Como é ser mulher e LGBT+ na Sérvia?

Sérvia: país onde aborto é legal, mas mulheres sofrem com a desigualdade salarial e casais homossexuais não são reconhecidos. Foto: Medin Halilovic / Anadolu Agency / AFP

Adversário do Brasil na Copa, jovem e controverso país abraça pautas progressistas ao mesmo tempo em que se escora no conservadorismo que lhe é característico

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 8 • Publicada em 26 de junho de 2018 - 06:29 • Atualizada em 2 de julho de 2018 - 03:54

Sérvia: país onde aborto é legal, mas mulheres sofrem com a desigualdade salarial e casais homossexuais não são reconhecidos. Foto: Medin Halilovic / Anadolu Agency / AFP
Como é ser mulher e LGBT+ na Sérvia?
Sérvia: país onde aborto é legal, mas mulheres sofrem com a desigualdade salarial e casais homossexuais não são reconhecidos. Foto: Medin Halilovic / Anadolu Agency / AFP

De um lado, um país com dimensões continentais e contrastes notáveis. Do outro, uma das nações mais jovens do mundo, com população pouco superior à da cidade do Rio de Janeiro. Brasil e Sérvia entram em campo pela primeira fase da Copa do Mundo nesta quarta-feira (27/06). A taxa de 98% de alfabetização e apenas 0,19% da população vivendo em extrema pobreza são motivos de orgulho para o pequeno país europeu. Mas, esses dados positivos escondem uma realidade invisível: a Sérvia já foi considerada o país mais intolerante do mundo.

Mulheres, ciganos, LGBTs são alguns dos principais grupos discriminados – o que não difere muito do Brasil e outras nações mundo afora. Da antiga Iugoslávia, país que integrava até 2006, a Sérvia pode não ter herdado as belas praias, mas levou consigo, entre muitas coisas, barreiras estruturais como a forte influência da Igreja Católica Ortodoxa, uma das razões que explica o conservadorismo e o patriarcado.

Enquanto eles avançam na diminuição da desigualdade, nós recuamos. O Relatório de Desigualdade Global de Gênero 2017, que é realizado todos os anos pelo Fórum Econômico Mundial, mostra que o Brasil está muito atrás do seu adversário quando o assunto são as disparidades em relação ao gênero

Lá, a diferença salarial entre homens e mulheres é bastante significativa. A desigualdade de pagamento em um mesmo emprego feito por homens e mulheres, por exemplo, equivale a uma mulher que trabalha 40 dias por ano sem receber. E é esse um dos ambientes onde elas mais ficam vulneráveis ao assédio sexual: pesquisas apontam que um terço da população sérvia sabe de pelo menos um caso no local de trabalho. Além disso, uma em cada duas mulheres já sofreu violência doméstica. Aqui, as vítimas de violência física podem ser contadas no “relógio”: são 7,2 a cada segundo.

O que nos difere? Enquanto eles avançam na diminuição da desigualdade, nós recuamos. O Relatório de Desigualdade Global de Gênero 2017, que é realizado todos os anos pelo Fórum Econômico Mundial, mostra que o Brasil está muito atrás do seu adversário quando o assunto são as disparidades em relação ao gênero. Em um ranking de 144 países, a Sérvia ocupa a 40ª posição, enquanto o Brasil figura na 90ª. São analisados indicadores de saúde, educação, paridade econômica e representatividade política. Em relação ao ano anterior, o Brasil caiu 11 posições, enquanto a Sérvia subiu oito.

A melhora do índice pode ser explicada pela adoção, por parte do governo sérvio, de uma Estratégia Nacional para a Igualdade de Gênero, que se concentra no desenvolvimento de políticas que promovam a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. O empoderamento político é visto como o principal fator que puxou a Sérvia um pouco mais para cima do ranking. Cotas na Assembleia Nacional levaram a uma maior participação política das mulheres: elas representam 33% do Parlamento. E o Brasil? Lanterna no ranking de participação de mulheres na política no continente americano com atuação feminina em cargos do Executivo abaixo da média mundial.  

Como é ser mulher e LGBT+ na Sérvia?
Ana Brnabic foi nomeada ao cargo de primeira-ministra no ano passado. Abertamente lésbica, ela é vista como esperança em meio ao conservadorismo do país. Foto: Predrag Milosavljevic / AFP

Outra diferença também está na área da saúde da mulher. Na Sérvia, o aborto foi legalizado em 1977, quando o país ainda pertencia à Iugoslávia. O procedimento é garantido para mulheres com até dez semanas de gravidez, em caso de risco à saúde, quando a gestação é originada de estupro ou em caso de fetos anencéfalos. Aqui, somente é legal nas três últimas situações. Dados oficiais do Instituto de Saúde Pública de Belgrado afirmam que 23 mil abortos são realizados na Sérvia anualmente. Já uma pesquisa da organização Pew Research de 2017 mostrou que 63% dos sérvios acreditam que o aborto deve ser legal em todos ou na maioria dos casos. Segundo a pesquisa Ipsos, apenas 13% dos brasileiros apoiam o aborto quando a mulher desejar.

