Morro do Salgueiro valoriza ervas medicinais para tratar a saúde

Encontro de erveiras no Morro do Salgueiro, no Rio: receitas de ervas medicinais, passadas de uma geração a outra, ajudam a tratar da saúde, em tempos de dificuldade para qualquer atendimento médico (Foto: André Balocco)

Em tempo de pandemia e dificuldade para qualquer atendimento médico, erveiras da favela compartilham receitas para tratamento de doenças

Por André Balocco | ODS 3 • Publicada em 30 de abril de 2021 - 09:51 • Atualizada em 4 de maio de 2021 - 10:15

Encontro de erveiras no Morro do Salgueiro, no Rio: receitas de ervas medicinais, passadas de uma geração a outra, ajudam a tratar da saúde, em tempos de dificuldade para qualquer atendimento médico (Foto: André Balocco)

Nem tudo é violência quando o assunto é favela – na verdade, sua riqueza é bem superior à narrativa da guerra às drogas. Em plena pandemia, dois amigos moradores do Salgueiro, morro na Zona Norte do Rio, arregaçaram as mangas para ajudar a resgatar e preservar a memória oral das erveiras da favela, criando um banco de dados com o nome de ervas medicinais – e plantas alimentícias – muito usadas pelos antigos da favela. Tudo isso fazendo uma coisa que anda em falta ultimamente: escutando pacientemente os mais velhos.

Esse projeto, totalmente à margem do Poder Público, tem levado muita estima ao morro, conhecido principalmente pela escola de samba; e – por que não dizer? – ajudado os moradores a enfrentarem o mar de dificuldades trazido pelo Covid-19. “Ainda estamos no processo de mapear e catalogar, pois são muitas as ervas e plantas”, conta Marcelo da Paz, 42, sócio da padaria Caliel, muito conhecida por quem gosta de comida de favela. 

Referência no morro, ponto de cultura onde se fazia saraus poéticos todas as quintas, antes da pandemia, local de reunião das senhoras do Caxambu do Salgueiro, a Caliel está fechada fisicamente há quase um ano, mas a mente de Marcelo permanece aberta. Ele se juntou a Denise Vieira, amiga moradora do morro e agente ambiental, e foram montando a lista que já soma nome, propriedades e receitas de dezenas de ervas, folhas e vegetais. Há, entre elas, receitas de preparados para expectorar e melhorar a imunidade do corpo –  um santo remédio para quem anda abandonado pelas autoridades durante a pandemia.

Vegetais como Aroeira, cujas folhas são boas para curar impetigo e feridas de insetos; Penicilina (Alternanthera brasiliana), de propriedades antivirais; Merthiolate (sim, ‘ele’ é uma planta: Jatrofa Multifida); e Ora Pro Nobis, trepadeira farta em ferros e vitaminas, estão na boca do grupo de erveiras, que, desde o começo da pandemia, só se encontrava pelo whatsapp. Talvez isso explique tantos sorrisos por detrás das máscaras quando, a pedido da reportagem, eles cumpriram o protocolo de segurança e voltaram a se rever em meados de março. 

A gente, que vive aqui desde sempre, sabe muito bem das propriedades medicinais das plantas e como elas ajudaram a livrar nossos antepassados da doença e da fome

Havia euforia no ar. “O que presta de verdade no aipim é a folha, sabia? Você tem que secar ela, mas de cabeça pra baixo, depois bater no liquidificador, fazer uma farinha e misturar na comida. É muito rica em ferro”, começou Tânia Cristina, 53 anos, uma das ‘bruxas’ que esteve presente à reunião, na ampla e arejada laje da Caliel. A faladeira Taninha, como gosta de ser chamada, carregava consigo um preparado que mesclava álcool gel e citronela. Numa só ação, higienizava a mão e espalhava repelente natural pelo corpo. “Achei a Citronela na Ilha Grande e trouxe uma muda. Experimenta”, ofereceu ela, apontando o frasco e emendando outro assunto.

Segundo Tânia, não se deve ferver erva para tomar banho de infusão. “Tem que macerar porque senão ela perde propriedades”. Dona Janaína Soares, 55, toma a palavra e recorda o tempo em que a subida do Salgueiro era feita em estrada de terra, muito antes das obras do favela-bairro “A gente, que vive aqui desde sempre, sabe muito bem das propriedades medicinais das plantas e como elas ajudaram a livrar nossos antepassados da doença e da fome” contou, voz pausada. Ela recordou de sua avó mandando tomar um preparado de ervas medicinais quando escutava o peito das crianças chiando. Ou dos adultos.

