Ingrid Villaseñor: resistir, sonhar e recriar a Guatemala desde suas raízes

Com a crença de que educar é transcender, Ingrid mobiliza comunidades para reconstruir o país a partir de ensino transformador

Por Camila Batista | ODS 10ODS 4
Publicada em 10 de novembro de 2025 - 08:37  -  Atualizada em 10 de novembro de 2025 - 09:33
Tempo de leitura: 14 min

Ingrid Villaseñor cercada pelas crianças do projeto Tejiendo Futuros (Tecendo Futuros): educação holística, saúde e fortalecimento comunitário na Guatemala (Foto: Arquivo Pessoal)

Imagine caminhar por ruas de paralelepípedos, entre ruínas coloniais espanholas e montanhas vulcânicas ao fundo.  Desembarcamos em uma cidade que parece ter parado no tempo, Antigua Guatemala, Patrimônio Mundial da Unesco. Não “antiga” no sentido comum da palavra, mas Antigua, ou La Antigua. Nome próprio de uma história viva.

Fundada no século XVI, foi capital da Capitania-Geral da Guatemala por mais de 200 anos. Sua elegância barroca, marcada por igrejas e casarões coloridos, sobreviveu aos séculos e até mesmo a um terremoto devastador em 1773, que encerrou seu reinado político. 

Leu essa? Julie e a República Democrática do Congo: história de resistência e transformação

Hoje, suas fachadas restauradas contam um passado de esplendor e resistência, revelando uma cidade que preserva sua alma. É nesse cenário, entre memórias de um passado distante que ainda habita o presente, que começa a história da nossa querida Ingrid Villaseñor.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Nascida em 1970, na Cidade da Guatemala, a caçula entre cinco irmãs, Ingrid cresceu cercada por amor, mas também pelas cicatrizes de um país em conflito. Seu pai, um ativista e defensor dos direitos humanos, cresceu em situação de extrema pobreza e tornou-se uma voz muito influente na luta por direitos sociais e pela reforma agrária no país. Ele defendia um sonho de um país mais justo  e, em certos tempos e lugares, acreditar em voz alta é um risco. 

Ingrid Villaseñor, com sua "Mami Titi": pai, ativista dos direitos humanos na Guatemala foi sequestrado e desapareceu; mãe cuidou das cinco filhas
Ingrid Villaseñor, com sua “Mami Titi”: pai, ativista dos direitos humanos na Guatemala foi sequestrado e desapareceu; mãe cuidou das cinco filhas

Quando Ingrid tinha apenas 10 anos, seu pai foi sequestrado em meio ao conflito armado. Durante anos, a esperança de seu retorno habitou a casa, ao mesmo tempo em que o medo e o silêncio tentavam se impor. E muitas vezes conseguiam. 

O legado vivo de amor incondicional, justiça, coragem e resiliência de meu pai vive em mim, e foi isso que acendeu a chama para que eu me tornasse uma voz de mudança para o meu país

Ingrid Villaseñor
Educadora, empreendedora e ativista da Guatemala

A infância de Ingrid foi marcada pela violência política e pela força das mulheres que a cercavam. “Éramos só mulheres em casa”, relembra. A mãe, Argentina Villaseñor, viúva tão jovem, assumiu o sustento da família e, mesmo diante das ameaças, nunca deixou de lutar. Ainda assim, “Mami Titi”, como a chamavam, advertia as filhas: “Não se envolvam com política. Não façam teatro. Não falem do seu pai.” 

O sobrenome Villaseñor era perigoso.  Assim, a infância deu lugar a uma juventude em alerta constante. Para Ingrid e suas irmãs, o cotidiano precisou aprender a andar na ponta dos pés.

Uma vida de equilibrista para a família; uma vida de extremos e desafios para o país.

A história da Guatemala, afinal, se escreve nessas profundidades e tensões.

Ingrid Villaseñor, ao lado da filha Adriana Aguilar em palestra sobre o Teciendo Futuros: mobilização de comunidades na Guatemala para reconstruir o país a partir de uma educação transformadora (Foto: Arquivo Pessoal)
Ingrid Villaseñor, ao lado da filha Adriana Aguilar em palestra sobre o Teciendo Futuros: mobilização de comunidades na Guatemala para reconstruir o país a partir de uma educação transformadora (Foto: Arquivo Pessoal)

Riqueza natural e cultural, desigualdade social

Mais da metade da população vive em áreas rurais, e o país abriga 24 grupos linguísticos e quatro povos: Maya, Garífuna, Xinca e Ladino. A riqueza cultural convive com uma das maiores desigualdades da América Latina: 61% da população vive na pobreza, e 19,9% em pobreza extrema. 

