Da balada para a UTI de covid-19

O publicitário Fernando Ramos: contaminação na balada, quase 20 dias de hospital e vídeo de alerta (Foto; Arquivo Pessoal)

Após ser contaminado na noite de Brasília, publicitário de 41 anos grava vídeo com sua experiência no hospital para tentar evitar que outros adoeçam

Por André Giusti | ODS 3 • Publicada em 23 de março de 2021 - 09:14 • Atualizada em 31 de março de 2021 - 09:31

O publicitário Fernando Ramos: contaminação na balada, quase 20 dias de hospital e vídeo de alerta (Foto; Arquivo Pessoal)

Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou pandemia em 11 de março de 2020, o publicitário brasiliense Fernando Ramos, 41 anos, se recuperava do fim de um relacionamento que o levou a ter crises de esquizofrenia. “Fiquei muito mal”, ele frisa, contando que tomou medicamentos e foi parar na terapia. Junto a isso, estava sem trabalhar e estudando para concursos. Portanto, quando à época o Governo do Distrito Federal proibiu o funcionamento de quase todas as atividades para tentar conter o avanço do Covid 19 (o que conseguiu, na ocasião), Fernando quase não sentiu o impacto das medidas.

Só que dois meses depois, por pressão do chamado setor produtivo, o governo local começou a relaxar e a permitir a abertura do comércio, e bares e restaurantes estavam incluídos. Por sua vez, Fernando já estava “com a cabeça no lugar, me aprumando”, e achou que tomando os cuidados necessários, era hora de voltar a viver e enterrar de vez as cinzas do passado. Caiu em cheio nas baladas. “Eu tava indo pra tudo, cara. Tentava seguir as recomendações, usar máscara e álcool gel, mas eu tava indo para barzinho, restaurantes, eventos ao ar livre e motéis”.

Ele prossegue – e confessa sem meias palavras. “Durante a pandemia inteira, eu beijei, eu abracei mulheres de aplicativo, gente que eu nunca havia visto”. Às vezes ele ia para a casa dessas pessoas e “tomava um banho quando chegava”. Pelo depoimento, a prevenção parava por aí. Hoje, Fernando sabe o quanto pode ser perigoso flexibilizar as atividades com a transmissão acontecendo. “Não existe meia grávida. Ou você tem lockdown com restrição total, ou você não tem. Então quando você fala em barzinho, restaurante e dizem tem máscara, álcool gel, as mesas são separadas… mas aí eu coloco máscara, vou até a mesa, tem vírus. Vou comer, tiro a máscara, e aí não tem vírus?”, questiona. E acrescenta que “em todos os barzinhos (de Brasília e cidades próximas), ninguém usa máscara. Alguns respeitam o distanciamento, mas em outros não há protocolo nenhum, só uma separação de mesas pra inglês ver e ninguém usando máscara. Eu usava quando precisava ir ao banheiro”.

Cair na balada, mesmo que de máscara e álcool gel (e nem sempre, pelo o que ele conta), não poderia dar outro resultado. Fernando foi parar na UTI de um dos melhores hospitais particulares de Brasília (sorte de quem tem plano de saúde) e conta que pensou que realmente iria morrer em uma noite em que o nível de oxigênio no sangue, a chamada saturação, caiu para quase 80% (esse índice deve ser superior a 90%).

Eu achava que por ter o histórico de atividade física, eu só teria sintomas leves

Ele diz ter praticamente certeza de que se contagiou em uma sexta-feira, no fim de janeiro, em um bar chamado Universidade da Cerveja, em Águas Claras, cidade há 15 minutos de Brasília, famosa por seus arranha-céus. Ele chegou ao bar para esperar um amigo, e dali seguiriam para outro lugar. Mas os planos mudaram. O amigo se atrasou no trabalho e decidiram tomar cerveja na casa dele, quando estivesse liberado. Só que isso ainda demoraria duas horas, e para matar o tempo, Fernando resolveu esperar bebendo ali mesmo. Como não havia mesa disponível, o garçom sugeriu que Fernando entrasse e visse se havia algum conhecido sentado. “Parecia que o universo estava avisando: Cara, não entra nisso, não entra nisso”, ele lembra, e, hoje, chega a rir do pressentimento que teve na ocasião. Acabou conseguindo uma mesa pequena e ficou lá duas horas. “Os únicos que usavam máscara eram os que trabalhavam no lugar” – ele se recorda disso e do pior: aglomeração e gente dançando.

