ODS 1
Inclusão de surdos nas aldeias
Especial 'Invisíveis dos Invisíveis' | Línguas Indígenas de Sinais traduzem a diversidade linguística nas diversas etnias. Mato Grosso do Sul saiu na frente e criou marco linguístico
Quando vai dizer o que é uma árvore, a professora Shirley Vilhalva não usa a voz. É usando as mãos e as Línguas Indígenas de Sinais (LIS) que ela mostra maneiras diferentes de sinalizar essa mesma palavra, uma floresta inteira de formas para cada uma das regiões brasileiras.
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As LIS são usadas por surdos indígenas e suas comunidades ao longo de vários anos, bem antes da Língua Brasileira de Sinais (Libras), que só foi oficializada em 2002. O primeiro registro de LIS que se tem conhecimento é da Língua de Sinais Ka’apor, documentada por um linguista e missionário americano em 1968, durante visita a uma aldeia no Maranhão. Nessa aldeia ocorreu um surto de uma doença infecciosa chamada “bouba neonatal”, que teria afetado as mulheres grávidas e, consequentemente, causado surdez nos recém-nascidos. Com isso, toda a aldeia se adaptou e criou uma língua de sinais para se comunicar com as crianças, se tornando todos bilíngues, ou seja, falantes da língua oral e da língua de sinais.
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Veja o que já enviamos“A Libras está cheia de sinais indígenas. Igual ao português, que tem um monte de palavras indígenas”, explica a professora Vilhalva, uma das maiores referências em estudos de Libras e de Lis e que trabalha com língua de sinais há quase 40 anos. “Antes de ter a língua é preciso ter a linguagem. Qualquer ser humano precisa de linguagem. Primeiro é a linguagem do pensamento, depois os sinais e em seguida a falada. A partir daí passa para a língua escrita. Para o ouvinte, falta base visual. Não porque não tem, mas porque não usa mais”, diz a professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
Vilhalva é surda e veio de uma família que possui surdos há várias gerações. “Venho de uma família política, que sempre lutou pela educação do surdo. Somos uma família que aprendeu a lutar desde cedo. Cresci em meio a sinais familiares. Não tinham nome, não tinha Libras, mas nos comunicávamos”.
Filha de mãe guarani e pai de origem cigana, Vilhalva lembra que em sua família se falava guarani e português. E algumas vezes espanhol, por morar no Mato Grosso do Sul (MS), região fronteiriça com o Paraguai. “Então eu olhava e sabia que uma boca falava diferente da outra boca, mesmo sem entender o que diziam”, lembra. Ela diz que ia muito para a aldeia quando criança. Não sabia o que era ser indígena, mas sabia que na aldeia todos eram fisicamente parecidos. Também não sabia que a língua que a mãe falava era guarani, mas entendia o que ela queria dizer. “Eu morava na cidade, então todo mundo que vinha da aldeia ou da fazenda ficava na minha casa”.
E foi na companhia de uma prima, que considerava irmã, que Vilhalva foi para a escola, aos sete anos. “O meu ouvido era ela. Na minha casa funcionava assim, um ouvinte sempre acompanhava um surdo”. Na escola, a prima ouvia as aulas e gesticulava para que ela entendesse. Em contrapartida, Vilhalva copiava tudo que a professora escrevia no quadro e depois passava para a prima. “Ela foi minha primeira intérprete”.
Mas no ano seguinte a professora resolveu separá-las. E Vilhalva passou a reprovar, porque não entendia a língua. “Eu não lia, na época ainda tinha prova oral, como eu iria fazer isso?”. Colegas de turma começaram a fazer o papel que antes era da prima. “Então eu fui seguindo, reprovando, mas seguindo. Era sempre a minha avó negociando com a diretora da escola, que sabia da minha deficiência, porque era nossa vizinha”, lembra.
Anos mais tarde, Vilhalva se tornaria a primeira diretora surda de uma escola pública brasileira, no Centro de Atendimento ao Deficiente da Audiocomunicação (Ceada). E assim iniciava sua trajetória de ativismo com as línguas de sinais e com indígenas surdos como ela. Desde os anos 1990, a professora passou a fazer um mapeamento e a buscar onde estavam os indígenas surdos. E a registrar as LIS e o bilinguismo indígena em aldeias pelo país.
“As pessoas com deficiência no Brasil sempre falam português. Nós surdos somos seres visuais da língua de sinais. Não queremos competir com a Libras. Na aldeia tem mais intérpretes de Libras do que línguas indígenas. É isso que tem que inverter”, defende.
Há pelo menos mais 30 LIS conhecidas e sendo catalogadas por pesquisadores indígenas e não-indígenas no Brasil, como afirma a professora Priscilla Sumaio, doutora em linguística e que, de 2011 a 2018, realizou trabalhos de campo na aldeia Cachoeirinha, no Mato Grosso do Sul (MS), registrando a Língua Terena de sinais. Ela diz que há registros de língua de sinais entre os Satere Mawé, Guarani Kaiowá, Kaingang, Paitér Suruí, Akwe-Xerente, Pataxó, entre outros.
A professora destaca a ocorrência de cerca de 20 mil línguas indígenas orais no Brasil durante a invasão portuguesa — hoje em dia, só existem em torno de 200. E assim como ocorre com as línguas orais indígenas, as LIS também correm o risco de se perder. “Os indígenas ouvintes estão perdendo ou sendo pressionados a abandonar a língua materna para falar português, e isso ocorre também com os indígenas surdos, que estão adotando a Libras e deixando de lado a sua língua de sinais, principalmente quando precisam estudar e trabalhar na cidade”, diz.
Sumaio diz que o estudo linguístico das LIS é mais do que um registro histórico ou léxico daquela língua, mas um registro sobre cultura, história, formação de identidade e a história do Brasil. “Além de tesouros inigualáveis, que são os conhecimentos botânicos, sobre ervas medicinais, preservação do meio ambiente e outros saberes que se perdem quando se perde uma língua”, diz.
Diferente da Libras, que é influenciada pela escrita na língua portuguesa, as línguas indígenas são ágrafas, ou seja, não são influenciadas pela escrita. Há algumas décadas, vêm surgindo propostas de grafia para as línguas orais. “Precisamos registrar essas línguas, fazer vocabulários, dicionários, gramática e assim fazer cursos de capacitação para professores indígenas que tenham interesse em aprender essas línguas”.
Língua Terena de Sinais (LTS)
Embora se tenha conhecimento de um número cada vez maior de LIS, a primeira língua indígena de sinais oficialmente registrada no Brasil foi a Terena, o que ocorreu em abril de 2023, no município de Miranda, no Mato Grosso do Sul (MS). O município passou a ter como línguas oficiais o português, Libras, língua terena falada, Língua Terena de Sinais (LTS) e o Kinikinau, referente à língua de outro grupo indígena com território no município.
A iniciativa para que isso ocorresse partiu da professora Ondina Antônio Miguel, indígena terena moradora da aldeia Cachoeirinha, território indígena que fica em Miranda. Ao perceber que alguns dos filhos não falavam, apenas apontavam os objetos, Ondina notou que havia algo de diferente nas crianças. Para que os filhos não se sentissem isolados, eles passaram a se comunicar por sinais. Dos seus sete filhos, três deles são surdos.
Em 2007, Ondina conheceu Denise Silva, professora que trabalhava na secretaria de educação de Miranda e fazia o doutorado sobre a Língua Terena falada. “Ela nos contou da dificuldade de comunicação com os filhos, pois eles iam para a cidade e tinham dificuldade de se comunicar”. A partir daí elas deram início a uma série de articulações e a uma rede multidisciplinar que uniu universidades, pesquisadores, município e várias instituições em prol da oficialização da Língua Terena de Sinais (LTS), entre eles o Instituto de Pesquisa da Diversidade Cultural (Ipedi), atualmente coordenado por Denise.
“A Ondina já tinha realizado dois encontros de surdos indígenas. Fizemos mais um e levamos essa pauta para uma vereadora, que se sensibilizou e propôs um projeto de lei, reconhecendo as línguas indígenas que são faladas no município de Miranda, incluindo a Língua Terena de Sinais”, diz.
Para a oficialização da língua foi necessário reunir os estudos linguísticos que confirmavam cientificamente que a LTS existia, o que foi feito tendo como base os trabalhos de pesquisadores como a professora Denise Silva e Priscilla Sumaio. “A Língua Terena de Sinais é completa, estruturada e desenvolvida, com uma gramática. Não são sinais caseiros e usados somente por um núcleo familiar. Os surdos terena, quando se encontram, inclusive entre aldeias terenas diferentes, estabelecem uma comunicação, dos mais velhos aos mais jovens”, explica Sumário, que realizou um estudo de descrição linguística da LTS.
“A referência dos terenas é puramente visual, não é influenciada por uma escrita de uma língua. Até porque línguas indígenas são ágrafas”, diz. Segundo a pesquisadora, já existem pelo menos três gerações de falantes da LTS, um dos mais antigos é uma indígena surda de 70 anos. E conhecer a língua se estende para a família toda, tanto aos parentes quantos aos amigos. “Todos aprendem a língua, eles não ficam isolados”, explica Sumaio.
Com a repercussão do trabalho, os pesquisadores souberam da existência de surdos de outras etnias, que procuraram a equipe demonstrando interesse para que fosse feito nas aldeias deles um trabalho similar ao que foi feito em Miranda.
Denise Silva explica que algumas línguas já possuem estudos linguísticos e que, mesmo assim, não foram institucionalizadas, como a Língua de Sinais Ka’apor, que é amplamente reconhecida, mas ainda não foi oficializada.
“É uma questão sensível, porque envolve políticas linguísticas, educacionais e da saúde e tudo isso necessita de investimento. Em Miranda nós conseguimos avançar porque tinha nossos estudos linguísticos, apoio da comunidade e vontade política”. A professora explica que é um trabalho que necessita de uma equipe multidisciplinar, além de tempo e recursos para mais pesquisas, mas que é um direito dos povos indígenas e precisa ser seguido.
Vilhalva diz que é essencial que municípios e estados registrem as línguas existentes e garanta a existência delas por lei. “A partir disso que fica garantido o trabalho linguístico. Se não tem uma legislação que garante a LIS no seu município, não tem como fazer uma formação de intérprete com verba especifica, federal estadual ou municipal para fazer o trabalho”, diz.
E lembra como foi com a Libras. “Nós lutamos para que fossem aprovadas várias leis estaduais e municipais antes da Lei federal. É assim que tem que ser. A partir da Lei criou-se a faculdade, para ter a formação do interprete para atuar na área”.
Para a professora Denise Silva, não tem como falar em direitos humanos se esses direitos não estiverem na língua que as pessoas falam. “Há um processo acelerado de perda dessas línguas e isso não ocorre porque as pessoas estão morrendo, mas sim porque o português está sendo imposto e essas pessoas não estão aprendendo a língua indígena”, diz.
Década das Línguas Indígenas
Em 2019, indígenas bolivianos apresentaram uma série de demandas e propostas à Organização das Nações Unidas (ONU), voltadas à necessidade urgente de preservação das línguas indígenas de modo geral. A iniciativa resultou na resolução A/RES/74/135, que estabeleceu o período de dez anos, de 2022 a 2032, como a Década das Línguas indígenas (Dili). A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) espera que seja possível catalogar e revitalizar o máximo dessas línguas durante esse período. Segundo dados do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações Unidas (Undesa), das 6,7 mil línguas do mundo, cerca de quatro mil são de povos indígenas.
Mas uma década pode não ser suficiente para conseguir reunir essas línguas antes que desapareçam. No lançamento da Década, em Paris, o então presidente da Assembleia Geral da ONU, o diplomata Csaba Kőrösi, declarou que a cada duas semanas uma língua indígena morre. E a estimativa para o futuro não é animadora. Segundo o diplomata, mais da metade de todas as línguas indígenas estarão extintas até o final deste século.
Como uma necessidade urgente de catalogação, preservação e revitalização para mudar esse cenário, a organização lançou um Plano de Ação Global, que visa fortalecer orientações e recomendações conjuntas elaboradas e coordenadas principalmente por indígenas. No Brasil, foram criados grupos de trabalho, com indígenas, não indígenas e sociedade civil, voltados para a promoção de ações de preservação da língua. Um desses grupos é o GT de Línguas Indígenas de Sinais.
Um dos objetivos é mapear as LIS existentes e institucionalizá-las, como explica a professora Vilhalva, que faz parte do GT. Para a professora, é a partir dessa oficialização que se garante verba para garantir o investimento no estudo e fortalecimento das LIS. Vilhalva diz que é importante atentar que a LIS não é igual a Libras, mas precisa ter o mesmo patamar de valor.
“O Ministério da Cultura precisa destinar recursos para as línguas de sinais indígenas também. Sou contra colonizar a LIS, porque parece igual ao que aconteceu com o português. A partir da oficialização é preciso criar uma faculdade para Letras-LIS, assim como existe a faculdade de Letras-Libras. Formar professores, formar material pedagógico”, diz.
Se cada etnia tem diferentes formas de sinalizar uma mesma palavra, como a árvore, que inicia esse texto, uma padronização das LIS está fora de cogitação. “A nossa ancestralidade tem semelhanças, mas existem situações próprias de cada língua. A Libras, por exemplo, você consegue interpretar sem conhecer a cultura, mas a LIS é complexa. Um intérprete Toré não consegue interpretar um Terena. A gente pode fazer a intermediação sim, mas é preciso da cultura”. A professora explica que um intérprete da região Sul é diferente de um intérprete do Nordeste, devido cada especificidade linguística e cultural das diferentes etnias. E isso precisa ser respeitado.
“Não queremos perder mais nenhuma língua e não vamos deixar de ter a língua que recebemos da nossa ancestralidade. Se fizéssemos isso seria apagamento, o que seria muita ignorância”, diz.
E destaca uma diferença essencial quando compara Libras e LIS. Ela diz que na Libras, a comunidade que as crianças vivem é dos falantes e do intérprete. A criança só se comunica quando tem alguém que sabe a língua, numa escola de surdos ou salas bilíngues. “Na aldeia, a família emerge a língua dentro de casa, toda a família sabe se comunicar, a criança não fica isolada porque estão em comunidade”, finaliza.
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Vanessa Monteiro é de Belém (PA), jornalista e divulgadora científica na e da Amazônia. Especializada em comunicação científica, responsabilidade socioambiental e mestra em comunicação. Atua com jornalismo profissional desde 2008, o que inclui experiência na comunicação pública, jornalismo de revista, impresso e tv. É também pesquisadora da imprensa radiofônica paraense e estudante da comunicação acessível. Adepta da linguagem simples, pois entende que a comunicação é uma das principais barreiras que impedem a inclusão.