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Sem dados, ações para mulheres trans e travestis em situação de rua são escassas
Especial 'Com Nome, Mas Sem Endereço' | Pesquisas nacionais não consideram questões sobre identidade de gênero, o que impacta na formulação de políticas para pessoas trans sem moradia.
No Brasil, a última pesquisa nacional voltada para a população em situação de rua foi divulgada em 2009, como esforço para construir a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR). Desde então, não foi realizada outra contagem oficial em âmbito federal da população em situação de rua. Quando buscados dados sobre identidade de gênero, as informações são ainda mais escassas. Nas ruas, mulheres trans e travestis são as mais vulneráveis a uma série de violações e ataques.
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A professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Paula Muriael comenta que outras pesquisas técnicas vêm tentando acompanhar o fenômeno como um todo. Um deles é o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que parte de dados do Cadastro Único (CadÚnico), do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo SUAS) e do Registro Mensal de Atendimento de Abordagem Social (RMAS), segundo a professora.
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Veja o que já enviamos“Como não há um censo nacional, existe uma busca dos pesquisadores em censos feitos nas grandes cidades, justamente porque é onde a população em situação de rua está mais concentrada e que também vão demonstrar uma tendência de crescimento desse grupo”, afirma a docente. “Esse crescimento nos grandes centros e esse crescimento mais geral no Brasil acompanha o cenário que se seguiu após a crise dos mercados imobiliários em 2007 e 2008, que depois se tornou uma crise financeira”, acrescenta.
Para Bianca Resende da Silva, assistente social formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora da dissertação de mestrado “Não somos invisíveis. O crescimento da população em situação de rua no contexto recente: O caso da cidade de Niterói”, apesar dos dados coletados a partir do registro no CadÚnico serem considerados base de informação para publicações nacionais que abordam a população sem moradia no país, esses números não representam o total de pessoas nessa condição no Brasil, já que muitos não conseguem acessar os serviços públicos por motivos como preconceito e falta de documentos, o que também dificulta o acesso aos programas de assistência como Bolsa Família e Auxílio Emergencial.
A pesquisadora defende que “o país carece de uma entidade única que quantifique a população em situação de rua, são vários os órgãos responsáveis pela coleta de dados referentes a esse grupo. Mesmo municípios de grande porte, como São Paulo e Rio de Janeiro, não possuem uma instituição específica para levantar essas informações”. Ainda, dos dez municípios com as maiores populações sem moradia do país, apesar de nove — São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Fortaleza, Porto Alegre, Campinas e Florianópolis — realizarem pesquisas próprias voltadas para esse grupo, os levantamentos não acontecem todos os anos e nem todos estão disponíveis para o acesso do público. A exceção é a capital do Paraná, que, por meio da Secretaria Municipal da Comunicação Social, informou que a cidade “ainda não fez pesquisa sobre esse segmento, mas atua junto a ele por meio de algumas frentes”.
Informações escassas sobre população trans
O Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), plataforma virtual de acesso público desenvolvida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), traz que o país não tem pesquisas censitárias ou registros administrativos federais que possibilitem responder quantas são as pessoas LGBTQIAPN+ no Brasil, muito menos em condição de rua. A questão não foi nem mesmo abordada para a população geral no último Censo Demográfico, divulgado em 2022; já a edição anterior, de 2010, trouxe informações sobre casais homoafetivos, sem incluir pessoas transexuais e a identificação de pessoas bissexuais.
Becca Carnavale, formada em Direito pelo Centro Universitário Geraldo Di Biase e aluna do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve pesquisa sobre sujeitos sociais e proteção social, com recorte específico para a população transexual e travesti, analisa que por trás da ausência de dados, há um desinteresse político em dar protagonismo para essas informações. “Trata-se de mais uma ferramenta do próprio Estado para marginalizar e negar a nossa existência. Inclusive, temos algumas associações como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Grupo Gay da Bahia que fazem esse trabalho há anos e não recebem sequer uma verba do Estado para conseguir levantar esses dados. Muitas das políticas públicas que temos hoje são baseadas nesses relatórios, então é de grande importância que o Estado garanta que esses dados sejam levantados”, defende a pesquisadora.