Quatro dias depois, uma terça-feira, começou a sentir dores no corpo e teve febre. Foi ao hospital, e o médico que o atendeu quis convencê-lo de que aquilo era estresse muscular devido ao treino forte na véspera na academia de jiu-jitsu (Fernando pratica a luta há nove anos). Ele bateu o pé e exigiu um pedido de exame, como se, no íntimo, já tivesse a certeza do que estava acontecendo. O resultado, positivo, saiu dois dias depois. Confirmada a doença, Fernando garante que ficou tranquilo, inclusive porque não tinha qualquer doença pré-existente. “Eu achava que por ter o histórico de atividade física, eu só teria sintomas leves” (Histórico de atleta. Isso lembra alguém?). “Eu achava até que já havia pegado, pois em alguns momentos da pandemia eu tive sinusite, mas tomava um tylenol e ficava bem. Pensei ‘vai ser bom ter logo de uma vez e ficar imune’”, relembra.

Eu não pensava apenas que ia morrer. Eu pensava que ia morrer e que ia matar minha mãe

Entre o resultado e a internação foram algumas idas e vindas do hospital, passando por uma médica conhecida que receitou ivermectina. Chegou a acordar bem no dia seguinte ao que tomou a medicação, cuja eficácia contra a covid-19 não tem comprovação. Logo, no entanto, a febre voltou e foi aumentando, até chegar a 39º e um exame detectar 20% do pulmão tomado. A internação veio no dia seguinte a este exame, e, numa sexta-feira, duas semanas após o dia que acredita ter sido contaminado, Fernando estava na UTI com a saturação despencando, apesar de terem colocado nele uma máscara com 15 litros de oxigênio. Um médico chamado Rafael (ele só sabe o primeiro nome), muito educado “Mas muito assim ‘na lata’, sabe?”, como define Fernando, disse simplesmente que ele era o paciente mais grave na unidade. Fernando estava a um passo de ser intubado.

Entre o provável momento de contágio e os primeiros sintomas, Fernando esteve com duas moças, sendo que com uma delas teve relação sexual. Esteve também com os companheiros de jiu-jitsu. Ninguém apresentou sintomas, mas ele acabou contaminando a própria mãe, com quem divide o apartamento. “Eu não pensava apenas que ia morrer. Eu pensava que ia morrer e que ia matar minha mãe”, conta. Pensava também que todo mundo no hospital corria risco por causa dele, porque “havia sido inconsequente, irresponsável e idiota”, admite sem se poupar de adjetivos negativos. “Eu chorei muito, eu tive muito remorso, eu revisitei um monte de atitudes minhas, atitude diversas (não apenas em relação à pandemia)”, conta, emocionando, depois de ter visto a vida por um fio.

Na hora mais difícil, Fernando, que nunca foi religioso, só viu uma saída. “Aí eu me apeguei à fé, né? Comecei a orar a madrugada inteira, pro anjo da guarda, orar Pai Nosso, falando que eu queria ver meu filho crescer ainda. Eu estava meio enjoado, sem querer comer. Aí no dia seguinte passei a comer na marra, que nem um doido, levantava e comia a comida fria mesmo”, relembra. Segundo ele, por muito pouco escapou da intubação.

