ODS 1
Infanticídio indígena: uma guerra ideológica em torno do tema
Especial 'Invisíveis dos Invisíveis' | Projeto de lei tramita há 17 anos no Congresso e é alvo de críticas ferozes. Para pesquisadores, proposta visa desumanizar os indígenas, além de ser racista
A quem interessa demonizar e desumanizar os povos indígenas? Para a pesquisadora Rosani de Fátima Fernandes, mestra em Direito e doutora em Antropologia, esse é o principal questionamento que se deve fazer quando o assunto é infanticídio indígena. A prática é costumeiramente apontada como um dos motivos para os poucos relatos da existência de pessoas com deficiência convivendo nos territórios indígenas ao longo do tempo.
Oriunda da etnia Kainkang, Fernandes considera o tema mais uma tentativa de criminalizar os povos indígenas, a partir de acusações que não são baseadas em dados concretos ou pesquisas profundas e confiáveis sobre o assunto. Ela defende que é preciso problematizar os cinco séculos de tratamento desumanizado dispensado a essa população. “Colocam os povos indígenas nas categorias de selvageria e barbárie, o que foi usado como justificativa não só para escravizá-los como para exterminá-los”, analisa.
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Fernandes afirma que o infanticídio indígena é um tema que precisa ser analisado dentro de um contexto histórico. E cita, por exemplo, o período das “correrias” – época em que expedições armadas entravam na floresta visando a escravização, expulsão e extermínio dos indígenas, para que, assim, ocorresse a exploração de seus territórios. Extremamente violentas, as “correrias” chegaram a extinguir povos inteiros, reduzindo drasticamente a população de indígenas em várias regiões do país. Na Amazônia, as “correrias” se deram, principalmente, no século 19 — período de extração da borracha, e contrariavam as legislações existentes desde o século 18 e que proibiam a escravização indígena.
“O infanticídio ocorria em resposta a uma situação de extrema vulnerabilidade e de falta de condições de manter uma criança ou uma pessoa com deficiência viva”. Ela diz que era uma prática, portanto, para proteger o próprio grupo: “Como correr e fugir dos perseguidores dentro de uma mata fechada com uma pessoa que não tinha condições de se locomover? Como amamentar uma criança recém-nascida quando a mãe falece e não se tem outra pessoa em condições de amamentar a criança, sendo o leite materno a principal fonte de alimento dos recém-nascidos? Em um grupo nessas condições não teria como garantir a continuação da vida dessa pessoa”.
São situações que ela diz que não devem ser consideradas nos dias atuais, já que as condições demográficas, territoriais e de assistência à saúde dos povos indígenas passaram por modificações. “A própria demarcação das terras indígenas, a possibilidade de acessar educação escolar e acessar políticas públicas mudou a possibilidade de ocorrência desses casos isolados”, afirma.
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Veja o que já enviamosAdoção e aldeias de refúgio
O professor Uwirá Xakriabá, indígena, doutor em Antropologia e docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), campus Altamira, vive há 30 anos com os Asurini do Xingu, no Pará. Ele lembra que o infanticídio já foi uma prática corrente desse povo devido as “correrias”, como ocorrera no Acre, e rituais próprios dentro da
etnia.
Segundo ele, essa era uma prática que veio antes do contato com os colonizadores. Nos anos 1970, período de guerras contra garimpeiros, seringueiros e caçadores de peles de animais, os Asurini do Xingu foram praticamente exterminados: “As mulheres não poderiam ter filhos durante esse processo, porque as crianças atrapalhavam o grupo de fugir. O entendimento na época era que uma criança com deficiência poderia significar o fim do grupo, já que poderia atrapalhar o povo de fugir dos inimigos”.
Xakriabá diz que a possibilidade de pessoas indígenas com deficiência terem acesso à aposentadoria foi uma mudança importante, sem falar nas atuais condições de assistência à saúde dos povos indígenas. A aposentadoria por incapacidade permanente é um benefício disponibilizado a partir do Serviço de Previdência Social da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). “Hoje, existem pessoas com deficiência vivendo perfeitamente dentro de seus grupos, ou seja, ocorreu uma mudança social a partir de uma política pública”, analisa Xakriabá.
Ele chama atenção, no entanto, para a necessidade de se respeitar as especificidades de algumas etnias. Lembra de duas situações envolvendo o nascimento de gêmeos no ano de 2016, em duas aldeias distintas. À época, ele era presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena de Altamira (Condisi) e explica que, segundo a cosmologia desses povos indígenas, gêmeos eram vistos como sinal de mau presságio.
Devido a essa crença, as crianças não poderiam permanecer nas aldeias de origem. Nos dois casos, os pais não queriam se separar dos filhos, mas os parentes não aceitavam a permanência dos gêmeos na comunidade. A solução para o problema partiu dos próprios indígenas – atualmente, os gêmeos têm 8 anos.
Em um dos casos, a alternativa foi a adoção das crianças por outra etnia, o que, de fato, acabou sendo feito. “Os pais nunca deixaram de visitar os filhos e mantêm uma excelente relação com a família que adotou as crianças”. Os pais não queriam perder o contato com os gêmeos e organizaram para que as crianças fossem adotadas por pais indígenas, para que não perdessem a identidade.
No outro caso, a solução foi dada pelos anciãos da aldeia. Eles recordarem que, no passado, em períodos de guerras e antes do contato com os colonizadores, era comum construir aldeias de refúgio – era para lá que os recém nascidos gêmeos eram enviados junto aos pais. A solução encontrada foi exatamente essa. Quando um cacique da mesma etnia declarou que sua aldeia era de refúgio, os gêmeos e os pais se mudaram para essa aldeia, onde vivem até hoje.
PL do Infanticídio
Desde 2007 o assunto alcançou o Congresso Nacional e chegou a virar tema de projeto de lei. O PL 1057/2007, de autoria do então deputado Henrique Afonso (eleito pelo PT do Acre) ficou conhecido como “PL do infanticídio”.
A proposta alterava o Estatuto do Índio — documento que regula e resguarda os direitos e práticas culturais dos povos indígenas desde 1973, quando foi criado a partir da Lei nº 6.001. “Conseguimos sustentar que havia um discurso exagerado e até fantasioso em alguns casos”, lembra Xakriabá, explicando que o objetivo do PL era a inclusão de um novo artigo no Estatuto do Índio, o 54-A..O artigo dispõe “sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”.
Uma dessas práticas seria o infanticídio.
No projeto, o autor reafirmava o respeito e o fomento às práticas tradicionais indígenas, mas com a condicionante de que “sempre que elas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Após mudanças no texto original, relatorias, vetos e emendas, o PL do infanticídio foi aprovado na Câmara dos Deputados em setembro de 2015 e seguiu para o Senado, onde passou a tramitar como PL 119/2015 — o documento passou por várias comissões, mas foi arquivado em dezembro de 2022.
Em março de 2023, após requerimento apresentado pela atual senadora Damares Alves, o PL foi desarquivado e está, atualmente, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), aguardando relator.
Desde a apresentação da primeira versão do projeto até a chegada ao senado, já se foram 17 anos.
ONG polêmica
Ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Alves é uma das co-fundadoras da ONG Atini-Voz pela Vida. A entidade é apontada como uma das principais interessadas na aprovação do PL, sendo várias vezes citada no projeto.
A instituição foi criada em 2006 e é administrada por missionários evangélicos. Segundo consta no site da organização, um dos objetivos da Atini é “dar voz aos indígenas que não concordam com a prática do infanticídio em suas comunidades de origem”.
O PL também é conhecido como “Lei Muwaji” — homenagem a uma indígena acolhida pela ONG Atini, que teria salvo a filha com deficiência da prática do infanticídio.
Nove anos depois de criada, em 2015, a Atini foi alvo de ações dos ministérios públicos federais de Rondônia (RO) e de Brasília (DF). A motivação foi o filme “Hakani – Voz pela Vida”, produzido pela ONG em parceria com a organização religiosa internacional Jovens com uma Missão (Jocum). A exposição de cenas simuladas de infanticídio de crianças indígenas com deficiência, da etnia Karitiana, de Rondônia, foi o motivo da ação impetrada pelos órgãos.
Os procuradores elencaram uma série de problemas provocados pela veiculação do filme, tendo sido o principal deles o fato de a prática de infanticídio não fazer parte da cultura do povo Karitiana. Segundo os procuradores, após a veiculação do filme, os indígenas passaram a ser chamados de “índios que matam crianças”.
Dois anos depois das ações dos ministérios públicos, a Justiça acatou a uma das recomendações do MPF e condenou a Atini a retirar o vídeo de todos os sítios eletrônicos em que foram inseridos. Em uma das sentenças, a juíza considerou o tema relevante e “deveras sensível”.
O #Colabora entrou em contato com a Atini, mas não obtive retorno da instituição.
Saraivada de críticas
O PL do Infanticídio ou a Lei Muwaji não tem, segundo Fernandes, nenhuma possibilidade de ser considerado: “Nada mais é que uma nova tentativa de questionar direitos e territórios indígenas”. A antropóloga garante que, hoje em dia, “não há estudos e nem comprovação de que essas práticas ainda existem”.
Dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sobre violência contra povos indígenas revelaram que de 2019 a 2022 foram registrados 3.552 óbitos de crianças entre 0 e 4 anos. Desse total, 1.504 foram considerados óbitos por “causas evitáveis”. O relatório considera a classificação feita pelo Ministério da Saúde, de que causas evitáveis são situações que “poderiam ser controladas por meio de ações de atenção a saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequado”.
Entre os dados sobre crianças indígenas no período analisado constam 559 óbitos por gripe e pneumonias; 165 mortes por desnutrição e anemias nutricionais e 218 óbitos decorrentes de diarréia , gastroenterite e doenças infecciosas intestinais. Os dados foram obtidos pelo CIMI junto à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), a partir da Lei de Acesso à informação. Na lista com 25 causas evitáveis não há menção à palavra “infanticídio”.
No relatório, constam também denúncias, como a feita por lideranças Kaingang, no Rio Grande do Sul (RS), de que na T.I Guarita haviam morrido seis bebês. Os indígenas alegaram total desassistência médica. O território também é afetado por uso indiscriminado de agrotóxico em áreas arrendadas para produtores de soja.
O #Colabora também entrou em contato com a Funai, questionando se há dados referentes a infanticídio indígena recebidos pelo órgão, mas não obtive resposta.
Para Fernandes, o PL desrespeita os sistemas sociais e culturais dos povos indígenas e revela a manutenção de práticas preconceituosas: “Alimentar esse tipo de ideia e de prática é sobretudo racista e é mais uma tentativa de desumanização, de criminalização, de questionamento e de violação dos direitos indígenas”. E completa: “É mais um ataque sistemático aos direitos indígenas, camuflado de um humanismo etnocêntrico”.
Xakriabá corrobora com as críticas de Fernandes e acrescenta: “Não há necessidade de interferências ou projetos de lei, pois os próprios indígenas sabem se organizar para buscar alternativas caso ocorram situações conflitantes dentro das aldeias”. A seu ver, a sociedade ocidental “foca na questão ultrapassada do infanticídio”, mas não percebe que existem problemas sociais que as comunidades indígenas nunca tiveram:
“A gente não tem filhos sem pai na aldeia, todo mundo é parente de todo mundo. Nós não temos sem teto, não temos pedintes, todos nos alimentamos da mesma comida. A nossa forma de organização social dá conta de uma série de questões que a sociedade ocidental não dá”.
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Vanessa Monteiro
Vanessa Monteiro é de Belém (PA), jornalista e divulgadora científica na e da Amazônia. Especializada em comunicação científica, responsabilidade socioambiental e mestra em comunicação. Atua com jornalismo profissional desde 2008, o que inclui experiência na comunicação pública, jornalismo de revista, impresso e tv. É também pesquisadora da imprensa radiofônica paraense e estudante da comunicação acessível. Adepta da linguagem simples, pois entende que a comunicação é uma das principais barreiras que impedem a inclusão.