ODS 1
‘É desumano conviver com esse cheiro’
Moradores da Rocinha sofrem com valas de esgoto a céu aberto há mais de 50 anos
Moradores da Rocinha sofrem com valas de esgoto a céu aberto há mais de 50 anos
A Estrada da Gávea, que conecta os bairros nobres de São Conrado e Gávea, esconde também as mazelas da falta de saneamento básico na maior favela do país: a Rocinha. Em meio às construções de alvenaria, moradores convivem com valas de esgoto a céu aberto, a mobilidade reduzida pelo crescimento desproporcional de moradias e o risco de proliferação de doenças como a tuberculose. “Tá vendo isso, aí? É desumano conviver com esse cheiro”, aponta José Almeida, de 44 anos, para uma vala de esgoto próxima da sua casa. Ele mora há 25 anos na localidade conhecida como Vila Verde, na parte alta da Rocinha.
[g1_quote author_name=”Fernando Ermiro” author_description=”Historiador” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Se entendermos saneamento básico como infraestrutura: moradia, acesso a energia elétrica e água. Habitações insalubres são muitas e de acesso difícil; energia elétrica não há continuidade no serviço de fornecimento e estabilidade; acesso a água é incerto e por isso todos temos que fazer reserva de água. Então aquilo que já não tínhamos, temos menos agora, com nosso crescimento desenfreado, nossa política habitacional cara e inacessível aos trabalhadores pobres
[/g1_quote]O drama de José Almeida é um traço comum na vida da maioria dos habitantes do morro. Divididos em 34 localidades, os moradores da Rocinha lutam por melhorias no saneamento básico desde o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1934). José relembra que quando chegou à Vila Verde, no início dos anos 90, o lugar era pitoresco. O vasto terreno na área de mata na Floresta da Tijuca pertencia a dois empresários gaúchos que nunca foram até o local. Com a alta dos aluguéis na época, um grupo de moradores decidiu ocupar o terreno para construir moradias próprias. José foi um deles. O esgoto de hoje já foi um rio de águas límpidas no passado. “O crescimento desordenado comprometeu a qualidade do riacho”, diz José que complementa: “Eu cheguei a beber água desse rio quando ainda era limpa”. José sem dúvida era um sortudo, pois a maior parte do morro já havia perdido há muito tempo suas fontes naturais de água potável oriundas da Floresta da Tijuca.
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Considerada um bairro desde 1993, por conta de um decreto municipal, a Rocinha e a sua falta de saneamento já passaram pela mesa de trabalho de diversos governadores e prefeitos, sem qualquer solução. Em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi até a Rocinha para lançar o Programa de Aceleração do Crescimento, um pacote de obras que iria beneficiar os milhares de moradores do morro. Através do PAC, foi feito o “Concurso Público Nacional de Ideias para Urbanização da Rocinha” onde escritórios de arquitetura apresentaram projetos para a favela.
O escritório de arquitetura e urbanismo ArquiTraço foi o vencedor ao apresentar um projeto focado justamente na circulação de pedestres e uso dos transportes públicos. “Foi uma conquista paulatina de pulmões espaciais de pequeno porte, que deveriam ser distribuídos pelos vários setores do bairro e localizados, prioritariamente, nos caminhos existentes e nos acessos planejados. A abertura desses espaços livres deveria formar uma rede de largos, pequenas praças e áreas de lazer, que ajudariam a reverter o atual quadro de insalubridade dos becos e travessas.” conta o arquiteto Luiz Carlos Toledo, responsável por comandar o projeto de pesquisa na Rocinha.
O arquiteto e sua equipe observaram nos meses de pesquisa territorial que em termos demográficos a Rocinha tem o tamanho de uma cidade média brasileira. De um lado, apresenta, em um cenário único, todos os problemas encontrados nas ocupações de alta densidade e renda baixa tais como doenças endêmicas de saúde pública, fluxos migratórios erráticos e constantes, demandas habitacionais crescentes, deficiências nos sistemas de infraestrutura, padrões diversos e instáveis de renda, condições precárias no meio ambiente natural.
Os estudos das obras foram feitas em parceria com os moradores por meio de assembleias. Nela, moradores sugeriram obras e explicaram os causos da Rocinha. Apontaram os problemas e possíveis soluções. Com o projeto do Plano Diretor em mãos, as obras foram iniciadas sob muita expectativa.