“Sem materialidade, sem dados, não conseguimos ter um panorama de qual é o tamanho do problema, então não temos como discutir uma política de empregabilidade para homens e mulheres trans e travestis, por exemplo, se não temos sequer um número de quantas dessas pessoas estão desempregadas. Sem dados, também não temos a porcentagem da população trans e travesti que depende da prostituição como fonte de renda, dificultando muito a implementação de medidas públicas”, avalia. De acordo com a mestranda, muitos dos dados divulgados atualmente, inclusive em pesquisas científicas, são baseados em notícias publicadas em jornais e relatos que chegam à polícia sobre casos de violência: “Se os dados que temos hoje já são dados elevados, mesmo com essa fragmentação para conseguir a informação, imagina se tivéssemos de fato um órgão protagonizando a coleta dessas informações? A realidade seria muito pior e com certeza esses números cresceriam muito se tivéssemos um aparato estatal disponível para a coleta desses dados”, questiona.
A inexistência desses dados produz efeitos na implementação de políticas públicas, que dependem de informações mínimas para serem estabelecidas. Essa ausência, no entanto, não justifica a inexistência de ações governamentais ou a existência de políticas insuficientes para atender a comunidade LGBTQIAPN+ em situação de vulnerabilidade, como esclarece Cleyton Feitosa, mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com pesquisa sobre políticas públicas para a população LGBTQIAPN+, e doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB). “Mesmo que não tenhamos dados exatos e precisos, temos ainda muitas pesquisas acadêmicas e científicas de organizações que fazem o levantamento de informações quantitativas e qualitativas da comunidade LGBTQIAPN+. Esse arcabouço de estudos já são indicadores que podem subsidiar iniciativas públicas”.
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o MDHC informou à reportagem que entre as informações disponíveis sobre pessoas inscritas no CadÚnico, não constam dados sobre identidade de gênero ou orientação sexual. A resposta enviada traz que “por esta razão, não estão disponíveis no ObservaDH dados sobre a população de rua LGBTQIAP+ nos municípios brasileiros. Tais informações também não foram identificadas em outras 32 bases de dados nacionais consultadas, a exemplo do Censo do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) e o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)”.
Mulheres trans no poder político: avanços
Mesmo com a ausência de dados, Carnavale destaca que houve um avanço nas medidas voltadas para a proteção da comunidade LGBTQIAPN+, especialmente com a eleição de figuras políticas que integram a comunidade, como as deputadas Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), e com a criação da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. “Eleger pessoas trans e travestis e colocá-las nos espaços de poder é de grande importância para a discussão avançar e sair do âmbito social para o político, mas quando falamos sobre políticas públicas, considerando especificamente pessoas trans e travestis, enfrentamos um grande problema que é generalizar as demandas da comunidade LGBTQIAPN+. Apesar de fazermos parte da mesma comunidade, as demandas não são as mesmas”.
A pesquisadora defende que o erro da estruturação e da implementação dos programas existentes está exatamente na idealização da comunidade LGBTQIAPN+ como uma só, sobretudo considerando as questões apenas de homens gays, grupo mais expressivo social e politicamente. “Essas ações acabam não sendo inclusivas, porque quando a política pública é implementada sem considerar um viés interseccional não consegue, ou não vai conseguir, alcançar os resultados esperados no desenho dela se não considerarmos identidade de gênero, raça e localização geográfica”, explica. “Sinto que políticas são implementadas em alguma medida, mas sempre favorecendo uma parte da comunidade e esquecendo quem está na ponta”, continua.
Carnavale argumenta, por exemplo, que questões como empregabilidade não são levantadas por outros grupos da comunidade LGBTQIAPN+, enquanto essa é uma questão central para as mulheres trans e travestis, sobretudo para aquelas em situação de vulnerabilidade e sem um endereço fixo. A aluna do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFF afirma que a empregabilidade e a transfobia estão diretamente associadas à fome, “porque se uma pessoa não consegue emprego por ser quem ela é ou pela sua identidade de gênero, ela é obrigada a ir para situação de rua ou a se prostituir para conseguir dinheiro”.