País engatinha nas questões LGBT+

Confrontar Brasil e Sérvia em relação às questões LGBT+ não é tarefa tão simples. O país europeu por muito tempo ficou respaldado pelas leis da antiga Iugoslávia, onde a prática homossexual era condenada de um a dois anos de prisão, sendo descriminalizada somente em 1994. Nesse ponto, estamos quase dois séculos à frente. Aqui, deixou de ser ato criminoso nos primeiros anos pós-independência.

Embora tenha sinalizado alguns avanços no assunto, a Sérvia ainda está longe de ser um dos países mais convidativos. Gays, lésbicas e pessoas vivendo com HIV estão entre as comunidades mais discriminadas na Sérvia, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Uma pesquisa feita pela ILGA Europa (Associação Gay, Bissexual e Transgênero), em 2016, traçou o “mapa arco-íris” do continente europeu, revelando o nível de equidade entre LGBTs e héteros em relação a direitos civis e de família, liberdade de expressão e crimes de ódio. No ranking formado por 49 países, a Sérvia aparece na 28ª posição com 30%, em uma escala onde 0% representa altíssimo grau de violência e 100% igualdade total.

Para 56% da população sérvia, a homossexualidade representa um perigo para a sociedade e 49% afirmam que nunca tolerariam um membro gay na família

No Brasil, o casamento entre homossexuais passou a valer em 2013. No país que está disputando sua segunda Copa do Mundo, casais do mesmo sexo continuam a ser omitidos das páginas do direito da família, sem proteção legal ou reconhecimento de seus relacionamentos. Inclusive, por vários anos, a parada do Orgulho LGBT de Belgrado, a capital da Sérvia, foi cancelada por causa das ameaças de violência. Em 2010, seis mil pessoas contrárias ao movimento ecoavam “morte aos homossexuais” e entraram em confronto com a polícia. Resultado: a parada foi suspensa por 3 anos. Fato que levou a Anistia Internacional identificar a Sérvia como um dos vários países onde há uma marcante falta de vontade de combater a homofobia. Desde o retorno do evento, em 2014, o desfile acontece sem incidentes.

Antes disso, em 2012, o Parlamento sérvio aprovou alterações ao Código Penal para introduzir o conceito de crime de ódio, inclusive com base na orientação sexual e identidade de gênero. Ponto para a Sérvia, já que por aqui, existe uma omissão constitucional no que se refere ao preconceito em razão do sexo. Prosseguimos sem uma legislação que criminaliza atos de homotransfobia. Não é à toa que Brasil é marcado como o país que registra o maior número de crimes homofóbicos. Em ambos, a adoção por casais homoafetivos é legal.

A esperança de uma Sérvia mais tolerante ressurgiu com a primeira-ministra Ana Brnabić, abertamente lésbica, nomeada no ano passado. A cobrança por leis que garantam isonomia está a todo momento sob holofotes, mas a influência da Igreja ainda é um obstáculo e direciona a percepção da população. Para 56%, a homossexualidade representa um perigo para a sociedade, e 49% afirmam que nunca tolerariam um membro gay na família.

Como é ser mulher e LGBT+ na Sérvia?
Religioso protesta contra Parada Gay de Belgrado, em 2010. Na ocasião, grupo anti-LGBT entrou em confronto com a polícia; parada foi suspensa por 3 anos. Foto: Alexa Stankovic/ AFP

Já a transexualidade era tão tabu na antiga Iugoslávia que nem sequer era mencionada nos livros de medicina. Com a independência da Sérvia, alguns sinais de mudança vêm surgindo. Em 2012, o governo passou a reembolsar até 65% do valor da operação de redesignação sexual. Com uma medicina de alto nível, o país se tornou um polo para a realização do procedimento. Mas lá, a lei ainda impede que transexuais alterem seu gênero e nome legal sem passar pelo processo. Aqui, a operação é feita pelo Sistema Único de Saúde desde 2008. E em março deste ano, o STF decidiu que para a alteração do nome no registro civil não é preciso a realização da cirurgia. Porém, os avanços de ambos países não resolvem uma série de outros problemas preocupantes. Enquanto na Sérvia a comunidade trans vive completamente à margem da sociedade, no Brasil, muitas morrem vítimas de transfobia. 

Uma coisa que é certa e não se pode negar é a paixão que os dois países nutrem pelo futebol. Mas, pelo jeito, fora dos campos, eles andam ora em caminhos distintos, ora em direções semelhantes.

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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