Nove crianças estupradas por dia

Feministas e representantes de movimentos sociais protestam em São Paulo

Dados inéditos do SUS revelam que violência sexual contra meninas de até 12 anos gerou mais de quatro mil bebês

Por Rosane Marinho | ODS 3 • Publicada em 5 de junho de 2016 - 20:01 • Atualizada em 5 de junho de 2016 - 23:37

Feministas e representantes de movimentos sociais protestam em São Paulo
Protesto em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro contra a cultura do estupro
Protesto em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro contra a cultura do estupro

Para quem tem dúvidas sobre a existência ou não de uma cultura do estupro no Brasil, os números de violência sexual do SUS (Sistema Único de Saúde) são aterradores. Entre 2011, quando as notificações passaram a ser obrigatórias, e 2015, foram estupradas no país 16.643 crianças menores de nove anos. Isto nos dá uma média de 9 crianças estupradas por dia no país. Se ampliamos a faixa etária até os 12 anos, o número cresce para 28.661 casos de violação. Ou, em média, quase 16 por dia. A tragédia fica ainda maior quando se sabe que várias meninas engravidaram. Entre 2011 e 2014, nasceram 4.021 bebês filhos de mães que foram violentadas antes dos 12 anos.

A sociedade não vai dar um basta nisto? São nove casos por dia de crianças estupradas. Mesmo havendo subnotificação é muita criança. Vamos continuar fingindo que não acontece nada? Onde está a justiça para a menina, como muitas outras Marias seviciada e brutalmente assassinada?

Estes números são parte de um relatório feito pelo Ministério da Saúde através Sistema Nacional de Violências (SINAN), que notifica todos os casos de violências interpessoais e autoprovocadas atendidas dentro do SUS. O SINAN foi criado em 2006, mas passou a ser obrigatório em 2011. Desde então os números de violências notificados aumentam a cada ano, passando de pouco mais de 107 mil casos em 2011 a quase 250 mil notificações em 2015. Eles incluem casos de violência física, psicológica, negligência e violência sexual, que correspondem a 11% do total. As vítimas são mulheres em sua maioria, 67% dos casos.

Com relação exclusivamente aos casos de estupro, apenas no ano de 2015, 17.871 mulheres foram atendidas pelo SUS, vítimas deste tipo de crime. Destas, 193 morreram em 2015, sendo que 68 morreram por causas de morte associadas a este crime. Estupro é o fator de risco mais letal que existe, representando 35% do total. Nenhuma doença tem uma taxa de letalidade tão elevada, isto considerando que os dados estão subestimados.

Mesmo altos, os números com que o SUS trabalha são menores do que os fornecidos pelo SINESP (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), que notifica mais de 40 mil casos de estupros por ano no país.

estupro (3)/Fernando Alvarus

“O sistema de notificação de violência só está implantado em 60% dos municípios. Nossos números vêm dos hospitais, clínicas etc. Além disso, muitos estupros vão direto para o setor de Medicina Legal, que é uma área da segurança pública, assim não recebemos a notificação. A vantagem que temos é que nossos dados têm detalhes, não é só uma contagem, podemos rastrear alguns casos através de desfechos como gravidez e morte”, afirma a Dra. Marta Silva, Coordenadora Geral Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde e responsável pela implantação do SINAN/Violência.

Além de detectar o índice de gravidez em crianças, o alto número de mortes nos dias ou meses posteriores a um crime sexual é um dos dados mais importantes que se pode extrair usando o SINAN/Violência e o Sistema de Mortalidade do Ministério da Saúde. As causas de óbito são diversas: morte materna, infecção generalizada, Aids, entre outras. O mais dramático é que algumas causas nunca serão esclarecidas. Não se sabe se foi suicídio ou feminicídio.

“Para alguns casos não temos muitas informações. Por exemplo, uma mulher que foi vítima de estupro e algum tempo depois é encontrada morta por enforcamento, queimadura ou envenenamento, não podemos descartar o feminicídio. O normal seria classificar como suicídio, mas nestes casos temos dúvidas. Como não somos da polícia, temos acesso restrito à cena do crime”, explica a Dra. Marta Silva.

Se para um adulto a violência sexual é traumática, em uma criança é devastadora. Levando muitas vezes ao suicídio na adolescência ou mesmo ao homicídio. Segundo a doutora Marta, a vigilância em saúde do SUS investigou recentemente o caso de dois irmãos, um menino de seis anos e uma irmã com 9 anos, vítimas de estupros diários. Eles eram levados pelo pai, que trocava sexo com as crianças por dinheiro.

“A vigilância da violência fez a notificação para os órgãos competentes e o resultado é que a menina foi encontrada assassinada recentemente, entrando para a nossa estatística de morte violenta, e o menino está desaparecido, assim como o pai, que deve estar ferindo de morte outra menina. Nós da saúde não temos autoridade para ter a guarda da criança, dependemos da ação da polícia e dos órgãos de proteção aos direitos da criança, fazemos a notificação e acionamos o Conselho Tutelar para que tome as devidas providências. O que será da criança que ainda está viva? Por que o pai não foi preso e as crianças protegidas? Quem vai dar apoio se a área da saúde não for envolvida? É preciso acionar a rede de cuidados, que é intersetorial, temos o dever de proteger e cuidar destas crianças. A sociedade não vai dar um basta nisto? São nove casos por dia de crianças estupradas. Mesmo havendo subnotificação é muita criança. Vamos continuar fingindo que não acontece nada? Onde está a justiça para a menina, como muitas outras Marias seviciada e brutalmente assassinada?”, conclui, revoltada, a Dra. Marta.

Feministas e representantes de movimentos sociais protestam em São Paulo
Feministas e representantes de movimentos sociais protestam em São Paulo

Rosane Marinho

É jornalista, carioca, e há dez anos vive em Zaragoza, na Espanha. No Rio, trabalhou como fotógrafa na sucursal da Folha de S. Paulo e no Jornal do Brasil. Foi correspondente d'O Globo no Recife. Na Espanha, é professora de fotografia digital e trabalha como jornalista freelance. Casada, é mãe de dois pequenos hispano-brasileiros.

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