Assistente social do Centro de Cidadania LGBTI Metropolitana I, em Niterói, Renata Marques traz que a discriminação e a falta de treinamento dos profissionais que atendem ou atuam com pessoas em situação de rua também pode ser interpretado como um fator que leva à falta de assistência e ao apagamento desse grupo dos dados e da construção de medidas de assistência. Em 2022, por exemplo, 97,5% dos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pops) informaram ter atendido a população LGBTQIAPN+, no entanto, profissionais de apenas cerca de um terço deles (37,6%) participaram de capacitações sobre população LGBTQIA+, orientação sexual e identidade de gênero segundo o ObservaDH.
Além disso, de acordo com levantamento do Programa Atenas — uma aliança de diversas instituições que monitora políticas públicas voltadas para a comunidade —, das 27 unidades federativas do país, 19 não contam com um plano ou programa específico para a população LGBTQIAPN+. Apresentam ações para esse grupo, conforme o levantamento, Rio de Janeiro, Ceará, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, São Paulo, Mato Grosso, Piauí e Goiás. Mesmo direitos básicos não são expressivos nas legislações estaduais, já que 52% dos estados não têm leis para nome social para pessoas transexuais e travestis e apenas 51% apresentam penalidades administrativas para casos de preconceito por identidade de gênero ou orientação sexual.
O diferencial do Rio para pessoas trans
Entre as unidades federativas, o Rio de Janeiro se destaca como primeiro colocado no ranking do levantamento pelo seu programa contra a LGBTfobia. Inaugurado em 2010, o Programa Rio Sem LGBTIfobia oferece acompanhamento social, acolhimento psicológico e orientação jurídica em 20 unidades de atendimento, sendo assessorado pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A capital do estado também é uma das poucas cidades que, além de realizar o levantamento censitário próprio da população em situação de rua, como definido pelo Decreto Municipal 46.483/2019, traz também questões relacionadas à identidade de gênero dessa população — o Censo de População em Situação de Rua do Rio de Janeiro, realizado em novembro de 2022, contabilizou 7.865 pessoas sem moradia no município, representando um aumento de 8,15% com relação ao estudo anterior, em 2020. Do total, 56 pessoas se apresentaram como mulheres trans e travestis, cinco a mais que no último ano de pesquisa.
Para Marques, o fato do Rio de Janeiro contar com um programa estadual bem avaliado de assistência para a população LGBTQIAPN+ vulnerável pode ser um dos motivos para a vinda de pessoas da comunidade nessa condição para o estado. De acordo com dados fornecidos pelo Programa, em 2023 foram realizados 21.895 atendimentos a 14.860 pessoas, com mulheres trans representando 26,39% dos realizados. “Mulheres trans e travestis, em sua maioria negras, empobrecidas e em situação de extrema vulnerabilidade e insegurança alimentar, muitas até mesmo de outros estados, como São Paulo e Minas Gerais, formam o principal grupo que recorre aos Centros. Neles, recebem ajuda para acessar benefícios sociais, como Bolsa Família, emitir a segunda via dos documentos básicos e encontrar formas de empregabilidade”, informa a assistente social.
“Vivemos em uma sociedade que já avançou muito no aspecto dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, mas ainda precisamos caminhar e avançar bastante na perspectiva para a efetivação dos direitos de cidadania das mulheres trans e travestis”, ressalta Carnavale. Na mesma linha, Feitosa destaca que os governos municipais, estaduais e federal precisam saber quantos são e como vivem as pessoas que integram a comunidade para elaborar estratégias efetivas e alocar recursos: “Não é possível elaborar políticas públicas para uma população que você não conhece”, declara.
Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.
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Francielly Barbosa
Estudante de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), é fascinada por contar histórias com foco em desigualdades sociais, direitos humanos e questões de gênero. Na universidade, integrou o jornal O Casarão, a web rádio Nas Ondas do IACS e o projeto de pesquisa "Mídia, juventude e suicídio: um estudo sobre os padrões de cobertura da morte auto-provocada". Atuou como estagiária de redação na Agência Nossa e de assessoria de imprensa, com foco em divulgação científica, na UFF.