Para o morador e historiador do Museu Sankofa Memória e História da Rocinha, Fernando Ermiro, o saneamento básico na Rocinha sempre esteve ausente. “Se entendermos saneamento básico como infraestrutura: moradia, acesso a energia elétrica e água. Habitações insalubres são muitas e de acesso difícil; energia elétrica não há continuidade no serviço de fornecimento e estabilidade; acesso a água é incerto e por isso todos temos que fazer reserva de água. Então aquilo que já não tínhamos, temos menos agora, com nosso crescimento desenfreado, nossa política habitacional cara e inacessível aos trabalhadores pobres”, explica Ermiro com um ar de descrédito.
Corrupção afeta obras públicas
Na primeira fase do PAC, foram entregues as seguintes obras: Complexo Esportivo de 15 mil metros quadrados com campo de futebol em grama sintética, pista de skate e quadra poliesportiva; uma passarela projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, ligando o Complexo Esportivo à favela; uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) 24 horas; urbanização e alargamento de viela de 60 centímetros para 14 metros de largura na Rua 4 (Rua Nova) e uma Biblioteca Parque, com cinco andares e 1600 metros quadrados. A urbanização da Rua do Valão (ou Rua do Canal), na parte baixa da Rocinha, não foi entregue. Porém, cerca de 60 casas receberam “melhorias” nas fachadas. Esta última obra mencionada foi duramente criticada pelos moradores por ser uma maquiagem na entrada da favela. “Coisa para gringo ver”, disse um morador que não quis se identificar, lembrando que a Rocinha é visitada mensalmente por milhares de turistas estrangeiros e nacionais.
Na segunda fase do PAC estava prevista a construção de um plano inclinado; a reurbanização do Caminho do Boiadeiro; a construção de um mercado popular e de uma creche, localizada nas proximidades da Biblioteca Parque. Apenas a creche foi construída com recursos do PAC 1. O PAC 2 nunca foi executado.
Ainda no PAC 2, o Governo do Estado queria construir um teleférico contra a vontade da maioria dos moradores. O Governo Federal havia liberado R$ 1,6 bilhão para as obras do PAC 2. Em entrevista ao jornal EL País, o arquiteto Toledo, discordou da construção do teleférico por concordar com os moradores que a necessidade emergencial era outra. “Pensar em teleférico antes de saneamento é uma estupidez. É trocar uma coisa importante para a saúde daquela população por uma obra midiática. É um absurdo”, opina. Calcula-se que o teleférico custaria 700 milhões, mas o Governo do Estado tampouco confirmou e nem aclarou os valores.
Três anos antes de ser preso por improbidade administrativa, em 2016, na operação ‘Calicute’, da Polícia Federal, o então secretário estadual de obras Hudson Braga disse que o saneamento básico da Rocinha seria prioridade no PAC 2. “A vertente principal do PAC 2 na Rocinha são o saneamento básico, as drenagens e a urbanização. A maior parte dos investimentos será nessas obras. E, a exemplo do que fizemos no PAC 1, com alargamento e urbanização da Rua 4, antes um foco de doenças pela excessiva umidade, vamos agora para outros pontos da Rocinha. Vamos atender a mais de 20 mil moradias com saneamento básico. Haverá 100% de tratamento do esgoto que hoje desce a céu aberto pela Rua do Valão. Vamos separar toda a água da chuva, o esgoto e o lixo e, além disso, vamos fazer creche, escolas e urbanização completa. O teleférico entra como uma alternativa de mobilidade”, afirmou Hudson Braga. O ex-secretário permanece preso na Cadeia Pública José Frederico Marques, na Zona Norte do Rio.
Procurada, a Secretaria Estadual de Obras do Estado do Rio de Janeiro informou que está pleiteando, junto ao Ministério das Cidades, a retomada dos projetos de melhorias ligados ao PAC II, que incluiria a Rocinha. o valor do investimento no PAC 2 é de R$ 156.779.441,83. Valores astronômicos e problemas esperando há anos por soluções concretas.
* Reportagem produzida no Laboratório de Jornalismo da PUC-Rio para o Projeto #Colabora, com orientação da professora Itala Maduell
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Criado na Rocinha, Michel Silva vive circulando pelas favelas do Rio de Janeiro. Idealizador e editor do portal Viva Rocinha e do jornal "Fala Roça", na própria Rocinha. Estudante de Comunicação Social na PUC-Rio, atuou durante um ano como correspondente local do The Guardian, da Inglaterra. Atualmente, trabalha na TV Record Rio e edita o FavelaemPauta.com