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Veja o que já enviamosComo teremos mais velhas para honrar se elas não sobreviverem?
Raras são as vezes em que paramos para ouvir essas mulheres sobre o envelhecer, poucas são as vezes que refletimos sobre o nosso próprio envelhecimento
Tive mais uma vez a honra de compartilhar um espaço com uma mais velha do movimento social negro, dessa vez em evento do Ilu Obá de Min, importante coletivo negro de São Paulo. Sou uma mulher bastante afortunada porque desde muito jovem tenho tido oportunidades de ouvir o legado, a trajetória e a memória de mulheres negras na primeira voz, daquelas que presenciaram tudo isso de corpo presente. Contudo, poucas foram as vezes que vi minhas mais velhas falarem sobre o envelhecer. Fiquei profundamente tocada e pensativa ao ouvir as reflexões de Lenny Blue sobre a invisibilidade da velhice, sobre o direito de envelhecer, sobre a saúde física e psicológica das mulheres negras idosas.
Leu essa? Legado e lutas de Mãe Beata de Iemanjá
Lenny Blue é uma altiva senhora de 69 anos, advogada, feminista negra, escritora e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado. Atualmente é vice-presidenta da Comissão de Verdade e Memória da Escravidão Negra da OAB-SP. Compõe a Marcha das Mulheres Negras e integra o Ilú. Sorri solto, compartilha com amor suas vivências e pensamentos, brilha com ardor ao falar do que plantou e do que colheu. Lenny se considera uma mulher abençoada porque pode plantar e colher tâmaras, bela metáfora ao legado das lutas de mulheres como ela, que batalharam para a coletividade negra poder existir em plena potência.
Tenho duas avós nonagenárias, minha mãe tem 75 anos, minhas tias ingressaram na terceira idade. Talvez por conviver com tantas mulheres negras na terceira idade, eu tenha simplesmente naturalizado uma longevidade saudável e sadia, exaltada a cada vez que iniciamos uma fala saudando nossas mais velhas. Mas essa realidade é menos concreta e a fala de Lenny me pôs a pensar como as mulheres negras têm envelhecido e como avançar em políticas de bem-estar para elas.
Minha avó sempre conta como ignorou a dicotomia trabalho X família. Ela precisou cumprir o papel de gestora do lar e de operária desde os 17 anos, fez isso até quase os 80. Era mãe, esposa e trabalhadora, cumpria todos os papéis ao mesmo tempo e eu, nos meus 34 anos, sendo apenas trabalhadora, não desempenhando o papel de esposa nem de mãe, tenho certa dificuldade de entender como ela dava conta disso tudo. Como as mulheres conseguem cumprir tantos papéis sociais sem que isso seja absolutamente estressante?
As mulheres negras mães da minha convivência expressam com frequência esse lugar duplo, onde a maternidade tem ganhos e perdas, onde ao mesmo tempo que produz sentimentos extenuantes também tem momentos gloriosos de bem-estar psicológico. Mas foi só ouvindo Lenny falar do envelhecimento e dos seus silêncios que refleti sobre o quanto essas múltiplas funções na vida de uma mulher negra apresentam dinâmicas complexas e mutáveis, em ciclos diferentes da vida.
Compreendo exatamente o quanto o racismo e o sexismo são fatores que me prejudicam. A violência racista prejudica meu trabalho, meu cotidiano, minha saúde física e, consideravelmente, minha saúde mental. Percebi que conforme vou ficando mais velha, mais vou precisando de medicações que atenuem o estresse, a ansiedade, a compulsão e tantas outras coisas com implicações profundamente negativas em minha vida. A experiência de oposição frente ao racismo e ao sexismo tem consequências subjetivas e físicas que acabam muitas vezes se associando.
A resistência dos movimentos sociais negros por toda a diáspora conclama a sociedade a reconhecer a humanidade de pessoas negras, mas ao ouvir Lenny não pude deixar de pensar que esse reconhecimento tem um limite etário. As vidas dos idosos negros parece ter menos importância do que a vida dos jovens negros. Parece que ao chegarmos à terceira idade, cumprimos o papel de sobreviver aos sistemas de opressão e podemos apenas esperar a travessia. Acontece que para a maioria da população negra idosa essa espera é tortuosa, pois as determinantes sociais incrementam a forma negligente com que pessoas mais velhas são tratadas.
É óbvio que em um país onde a todo momento se tenta memorizar o impacto do racismo nas vidas das pessoas negras, haverá disparidades consideráveis no tratamento de idosos. Uma mulher negra idosa certamente foi impactada pelo estrasse relacionado ao racismo e frequentemente isso é desconsiderado em seu envelhecimento. A inexistência de políticas públicas adequadas para a saúde da população negra idosa, de cuidados paliativos e de investigações médicas que levem em consideração os impactos das iniquidades raciais sobre a saúde, produz cenário bastante adverso para pessoas negras idosas. E esse é mais um exemplo da necessidade de pensar o racismo como um problema público e não individual.
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Veja o que já enviamosMulheres negras mais velhas são afetadas por um tipo múltiplo e aprofundado de opressão que atinge raça, gênero e idade. A conexão entre esses sistemas de dominação e seus impactos na vida dessas mulheres resulta em maior índice de depressão e aumento de doenças cognitivas.
A literatura especializada, tanto no contexto brasileiro quanto no internacional aponta para as questões de saúde diretamente relacionadas ao contexto racial, em estudo conduzido por Alexandre Silva e colaboradores, publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia em 2018. São os idosos pretos e pardos que menos têm acesso a planos privados de saúde e também os que menos realizam exames complementares. Esse levantamento, assim como outros, evidencia como o cenário de envelhecimento para pessoas brancas é mais favorável do que para negras – e essas ainda apresentam menor expectativa de vida.
Conforme Lenny Blue me ensinou, estamos vivendo a necropolítica do envelhecimento, que ficou ainda mais evidente durante a pandemia de covid-19 e escancarou-se no governo Bolsonaro. O desmonte do SUS, o descaso com os territórios periféricos, a falta de políticas de assistência condizentes e qualificadas para os idosos negros são a face perversa do deixar morrer aqueles que já viveram sob condições desiguais.
Nós, mais jovens, costumamos reverenciar nossas mais velhas quando falamos, quando escrevemos, quando nos expressamos. Reverenciamos especialmente aquelas que ocupam a política, a mídia e que, felizmente, alcançaram no seu envelhecimento o status de autoridades civilizatórias. Contudo, apesar dessas reverências e homenagens, raras são as vezes em que paramos para ouvir o que essas mulheres têm a dizer sobre o envelhecer, poucas são as vezes que refletimos sobre o nosso próprio envelhecimento. Defender que a vida das mulheres negras idosas importam é defender a possiblidade podermos seguir aprendendo com a nossa ancestralidade em vida. É defender nosso legado de forma concreta e não apenas como figura romântica de uma linguagem esvaziada de atitudes concretas.
Você já perguntou para a sua mais velha como ela está se sentindo hoje?
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