Entre os principais desafios estruturais da Guatemala estão a alta prevalência de desnutrição infantil crônica, a baixa cobertura e qualidade da educação, e o acesso limitado a serviços de saúde. O país apresenta uma das taxas mais altas de gravidez precoce da América Latina: mais de quatro mil meninas entre 10 e 14 anos tornam-se mães a cada ano, enquanto a mortalidade materna continua entre as mais elevadas da região. A desnutrição atinge cerca de 65% das crianças indígenas, e as mulheres indígenas têm, em média, apenas três anos de escolaridade.

Além disso, o país é altamente vulnerável a desastres naturais e desafios ambientais, incluindo terremotos, furacões e secas, que afetam de forma desproporcional as comunidades mais pobres. A degradação ambiental também aprofunda a pobreza rural e a insegurança alimentar já existentes. 

De fato, ser mulher na Guatemala é resistir. Sobreviver, criar, ensinar, tecer memórias, reconstruir comunidades. Mesmo quando o Estado falha, mesmo quando o mundo não olha

Ingrid Villaseñor
Educadora, empreendedora e ativista da Guatemala

Desde pequena, Ingrid aprendeu com seu pai o verdadeiro significado de coexistir com igualdade e equilíbrio, valores que reforçou durante seus estudos na Universidade Pública de Guatemala, a Universidad de San Carlos de Guatemala. Foi nessa fase que ela reencontrou o fio invisível que a conectava com o legado paterno. “O legado vivo de amor incondicional, justiça, coragem e resiliência de meu pai vive em mim, e foi isso que acendeu a chama para que eu me tornasse uma voz de mudança para o meu país”.

Casada e mãe de dois filhos, mudou-se para Sololá, uma das regiões mais pobres da Guatemala, às margens do lendário Lago Atitlán. Nesse cenário de belezas naturais impressionantes, vivenciou de perto o contraste entre o turismo vibrante da região e a dura realidade das comunidades maias. Enquanto os turistas desfrutam das paisagens e da cultura local, muitas famílias enfrentam dificuldades extremas, sem acesso a serviços básicos.

Diante dessa brecha, Ingrid percebeu a urgência de conectar tradição, cultura e desenvolvimento comunitário. Era hora de transformar dor em ação. Começou a pensar formas de apoiar as mulheres locais a prosperarem, sonhando com iniciativas que fortalecem a autonomia e valorizem o conhecimento ancestral. “Ser ‘mujer’ em Guatemala sempre foi um ato de resistência. As mulheres já estão liderando mudanças estruturais, mas existe espaço para fazermos mais e principalmente para sermos reconhecidas por isso”, diz Ingrid, hoje com 55 anos.

De fato. 

As mulheres representam 51% da população da Guatemala, mas apenas 2% das prefeituras são chefiadas por elas. Em um país onde a governança local desempenha um papel crucial no acesso a serviços, educação e políticas de desenvolvimento, esse dado evidencia profundas desigualdades estruturais. Ele revela como barreiras históricas e culturais limitam a participação feminina na tomada de decisão e sabemos que isso impacta diretamente o fortalecimento das comunidades e a implementação de mudanças sociais duradouras.

A falta de liderança institucional contrasta com a força das mulheres nas comunidades locais, que seguem transformando seus territórios dia após dia. Não é por acaso que a Guatemala é berço de figuras inspiradoras, como Rigoberta Menchú Tum. Nascida em uma família camponesa indígena maya, Rigoberta enfrentou pobreza, discriminação, violência e a morte de familiares durante o conflito armado. Essas experiências a levaram, desde muito cedo, a engajar-se em causas sociais e na defesa dos direitos humanos de seu povo. Além de ativista, é escritora, registrando memórias, experiências e a história de sua comunidade. Para ela, assim como para muitas de nós, a escrita é ferramenta de resistência e denúncia. 

Ingrid reforça: “De fato, ser mulher na Guatemala é resistir. Sobreviver, criar, ensinar, tecer memórias, reconstruir comunidades. Mesmo quando o Estado falha, mesmo quando o mundo não olha.”

Crianças do projeto Tejiendo Futuros (Tecendo Futuros) em parada escolar na Guatemala: espaço onde a escola é cooperativa, sustentável e enraizada na comunidade (Foto: Arquivo Pessoal)
Crianças do projeto Tejiendo Futuros (Tecendo Futuros) em parada escolar na Guatemala: espaço onde a escola é cooperativa, sustentável e enraizada na comunidade (Foto: Arquivo Pessoal)

Educação transformadora para a Guatemala

Ao chegar a Sololá, Ingrid começou vendendo comida, um dom herdado de sua mãe, e logo foi convidada por ONGs locais para preparar refeições em projetos sociais. Mais tarde, recebeu uma bolsa de estudos para cursar desenvolvimento comunitário e, pouco depois, passou a trabalhar com mulheres empreendedoras no UNIFEM, o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher.

