As águas vão rolar em Brasília

Cerca de 20 mil pessoas são aguardadas por dia no Fórum Mundial de Água. Foto Divulgação

Com agendas e orçamentos diferentes, dois fóruns mundiais para discutir água reunirão 20 mil pessoas por dia na capital federal

Por Emanuel Alencar | ODS 6 • Publicada em 17 de março de 2018 - 15:22 • Atualizada em 17 de março de 2018 - 15:28

Cerca de 20 mil pessoas são aguardadas por dia no Fórum Mundial de Água. Foto Divulgação
Cerca de 20 mil pessoas são aguardadas por dia no Fórum Mundial de Água. Foto Divulgação
Cerca de 20 mil pessoas são aguardadas por dia no Fórum Mundial de Água. Foto Divulgação

No momento em que diversas regiões do mundo sofrem com escassez hídrica e o acesso democrático à água surge como uma das mais complexas questões para as próximas décadas, Brasília receberá, a partir deste sábado (17) até 23 de março, dois fóruns para debater o tema. Estão sendo esperadas 20 mil pessoas, por dia, nos eventos. Os encontros, porém, estão separados não apenas pelos 10 quilômetros geográficos. De um lado, o Fórum Mundial da Água (WWF, na sigla em inglês), de caráter “oficial”, organizado pelo governo federal e pelo Conselho Mundial da Água, com a presença de grandes empresas – como Ambev e Nestlé -, e espaços públicos e pagos. Do outro, o Fórum Mundial Alternativo da Água, organizado por movimentos sociais, e com todas as atividades gratuitas. O clima entre os organizadores dos dois fóruns não é exatamente amistoso, dando a dimensão da complexidade do assunto.

Fala-se muito no interesse em “privatizar a água”. Bobagem. Existe sim um movimento que defende a privatização do saneamento, o que é bem diferente de privatizar a água. A privatização do saneamento deve ser acompanhada de iniciativas de governo para garantir acesso a quem não pode pagar

O 8º Fórum Mundial da Água é um evento realizado a cada três anos. A última edição ocorreu em abril de 2015 em Daegu e Gyeongbuk, Coreia do Sul. Pela primeira vez aporta na América do Sul. Pelas conferências, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, passarão representantes de 170 países. Treze chefes de Estado estão confirmados. Haverá ainda eventos no Estádio Mané Garrincha.

Recentemente, na esteira do anúncio da realização do evento no Brasil, páginas de redes sociais propagaram uma suposta notícia de que Coca-Cola e Nestlé estariam negociando a compra do Aquífero Guarani, a portentosa reserva de água que se estende da Bacia Sedimentar do Paraná até a Bacia do Chaco-Paraná. A notícia foi prontamente negada pelas empresas e pelo governo. Ambientalistas asseguram ainda que não existe qualquer possibilidade de privatização dos mananciais subterrâneos ou dos recursos hídricos brasileiros se for seguida a legislação vigente.

O boato, no entanto, continua a girar pela internet. Discussões acaloradas têm ganhado corpo. O Fórum Alternativo da Água (Fama) surgiu como contraponto ao evento maior. Organizado por movimentos sociais, deverá receber cerca de 7 mil pessoas por dia na Universidade de Brasília (UNB), na Asa Norte, e no Parque da Cidade.

O Fórum Mundial Alternativo da Água (Fama) está sendo organizado por movimentos sociais e terá todas as atividades gratuitas. Foto Divulgação
O Fórum Mundial Alternativo da Água (Fama) está sendo organizado por movimentos sociais e terá todas as atividades gratuitas. Foto Divulgação

Thiago Ávila, um dos organizadores do Fama, é taxativo: o Fórum Mundial da Água é ilegítimo e fechou as portas à sociedade civil. Ele explica que o evento alternativo tem a premissa básica de considerar água “um direito, não uma mercadoria” como defendem, denuncia, as “grandes corporações” do encontro maior.

“O Fama é organizado por diversos povos: indígenas, ribeirinhos, sem-teto, quilombolas, do campo, das periferias urbanas. Nós nascemos na contraposição ao ‘Fórum das Corporações’. Para nós, água é um direito e não uma mercadoria, uma commodity. Água deve ser considerado um bem comum”, diz Thiago, ressaltando que o evento paralelo é contra “grandes interesses do capitalismo”.

Diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e secretário executivo do 8º Fórum Mundial da Água, Ricardo Medeiros de Andrade diz que os dois eventos são legítimos, mas não aceita a pecha de “Fórum das Corporações” ao evento patrocinado pelo governo federal.

Temos que ficar atentos para que a projetos de entrega de aquíferos à iniciativa privada não surjam no futuro com emendas constitucionais e medidas provisórias

“É legitimo o Fórum Alternativo, mas também reconheço como legítimo o Fórum Mundial da Água. O que não dá para aceitar são as inverdades ditas pelo pessoal do Fórum Alternativo. Não somos o evento das corporações. Teremos a Vila Cidadã (estacionamento do Mané Garrincha) e a Feira, totalmente abertas ao público, com 20 mil metros quadrados. Em diversas oportunidades a gente buscou diálogo (com movimentos sociais). Respeito o Alternativo. Esse enfretamento é que é nocivo”.

Ricardo Andrade reconhece que grandes corporações defenderão seus interesses. E caso surjam interesses “não-legítimos”, o Fórum Mundial estará “pronto para fazer o debate”.

“Fala-se muito no interesse em “privatizar a água”. Bobagem. Existe sim um movimento que defende a privatização do saneamento, o que é bem diferente de privatizar a água. A privatização do saneamento deve ser acompanhada de iniciativas de governo para garantir acesso a quem não pode pagar. É assim com programas como o Bolsa Família”, compara o secretário executivo do fórum.

Ainda segundo Ricardo Andrade, as notícias sobre a possível alienação do Aquífero Guarani “perderam força” e não devem ser sequer rebatidas:

“Para alienar, fazer algum tipo de concessão, o governo precisa mudar a legislação. As águas subterrâneas são patrimônio dos estados. Uma iniciativa assim, se existisse, deveria ser encampada pelos estados. Essa suposta notícia vem sendo replicada por robôs, que manipulam a informação. Acaba perdendo força com o tempo”.

Thiago Ávila, do Fórum Alternativo, é mais cauteloso:

“Temos que ficar atentos para que a projetos de entrega de aquíferos à iniciativa privada não surjam no futuro com emendas constitucionais e medidas provisórias”.

Primo pobre, primo rico

Quando o assunto é orçamento, um abismo separa os dois eventos. Enquanto o 8º Fórum Mundial vai custar aproximadamente 22 milhões de euros (ou R$ 89 milhões), um terço desse valor virá dos cofres públicos (da União, do Distrito Federal e da Agência Nacional de Águas), organizadores do Alternativo calculam os gastos públicos em R$ 1,2 milhão – advindos de emenda parlamentar do deputado distrital Ricardo Vale (PT) e da Agência Nacional de Águas.

Segundo organizadores do 8º Fórum Mundial as receitas totais vêm de três fontes – receitas próprias (patrocinadores), receita com venda de espaço na feira e inscrições para as palestras. Ainda não há um link atualizado na internet com acesso à planilha de custos do evento.

“Historicamente, o Fórum Mundial custa em média 30 milhões de euros. Conseguimos fazer por cerca de 20 milhões de euros. É importante lembrar que o Fórum não é um evento de uma semana, é um evento de três anos. Nosso site recebeu mais de 300 mil acessos em consultas públicas on-line, mais de 5 mil pessoas participaram do Processo Cidadão, reuniremos mais de 200 parlamentares do mundo todo, serão 338 sessões de debate”, defende Ricardo Andrade.

A turma do Fórum Alternativo é bastante crítica com o que considera “gasto excessivo” do primo rico.

“O valor gasto no Fórum das Corporações é absurdamente excessivo”, critica Thiago. “Estamos recebendo o fórum mais caro do mundo, assim como temos o Estádio Mané Garrincha, um estádio superfaturado, que virou caso criminal”.

Discrepâncias também no valor das inscrições. Para participar do 8º Fórum Mundial, o participante deve desembolsar, para ter acesso ao evento todo, R$ 1.490 (estudantes pagam R$ 595). Para acesso a um dia, R$ 455 (R$ 175 estudantes). Já no Alternativo, é possível se inscrever sem gastos. Para quem pode ajudar, a inscrição custa de R$ 50 a R$ 500.

A pesquisadora Ana Lúcia Britto, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), participará dos dois eventos e enxerga objetivos diferentes. Mas critica o alto valor das inscrições do oficial:

“Claro que no evento oficial teremos chefes de estado e uma questão de segurança, mas dava para montar um evento mais democrático. A sociedade civil não pode participar de um evento cuja inscrição custa R$ 750 reais”, avalia.

Serviços:

Fórum Mundial da Água

De 18 a 23 de março

Locais: Centro de Convenções Ulisses Guimarães e Estádio Mané Garrincha

Inscrições: http://www.worldwaterforum8.org/

Fórum Alternativo Mundial da Água

De 17 a 22 de março

Locais: Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade e UNB (ASA Norte)

Inscrições: www.fama2018.org

Emanuel Alencar

Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa mestra em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.

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