Martinha: ‘Fui presa mais de 200 vezes na ditadura’

Baiana, a travesti de 62 anos começou a se prostituir aos 8 após fugir de casa com medo da mãe, que ameaçava envenená-la

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 17 de outubro de 2018 - 22:30 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2024 - 09:54

Na época do boom da Aids, Martinha conta que travestis eram expulsas dos ônibus de Salvador (Foto: Karol Azevedo)

Na época do boom da Aids, Martinha conta que travestis eram expulsas dos ônibus de Salvador (Foto: Karol Azevedo)

Baiana, a travesti de 62 anos começou a se prostituir aos 8 após fugir de casa com medo da mãe, que ameaçava envenená-la

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 17 de outubro de 2018 - 22:30 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2024 - 09:54

O #Colabora foi até Salvador, na Bahia, para conhecer aquela que viria a ser a personagem do segundo episódio da série LGBT+60: corpos que resistem: Marta Maria de Sá, travesti de 62 anos, mais conhecida como Martinha.

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Durante a viagem do Rio para a capital baiana, aproveito para ler uma reportagem sobre Martinha escrita pelo jornalista Jordan Dafné para o Correio 24 horas. A cada parágrafo, eu precisava parar um pouco. A história de Martinha é forte e de deixar qualquer roteirista de boca aberta.

Na época do boom da Aids, Martinha conta que travestis eram expulsas dos ônibus de Salvador (Foto: Karol Azevedo)

Quando criança, foi expulsa de quatro colégios. Por causa dos trejeitos femininos, era considerada “um mau exemplo para os colegas”. Em casa, a realidade também era dura. Sofria ameaças da própria mãe que afirmava que lhe daria uma injeção de estricnina (veneno para rato) enquanto ela dormia ou enfiaria pimenta em seu ânus. Sem escola e com medo de ficar em casa, Martinha foi para rua. Dormia pelas praças de Salvador. A prostituição foi a saída encontrada para sobreviver. Martinha era uma menina. Tinha apenas 8 anos quando fez seu primeiro programa.

Eu precisava conhecê-la.

Pegavam a gente, levavam para a praia deserta, mandavam uma segurar no membro da outra e mandavam a gente cantar ‘Ciranda Cirandinha’

Martinha Maria de Sá
Ativista

Martinha chega à sede do Grupo Gay da Bahia – local escolhido por ela para a entrevista – no Pelourinho, com duas muletas. O corpo está debilitado. Nos últimos anos, sofreu dois AVCs. Escolho o lugar que seria mais confortável para ela sentar. Não foge de nenhuma pergunta e se mantém séria em praticamente todas. O riso tímido só vem quando brinca ao falar que o silicone a deformou.

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A seriedade é de quem precisou ser forte e resistir, sempre. Pelo corpo, marcas da ditadura. Foi presa mais de 200 vezes. Na época do golpe militar, que teve início em 1964, foi vítima de uma verdadeira caça a tudo que era não era considerado como bons costumes sociais. “A gente ia comprar uma carne no açougue de manhã, a polícia via e levava”, conta. Os abusos físicos e sexuais eram constantes: “Pegavam a gente, levavam para a praia deserta, mandavam uma segurar no membro da outra e mandavam a gente cantar ‘Ciranda Cirandinha’”. Na sobrancelha, mostra a cicatriz após uma “cabada” de revólver que levou de um policial.

Martinha mostra cicatriz resultado de violência policial durante a ditadura militar: “A gente ia comprar uma carne no açougue de manhã, a polícia via e levava” (Foto: Karol Azevedo)

Apesar do passado doloroso, ela sonha. E seu sonho é dos mais nobres. Quer abrir uma casa de apoio para LGBTs que são expulsos de casa. Quase chegou a realizar, mas colocaram fogo na casa que comprou após um período em que se prostituía quase 24 horas por dia.

Vítimas da Aids, da violência policial ou da transfobia, praticamente todas suas amigas travestis ou trans já se foram. Martinha é uma resistente. “Eu acho que é como se Deus me escolhesse para poder estar viva para poder contar essas histórias para as gerações de hoje”.

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Obrigada a sair de casa aos 8 anos, Martinha quer abrir uma casa de apoio para LGBTs
Obrigada a sair de casa aos 8 anos, Martinha quer abrir uma casa de apoio para LGBTs: “É como se Deus me escolhesse para estar viva” (Foto: Yuri Fernandes)

LGBT+60: CORPOS QUE RESISTEM

 

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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7 comentários “Martinha: ‘Fui presa mais de 200 vezes na ditadura’

  1. Karolina disse:

    Uma pauta muito legal e informações relevantes. É bom ver que na nossa terra,Ipatinga, tbm tem gente boa. Pq aqui a coisa está sombria…Somos a resistência.

  2. Orlando Barbosa de Souza disse:

    A comemoração da vida nem sempre é daria e para muitos onde a tortura ainda acaba sendo o acolhimento cotidiano não se sabe quando se vai ter comemoração, eu sei que esparramar sua historia vai gerar muitos frutos que estarão alegrando seus dias enquanto haver dias para alegrar-se, muito obrigado por nos lembrar sobre o quanto somos brutos, precisamos nos nivelar com sentimentos mais nobres que fogem da violência pregada pelo machismo.

  3. Fernanda Borges disse:

    Martinha não é tão somente uma sobrevivente, como também uma verdadeira heroína. Que orgulho dessa mulher. Seus depoimentos são sempre emocionantes. Com certeza, ela é uma eleita pelo Universo para nos transmitir uma mensagem de força. Eu, enquanto mulher trans, me sinto absurdamente representada por ela. Gostaria muito de poder ajudá-la no seu nobre sonho. Ela merece uma casa, com pessoas que possam cuidar dela também. Obrigada pela matéria e entrevista com a Martinha. Obrigada por dar ouvidos à nossa causa. Gratidão <3

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