Aos 25 anos, viveu uma virada decisiva: viajou a Israel para participar de um curso sobre empoderamento econômico feminino. De volta à Guatemala, passou a liderar um projeto com 28 comunidades maias, dedicando-se à construção de escolas, bibliotecas e programas voltados às famílias. Nascia ali o sonho de dedicar sua vida à promoção de uma educação verdadeiramente transformadora para seu país.

Em 2017, Ingrid fundou sua própria organização, dedicada à educação holística, à saúde e ao fortalecimento comunitário: Tejiendo Futuros (Tecendo Futuros). Um espaço onde a escola é viva: cooperativa, sustentável, enraizada na comunidade e livre de dependências externas.

A Guatemala de Ingrid é um país jovem, a média de idade das mulheres é de 26 anos, e pulsante de vozes feministas, indígenas e comunitárias que estão reinventando o futuro. 

Rigoberta e Ingrid são apenas duas das muitas mulheres que lideram essa luta diária na Guatemala. Mas vêm à mente tantos outros nomes e histórias que inspiram força e transformação.

Para mim, era essencial ressignificar não apenas a vida do meu pai, mas também abrir caminho para dar novo sentido à vida de todas as pessoas que foram desaparecidas e assassinadas durante o conflito armado

Ingrid Villaseñor
Educadora, empreendedora e ativista da Guatemala

Desde aquelas desbravadoras que abriram espaço para debates essenciais e desafiaram as convicções conservadoras da sociedade da época, questionando abertamente o papel da mulher em temas como sexualidade, gravidez, casamento e liberdade individual. Como a escritora Ana María Rodas, nascida em 1937, que presenciou a Revolução de 1944 e os anos difíceis que se seguiram. Jornalista e poeta, publicou obras ousadas e profundamente humanas, como Poemas de la izquierda erótica. Seu primeiro livro provocou grande repercussão, pois estava destinado a marcar toda uma geração. Sua escrita tornou-se referência da literatura feminina centro-americana. 

Há também Sônia Gutierrez Raguay, advogada e defensora dos direitos indígenas,  nascida em 1981, que se tornou a primeira mulher maia eleita deputada pelo Congresso da República pelo partido WINAQ e escolhida como quinta Secretária da Junta Diretiva.

E a incrível cantora Sara Curruchich, originária do povo kaqchikel, que leva sua música em kaqchikel e espanhol a palcos internacionais. Nascida em San Juan Comalapa, em 1993, suas canções abordam temas sociais essenciais, como os direitos das mulheres e dos povos indígenas, transformando cultura e arte em expressão de identidade e empoderamento.

“A resposta está aqui, na própria comunidade. Juntos, somos força”, afirma Ingrid.

Crianças do projeto Tecendo Futuros em Sololá, Guatemala: educação transformadora (Foto: Arquivo Pessoal)
Crianças do projeto Tecendo Futuros em Sololá, Guatemala: educação transformadora (Foto: Arquivo Pessoal)

Ingrid me diz que pertence a uma geração que não esquece e que quer transformar memória em mobilização e ação concreta. Ela acompanhou de perto os processos de reparação histórica e a busca por desaparecidos durante o conflito armado, enquanto procurava os restos mortais de seu próprio pai.

“Para mim, era essencial ressignificar não apenas a vida do meu pai, mas também abrir caminho para dar novo sentido à vida de todas as pessoas que foram desaparecidas e assassinadas durante o conflito armado.”

Enquanto preparava esta publicação, Ingrid me enviou uma mensagem para compartilhar uma grande notícia: estava a caminho do México para receber o Prêmio Global de Paz 2025, concedido pela Comisión Nacional para la Cultura de Paz (Comnapaz México) em reconhecimento à sua trajetória de compromisso com a paz e a justiça social. Essa notícia me trouxe grande alegria. A homenagem será entregue durante o VIII Foro Global de Cultura de Paz, nos dias 27 e 28 de novembro de 2025, no Congresso do Estado de Jalisco, em Guadalajara.

O prêmio celebra sua atuação incansável na promoção da reconciliação e da não violência por meio de projetos comunitários que transformam a vida de crianças, mulheres e famílias em toda a Guatemala. Um reconhecimento que, sem dúvida,  reafirma seu papel como uma voz tão inspiradora.

Obrigada, Ingrid Villaseñor. Honro a trajetória das mulheres que enfrentaram o medo, desenterraram verdades dolorosas e, ainda assim, escolheram sonhar com um país onde a educação nasce e se renova para aqueles que estão à margem.

Afinal, quem disse que o poder não reside na margem?

Camila Batista

Camila Batista Pinto, advogada e ativista pelos direitos das mulheres, é uma empreendedora social brasileira e COO da Migraflix, organização que promove a inclusão social e econômica de migrantes e refugiados na América Latina por meio do empreendedorismo; também preside o Conselho Consultivo da Migration Youth and Children Platform (MYCP), plataforma global oficial de participação juvenil em processos intergovernamentais e no sistema das Nações Unidas, e é conselheira da organização Palhaços Sem Fronteiras Brasil

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *