ODS 1
Ações afirmativas no Brasil: o que as trajetórias de estudantes cotistas contam
Dez anos após a sua aprovação, Lei de Cotas voltará a ser debatida pelo governo Lula e pelo novo Congresso que assume em fevereiro
Dez anos após a sua aprovação, Lei de Cotas voltará a ser debatida pelo governo Lula e pelo novo Congresso que assume em fevereiro
Entre os cerca de 40 alunos que concluíram o Ensino Médio em sua turma, em 2002, Dayhane Escobar Paes contou ter sido a única a prestar vestibular naquele ano. À espera de uma oportunidade que antes parecia tão distante, ela passou a comprar as edições do jornal Folha Dirigida todas as quartas-feiras, na esperança de encontrar seu nome na lista de aprovados para o curso de Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). A notícia, no entanto, chegou por um telegrama, que guarda, com orgulho, até hoje: “Foi uma festa. Era coisa de quem pagava pré-vestibular caríssimo. Nós estávamos começando a ver o povo ocupando os bancos da universidade pública”, lembra com um sorriso no rosto.
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Natural de Nova Friburgo, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, Dayhane foi a primeira da família a ingressar em uma universidade pública. Na época, sua mãe era professora de Educação Infantil, e o pai, aposentado por invalidez em decorrência de um aneurisma cerebral que sofreu aos 38 anos. O casal cuidou de seus três filhos com a ajuda da avó materna de Dayhane, empregada doméstica que deixou o município de Alagoinhas, na Bahia, em busca de melhores condições de vida no Rio.
A notícia alegrou a família, que, apesar de sempre ter incentivado os estudos, não vislumbrava uma formação a longo prazo para os filhos, seja em instituições de educação públicas ou privadas: “Meu pai achava que faculdade era coisa de rico. E tinha realmente esse pensamento na época, porque ainda não existia a ideia de que todas as pessoas poderiam ter acesso ao nível superior (…). Não tinha isso de juntar dinheiro para pagar a faculdade, porque o dinheiro era sempre muito contado para o mês”, conta Dayhane.
Aos 37 anos, hoje ela é professora do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), poliglota e tem um doutorado cursado na Alemanha. A educadora se formou na primeira turma de Letras da Uerj que teve a oportunidade de ingressar pelo sistema de cotas. A instituição foi pioneira na implementação dessa política, que começou a ser aplicada em 2003, ano em que 3.056 estudantes cotistas ingressaram na universidade. Até 2020, esse número chegava a 27.343, o que representa 30% de todos os alunos inscritos desde a adoção das cotas na instituição.
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Veja o que já enviamosA reserva de metade das vagas para estudantes de escolas públicas nas universidades estaduais do Rio de Janeiro foi introduzida com a aprovação da Lei 3.524, em dezembro de 2000. No ano seguinte, uma nova lei foi aprovada (nº 3.708), garantindo 40% das posições para pessoas negras. Atualmente, o sistema de cotas da rede de ensino superior estadual é respaldado pela Lei 8.121, que entrou em vigor em 2018 e garantiu a permanência da política até 2028.
Dayhane conta que, na época de seu ingresso na faculdade, havia o pensamento de que a qualidade do ensino poderia diminuir com a entrada de alunos cotistas na universidade, o que não aconteceu. Em 2022, pelo nono ano consecutivo, a Uerj foi considerada a oitava melhor instituição de ensino superior no Brasil, de acordo com o Center for World University Rankings (CWUR).
A política de cotas também despertou – e ainda desperta – debates acirrados, o mais comum amparado na concepção de que ofereceria vantagens a uma parte da sociedade, um ponto com o qual Dayhane não concorda: “Não acho que as cotas sejam uma forma de privilegiar os alunos de escola pública. Pelo contrário. A dívida que o Estado tem comigo por não ter tido aula de Química e Física, por ter enfrentado três meses de greve [no Ensino Médio], é muito maior do que isso”.
Importante instrumento de democratização da educação, o sistema de cotas só veio a ser oficializado nacionalmente em 2012, após o estabelecimento da Lei 12.711, que completou uma década desde a sua criação em 28 de agosto de 2022. O texto prevê que 50% das matrículas em instituições de ensino superior federais sejam reservadas a alunos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Dessa parcela, metade das vagas deve ser destinada a pessoas com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. Na época, essas foram metas estabelecidas para cumprimento até o ano de 2016.