Fernando (ao centro) com amigos do jiu-jitsu: prática de esporte não evitou internação na UTI (Foto: Arquivo Pessoal)
Fernando (ao centro) com amigos do jiu-jitsu: prática de esporte não evitou internação na UTI (Foto: Arquivo Pessoal)

Fernando está na estatística que revela um aumento no número de pacientes mais jovens (abaixo de 60 anos) contraindo covid-19 nesses primeiros meses do ano. “O vírus está diretamente ligado ao movimento das pessoas. E a população que mais se movimenta são os mais jovens, que são também os economicamente ativos. Então, somando a uma taxa de transmissibilidade mais alta, você ampliou muito a base dos infectados”, disse o diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José Davi Urbaez, ao jornal Correio Braziliense. Urbaez acrescenta que o aumento de internações dos mais jovens também se deve à maior circulação de variantes, mas ressalta que este não é o ponto principal. “É muito simples culpar a variante, como se estivéssemos fazendo tudo certo e a variante estragou tudo. A variante ocorreu justamente pela circulação descontrolada das pessoas”, acrescentando, citando como exemplos o que tanto se temia em dezembro: as festas de fim de ano e o carnaval.

Fernando fez ventilação mecânica, uma espécie de fisioterapia pulmonar, três vezes ao dia durante duas horas. O normal é 1h30. “É uma máscara que colocam na tua cara e fica ventando como se você tivesse posto a cara para fora do carro, sabe?”, explica. Essa ventilação foi fundamental para que ele desse a volta por cima. “Isso e a minha força de vontade de querer lutar. Eu tenho que sair logo daqui para poder ficar com a minha mãe se ela ficar nessas condições que eu fiquei”, relata. A mãe chegou a ser internada, mas seu quadro foi muito mais leve do que o do filho. Quando perguntamos como ele acha que estaria caso o pior houvesse acontecido com a mãe, Fernando diz apenas “Eu não sei te responder. Eu não sei se estaria vivo”.

Foram cerca de 20 dias de internação. Minutos antes de receber alta, ele gravou um vídeo para postar no Instagram, ainda com a roupa do hospital. Com sua experiência profissional em redes sociais – Fernando também é escritor e publica trechos de poemas nas redes -, deu um depoimento firme e tocante contando o que viveu durante aquelas três semanas, chamando principalmente a atenção para a forma inconsequente como agiu e que o levou a passar por todo o risco que passou.

O vídeo tem cerca de três mil visualizações e quase 300 comentários. Em pouco mais de oito minutos, ele se dirige principalmente aos jovens, pedindo que usem máscara e álcool gel e, principalmente, fujam à tentação de ir para a noite. “Que vocês não deixem chegar ao estado em que eu cheguei” – é uma frase que ele diz no post e que resume a mensagem. Fernando acredita que alcançou o objetivo que tinha quando gravou. “Eu já conversei com amigos meus que disseram ‘cara, depois daquilo que te aconteceu, eu parei de fazer tal coisa, parei de sair, de fazer isso e aquilo’. Se conscientizar uma pessoa, já tá valendo”, comenta.

Fernando luta agora contra as sequelas da covid-19. “Ando 15 minutos e parece que corri uma maratona”, conta. No dia seguinte ao que conversou com o #Colabora, foi internado novamente, agora para fazer uma drenagem em um dos pulmões, porque passou a madrugada tossindo muito, com falta de ar e com dor nas costas. Mandou mensagem aos amigos pedindo que enviassem a ele boas vibrações. Seis horas depois, aliviado, contou o problema pelo whatsapp. “Algumas bolhas que havia no meu pulmão explodiram e o ar delas estava comprimindo meus pulmões. Por isso a dor no pulmão inteiro quando tossia, por isso a falta de ar. Essas bolhas, segundo os médicos, podem surgir em qualquer pessoa devido a uma infinidade de variáveis. Entretanto, explodiu e se agravou devido à covid”.

Fernando aprendeu da pior forma – tomara que seja exemplo para que outros não insistam em aprender do mesmo jeito.

André Giusti

Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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