A valorização da ancestralidade, presente na comunidade formada por muitos descendentes de escravos que trabalhavam nas Minas Gerais, é uma ideia fixa de Marcelo. Na Caliel, ele já vem criando receitas com as plantas das redondezas, e sua empada com recheio de Ora Pro Nobis foi considerado o petisco mais suculento do Rock in Rio 2019. “Estudo muito sobre as Pancs (Plantas Alimentícias Não Convencionais). E uso boa parte delas para criar petiscos e iguarias. Temos uma imensa riqueza aqui mesmo, no Salgueiro, pois estamos na borda da Floresta da Tijuca. É Limão selvagem, Beldroega, Ora Pro Nobis e tantas outras”, diz, apontando para os pés das plantas cuidadosamente espalhadas em largos vasos, na laje da padaria. 

Marcelo da Paz no Morro do Salgueiro: projeto de catalogar ervas e plantas usadas para tratamentos de saúde e para alimentação (Foto: André Balocco)
Marcelo da Paz no Morro do Salgueiro: projeto de catalogar ervas e plantas usadas para tratamentos de saúde e para alimentação (Foto: André Balocco)

Sua parceira de projeto, Denise, é funcionária da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e tem um papel próprio entre as erveiras. Como também ajuda a gerenciar a horta da favela, que produz frutas, folhas, legumes e, claro, ervas, ela é responsável por atrair a atenção das crianças e manter a tradição. Sempre que podia, organizava palestras e passeios até a horta, bem na entrada da favela, para que aprendessem sobre as propriedades medicinais e enfiassem, literalmente, a mão na terra.

“O Salgueiro não é aglomerado, como algumas favelas. Aqui as casas têm quintal, e muitos plantam neles”, diz Denise. “Quando começou a pandemia, teve gente apresentando sintomas de gripe, mas não sabíamos se era covid porque não havia teste. E as senhorinhas sempre receitaram chás para quem estava doente. O de saião misturado com mastruz é muito bom pro sistema imunológico”, conta.

Expoente do Caxambu do Salgueiro e ativista social na favela, Denise Vieira, 55 anos, fez questão de contar porque pediu – e recebeu – uma muda de Merthiolate de um vizinho. “Quando a gente ganha uma planta, tem que saber sobre ela. A gente faz uma espécie de emplastro com as folhas e coloca em cima do ralado. Arde, esquenta, mas ajuda a cicatrizar”. Sem perceber, Denise revela a essência do encontro: trocar de tudo – desde as experiências e mudas até as lembranças passadas de geração em geração.

Para quem anda com dificuldades de comprar uma simples cesta básica, conhecer as propriedades medicinais e alimentícias de plantas ajuda. Que o diga a equipe médica do Posto de Saúde Heitor Beltrão, que atende à favela. No dia do encontro, fizeram questão de aparecer para para escutar – e criar mais um vínculo com os influenciadores da favela. Um alento numa época em que há escassez de dinheiro para tudo, e encher a barriga está à frente de comprar medicamentos. 

ABECEDÁRIO DAS ERVAS NO ENTORNO DO SALGUEIRO E SUAS FUNÇÕES

Aipim – Batido no liquidificador após secar de cabeça para baixo, sua folha vira farinha rica em ferro.

Aroeira – Tem múltiplos usos. Sua folha é utilizada como banho para trato urinário, cistite, uretrite, blenorragia e outras doenças das vias urinárias.

Beldroega – Planta rasteira, é uma das principais plantas ricas em Ômega 3, além de ser diurética e anti-inflamatória.

Citronela – Usada como repelente por suas propriedades, é também fungicida e antibacteriano

Goiabeira – Sua folha é usada para tratar diabetes

Mangueira – Também usada em folha, junto com a da goiabeira, para quem sofre de diabetes.

Mastruz – Conhecido também como erva de Santa Maria, é utilizado para melhorar o sistema imunológico, tratar vermes e má digestão.

Melão São Caetano – Usado como chá, é bom para diabetes. Utilizado também como banho para sarna e secar feridas. 

Merthiolate – Sua folha é colocada, como emplastro, em machucados. Como causa calor, ajudar a secar a ferida e acelerar a cicatrização 

Ora Pro Nobis – Usada para alimentar escravos e gado, é conhecida como a ‘carne dos pobres’ devido à quantidade de proteína. É rica em minerais como manganês, magnésio, ferro, cálcio, vitamina C e fibra.

Sayão – Misturado com leite e mastruz, é utilizado para tratar pneumonia. 

Planta Dormideira – Usado em forma de chá, serve para incontinência urinária

 

André Balocco

André Balocco é jornalista e já passou pelas redações de O Globo, Jornal do Brasil e O Dia, onde foi de repórter a editor executivo. Passou também pela Presidência da República e Secretaria Municipal de Cultura do Rio. Vencedor em equipe do Prêmio Embratel de jornalismo de 2014, com a série '50 anos de Golpe', atualmente comanda o projeto 'Papo com Favela', no Instagram, em que entrevista lideranças de favelas

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