Além dessas divisões, a Lei de Cotas, como ficou conhecida, também estabelece a reserva de vagas para estudantes negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência. Esses grupos são subdivididos entre os 50% previstos na lei de acordo com a participação de cada um no estado da instituição. Para isso, são utilizados os dados mais recentes do censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como previsto na própria legislação, a revisão da lei deveria ter acontecido em agosto, 10 anos após sua sanção. Com o processo eleitoral em curso, o debate foi adiado sem previsões definidas. Espera-se, agora, que a discussão seja coordenada pelo governo Lula e pelo novo Congresso que assume em fevereiro.
As cotas raciais
Antes mesmo da criação da Lei de Cotas, algumas universidades federais já aplicavam a reserva de vagas com critério racial em seus processos seletivos. Esse foi o caso da Universidade de Brasília (UnB), primeira instituição federal a reservar vagas para estudantes negros e indígenas, em 2004. As cotas étnico-raciais da UnB garantiam que 20% das matrículas fossem destinadas a esses grupos.
Como explica Marcia Guena, jornalista e coordenadora do Grupo Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, a atenção à população negra no acesso às universidades faz parte de uma das políticas que buscam reparar os danos sociais causados por três séculos de escravização no país. A professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) destaca que o trabalho forçado – não remunerado e submetido à extrema violência – alimentou a economia, sem retorno algum às pessoas negras, mesmo após o fim da escravidão.
“Políticas de ações afirmativas são fundamentais, porque a saída da escravidão jogou milhares de pessoas fora dos padrões de cidadania”, diz Marcia, em referência à falta de iniciativas para garantia de acesso à saúde, educação, moradia e renda. “Esse mesmo Estado violador precisa reparar isso, porque essas pessoas não voltaram para a África. Elas passaram a constituir esse país”, completa.
Infelizmente, o racismo ainda é um fator que contribui para o afastamento de crianças e adolescentes da educação. Anna Julia Carvalho, de 22 anos, cursa o 7º período de Artes Cênicas na UnB. A estudante foi bolsista de uma escola particular durante seis anos, período em que sofreu frequentes discriminações raciais e bullying. “As pessoas não sabiam que eu era bolsista. Era, de fato, por eu ser negra. Desde criança, havia ‘brincadeiras’ com meu tom de pele, meu cabelo. Falavam que eu tinha ‘cabelo de bombril’. Passavam a mão na minha cabeça como se fossem raspar meu cabelo”, desabafou Anna Julia, que também relatou ter sido constantemente desacreditada sobre sua capacidade pelos demais alunos da instituição.
A dura realidade na escola fez com que a então adolescente desenvolvesse um quadro de depressão. Após um tempo, ela parou de expor suas dúvidas em sala de aula por medo dos comentários da turma, enquanto o desânimo com os estudos só aumentava: “No meu último ano lá eu não queria nem mais estudar”.
A jovem mudou de escola e cursou o terceiro ano do Ensino Médio em uma instituição da rede pública. O teatro entrou em sua vida nesse período, através de professores que tiveram a iniciativa de realizar oficinas para um projeto que buscava debater vivências negras no Distrito Federal. “Ao entrar na escola pública, percebi que havia espaço para eu participar de projetos, falar sobre questões e estar rodeada de pessoas que são iguais a mim, o que foi uma coisa que me tirou muito do buraco”, contou a estudante, que teve a oportunidade de escrever uma peça com outros quatro alunos, auxiliados por um docente, nessa época.
Há diferentes formas de ingressar na UnB, como a utilização da nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o vestibular, que possui cotas para estudantes negros que não concluíram o Ensino Médio integralmente em escolas públicas. Em 2019, Anna Julia foi aprovada em primeiro lugar nessa última modalidade, uma conquista que teve grande significado: “Foi uma forma de entender a minha capacidade, depois de tudo que aconteceu (…). Eu sinto que a oportunidade de estudar me abre margem para poder alçar outros voos”.
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Jornalista pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, mulher negra e natural do interior do estado do Rio de Janeiro. Atuou na equipe de conteúdo da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) e foi redatora do site Purebreak Brasil, além de possuir experiência em agências de marketing digital. Busca abordar temas sobre direitos humanos, racismo, diversidade, inclusão e meio ambiente.