de visitantes do Museu Nacional caiu 34,3% entre 2013 e 2017: de 275,7 mil para 181,3 mil pessoas. Por que fazemos fila para ver museus que são novidades e estão na moda e não valorizamos nossos museus de acervo? Falta estímulo e educação neste sentido?

Douglas Fasolato: É natural que gostemos de ver novidades nos museus, seja por meio de exposições, seja pelas ações culturais e educativas.  Sobretudo, é preciso encontrar caminhos para dialogar e para atrair. Ninguém é obrigado a gostar de ir aos museus. Por isso, temos que seduzir, despertar desejos e fazer com que as pessoas se reconheçam nas narrativas dos espaços. Realmente os museus clássicos enfrentam os maiores desafios no Brasil. Na Europa também, o que exigiu estratégias como a renovação dos principais museus da França nas últimas décadas e que, em vários acasos, obrigou instituições importantes a fecharem suas portas para pensarem e executarem projetos de renovação arquitetônica e museológica.  Mas as mudanças também devem ocorrer nas relações com o público e os acervos, que precisam estar disponíveis para estabelecer novas formas de interação, que precisam estar mais abertas.

#COLABORA: Como você vê hoje a situação dos demais museus da cidade?

Douglas Fasolato: Não há dúvida que, nas crises financeiras, os investimentos na cultura sentem os efeitos quase que imediatamente. Leis de incentivo, como a Lei Rouanet, dependem do lucro real das empresas patrocinadoras, que são afetadas. E se falta recursos privados e públicos, as instituições padecem. E assim enfrentamos um passivo em relação aos necessários investimentos nos museus, do custeio aos investimentos. É preciso assim atualizar uma pesquisa para ver quantos museus estão fechados ou funcionado parcialmente no Brasil, em cada estado e cada capital. O importante é buscar soluções, que não acontecem da noite para o dia e exigem soluções cuidadosas, respeitosas e criativas com os públicos. O Rio de Janeiro que já foi corte imperial e capital da República, mas ainda tem o potencial turístico que deve ser potencializado e trazer benefícios para os grandes, médios e pequenos museus, que não devem ser iguais, mas valorizar suas diferenças e suas características. Se faltar recursos, aumentam-se a criatividade e a inovação.

Fernanda Baldioti

Jornalista, com mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trabalhou nos jornais O Globo e Extra e foi estagiária da rádio CBN. Há mais de dez anos trabalha com foco em internet. Foi editora-assistente do site da Revista Ela, d'O Globo, onde se especializou nas áreas de moda, beleza, gastronomia, decoração e comportamento. Também atuou em outras editorias do jornal cobrindo política, economia, esportes e cidade.

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